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O artigo 285 do Código de Trânsito Brasileiro e o cancelamento de multa

18/09/2003 às 00:00
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I- Introdução

Para a análise precisa da matéria em comento, bem como o devido esclarecimento prévio que a questão enseja, mister se faz, ad initio, a citação do artigo 285 do CTB que assim dispõe:

"Art. 285- O recurso previsto no art. 283 será interposto perante a autoridade que impôs a penalidade, a qual remetê-lo-á à Jari, que deverá julgá-lo em até trinta dias.

§1º- O recurso não terá efeito suspensivo.

§2º – A autoridade que impôs a penalidade remeterá o recurso ao órgão julgador, dentro dos dez dias úteis subseqüentes à sua apresentação, e, se o entender intempestivo, assinalará o fato no despacho de encaminhamento.

§3º – Se, por motivo de força maior, o recurso não for julgado dentro do prazo previsto neste artigo, a autoridade que impôs a penalidade, de ofício, ou por solicitação do recorrente, poderá conceder-lhe efeito suspensivo." (Destacou-se)

Basta a mera análise do dispositivo acima transcrito para constatar que a lei é clara e inequívoca, levando a única conclusão forçosamente:

1º ) A JARI tem, como EXPRESSAMENTE assim prevê o CTB, o prazo de trinta dias para julgar;

2º ) Salvo por foça maior (§ 3º ), o recurso poderá não ser julgado neste prazo, cabendo então à autoridade competente, conceder-lhe efeito suspensivo.

Na esteira deste raciocínio que não destoa, em nenhum momento da margem legal, cumpre tecer as seguintes considerações jurídicas:


I- Do Descumprimento do prazo de 30 (trinta dias) e o Princípio da Legalidade

O administrador está adstrito a obedecer o comando legal. In casu, o que dispõe o artigo 285 do CTB é cristalino, pois não deixa margem de dúvida quanto ao procedimento administrativo a ser adotado, quando há desrespeito notável das normas de trânsito adjacentes.

Assim, alguns entendimentos na seara administrativa vêm equivocadamente caminhando para uma interpretação falha, sustentando que o não cumprimento do prazo previsto no artigo 285 não prejudicaria o julgamento do recurso de trânsito administrativo, induzindo a acreditar que o preceito legal traduz-se em esmera. Contudo, numa análise mais acurada, percebe-se que não prospera esta argumentação, pois o Administrador está estritamente vinculado aos preceitos legais. Descabe a ele questionar o preceito normativo, pois deverá partir-se do pressuposto que a norma vigente possui plena legitimidade e coercitividade.

Vale, por isto mesmo rememorar as insignes lições de Maria Sylvia Di Pietro [1]a respeito:

"(...) Este princípio, juntamente com o controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direito individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.

É aqui que melhor se enquadra aquela idéia de que, na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei.

Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite."

(Destacou-se)

Outros ainda alegam, na relutância de demonstrar que o descumprimento do art. 285 do CTN não deve ensejar a nulidade do julgamento, que a insubsistência do julgado administrativo somente poderia ser cabível quanto à questão de falta dos requisitos necessários para autuação, deixando assim entender, equivocadamente, que descaberia à insubsistência dos julgados quando se tratasse de penalidade já existente e imposta. Se assim fosse, qualquer infrator estaria fadado à sujeição da penalidade imposta mesmo constatadas irregularidades flagrantes.

Tal interpretação induz em erro por parte da Administração em total vulnerabilidade ao administrado. Se na autuação o CTB possui inúmeros detalhes que devem ser observados, tais como a tipificação e local da infração, dentre outros requisitos previstos no artigo 280 do CTB, sob pena de cancelamento da infração, imperioso então que a autoridade administrativa cumpra os demais preceitos estabelecidos pelo Código no que diz respeito à aplicação da penalidade e a forma de julgamento. Descabe, aqui, falar de poder discricionário, porquanto cabe ao administrador, em seu exercício legal, cumprir fielmente o estabelecido por lei. Trata-se, assim, do princípio da legalidade tratado no artigo 37, caput da CF/88.

Mas mesmo assim, caso houvesse alguma dúvida, a interpretação deveria ser também favorável ao administrado.

A multa, como forma penal de punir o agente infrator deve ser interpretada e analisada favoravelmente a este, quando há, alguma dúvida a sanar. Este princípio fundamental tem aplicação em qualquer lei nacional, seja a lei penal stricto sensu, seja a lei tributária, seja a lei administrativa, como se assemelha o CTB.


II- Da Força Maior

Ademais, a extrapolação no prazo de 30 (trinta) dