No cenário de crise econômica atual, o governo brasileiro tem se valido de inúmeros instrumentos para aumentar a sua arrecadação e, desse modo, equilibrar suas contas.
Dentre as medidas desta natureza, destaca-se a edição da Medida Provisória nº 685/15, publicada no dia 22/07/2015. Tal instrumento, porém, além de instituir um regime especial para quitação de débitos tributários junto à Secretaria da Receita Federal do Brasil (Programa de Redução de Litígios Tributários – PRORELIT), criou uma nova obrigação para as pessoas jurídicas cujo cumprimento já está sendo objeto de amplo questionamento.
O dever consiste, basicamente, na obrigatoriedade de entrega, pelas pessoas jurídicas, de uma declaração, na qual deverão informar à Administração Tributária Federal todas as operações e/ou atos ou negócios jurídicos que, de algum modo, acarretem a supressão, redução ou diferimento de tributos. Em termos mais diretos: todas as empresas serão obrigadas a declarar os planejamentos tributários realizados a cada ano. O problema, porém, é o modo como a questão foi disciplinada.
De fato, iniciativas como essa já foram adotadas por outros países. A Holanda, por exemplo, já criou programas desta natureza, em que as empresas informam as operações que irão realizar e o fisco avalia estas informações, esclarecendo qual a interpretação que irá conferir ao negócio jurídico, especificamente no que diz respeito aos impactos na tributação.[1]
Estes projetos, porém, distinguem-se por um elemento comum: a postura transparente da Administração Pública e o engajamento no diálogo com o contribuinte. Esta, porém, não parece ser a linha adotada pelo governo brasileiro.
Em seu sítio na internet,[2] a Receita Federal do Brasil publicou breve resumo da medida adotada, afirmando, dentre outras coisas, que sua finalidade é “aumentar a segurança jurídica no ambiente de negócios do país”, “diminuir os litígios”, além de estimular “postura mais cautelosa por parte dos jurisdicionados antes de fazer uso de planejamentos tributários”.
Basta, porém, um exame superficial do texto da Medida Provisória para verificar que suas disposições, ao contrário do que foi afirmado, causam evidente insegurança jurídica.
Ora, o princípio da segurança jurídica não é outra coisa senão uma diretriz para que nosso sistema jurídico se arranje de modo a garantir a previsibilidade. Se consuma, portanto, quando as soluções a serem aplicadas aos casos concretos são esperadas. Todavia, a regulamentação instituída pela referida Medida Provisória é tudo, menos previsível.
Logo de início, chama atenção a forma como são definidos os atos ou negócios jurídicos que deverão ser declarados pelos contribuintes. Dispõe o art. 7º:
Art. 7º. O conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo deverá ser declarado pelo sujeito passivo à Secretaria da Receita Federal do Brasil, até 30 de setembro de cada ano, quando:
I - os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes;
II - a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou
III - tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
No caput, o dispositivo parece afirmar que qualquer negócio jurídico que acarretar supressão, redução ou diferimento de tributo deve ser declarado. Porém, em seus incisos, estabelece que tais negócios deverão ser informados “apenas” quando: (i) não possuírem razões extratributárias relevantes; (ii) contiverem cláusula que desnature um contrato típico; ou (iii) tratarem de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da RFB.
O inciso I, ao referir-se a “razões extratributárias relevantes”, claramente se reporta ao chamado “propósito negocial”, ponto fulcral para a legitimação ou não de um planejamento tributário pelo Fisco.
Com efeito, o principal fundamento utilizado pela Receita Federal para a desconsideração de planejamentos realizados pelos contribuintes é a ausência do chamado “propósito negocial”. Sabemos, no entanto, que, no exame do caso concreto, não é fácil definir se, afinal, está ou não presente este “propósito”. Tanto isso é verdade que as autuações lavradas pela RFB são objeto de amplo questionamento nos tribunais administrativos e a solução dada a estes casos não é uniforme.
Diante deste cenário, pode-se concluir que o enunciado coloca o sujeito passivo num impasse:
- Se declara o negócio que, supostamente, não possui “razões extratributárias relevantes”, este certamente não será reconhecido, o que acarretará a sua intimação para pagar os tributos acrescidos de juros;
- Se, porém, opta por não declarar o negócio e este, posteriormente, é desconsiderado, será obrigado a recolher o tributo, acrescido de juros e multa de 150%, uma vez que o art. 12 considera a omissão como dolosa.[3]
Ou seja, tanto num caso como no outro, a empresa será, necessariamente, obrigada a recolher os tributos que a Administração Pública entende devidos, ainda que não tenha se verificado o fato gerador dos tributos. A diferença é que poderá optar por recolhê-los ou não com o acréscimo de multa.
O inciso II, por sua vez, faz referência à “cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico”. Novamente, estamos diante de enunciado sujeito a diversas interpretações. Afinal, que tipo de cláusula pode ser assim qualificada? Quem define tais requisitos?
O sujeito passivo, novamente, se vê diante de prescrição claramente vaga e ambígua, de modo que não consegue determinar, com segurança, se está ou não obrigado a cumprir o dever prescrito no caput. A consequência do não cumprimento, porém, é a aplicação de multa no percentual de 150%, em flagrante violação ao princípio da segurança jurídica.
O que mais chama a atenção, porém, é a previsão do inciso III. Referido enunciado confere à Secretaria da Receita Federal do Brasil a competência para especificar quais os atos ou negócios jurídicos que deverão ser objeto de declaração por parte do contribuinte.
Torna possível, portanto, a inclusão de quaisquer operações, ainda que possuam razões extratributárias relevantes (inciso I) e não contenham cláusulas que desnature os efeitos de um contrato típico (inciso II), dentre aquelas que devem ser informadas à Administração Tributária.
Com previsão desta natureza, completa o quadro de insegurança jurídica, na medida em que acaba delegando à Administração Pública a competência para definir qual o dever que deverá ser cumprido pelas pessoas jurídicas, em flagrante violação ao princípio da legalidade.[4]
Mas não é só. Como já mencionamos, referida Medida Provisória prescreve que, em caso de descumprimento do disposto no art. 7º, ou seja, em caso de omissão do sujeito passivo, será presumido o dolo, razão pela qual se prevê a aplicação de multa no percentual de 150%.
Art. 12. O descumprimento do disposto no art. 7º ou a ocorrência de alguma das situações previstas no art. 11 caracteriza omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa prevista no § 1º do art. 44 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
O conceito jurídico de fraude tributária encontra-se expressamente positivado no artigo 72 da Lei nº 4.502/64 nos seguintes termos:
Art. 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.
A referência ao dolo coloca em destaque o aspecto intrasubjetivo, ou seja, a inquestionável intenção de fraudar. Portanto, para que se configure esse tipo legal, é indispensável a comprovação de que o agente atuou com intenção de obter o resultado ou de assumir o risco de produzi-lo.
Em termos mais diretos: somente com a demonstração da evidente intenção de fraudar é que será possível a aplicação das sanções correlatas. Não se admite, portanto, presunções como aquela existente no art. 12 da MP 685/15 no tocante à configuração de sonegação ou fraude, pois são atos que dependem da vontade do agente.
Ante o exposto, parece-nos que a Medida Provisória 685/15, na sua atual redação, em nada contribui para “aumentar a segurança jurídica no ambiente de negócios do país” e para “diminuir os litígios”, sendo indispensável a alteração de alguns pontos para eliminar dúvidas e conflitos, mas, principalmente, para estimular, de fato, o diálogo entre administradores e administrados.
Notas
[1] A respeito, conferir PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Transparência previne planejamento tributário abusivo, disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jul-11/mariana-pacheco-transparencia-previne-planejamento-tributario-agressivo.
[2] http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2015/julho/mp-685-cria-o-prorelit-e-declaracao-de-planejamento-tributario
[3] Art. 12. O descumprimento do disposto no art. 7º ou a ocorrência de alguma das situações previstas no art. 11 caracteriza omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa prevista no § 1º do art. 44 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996.
[4] Constituição da República: “Art. 5º [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”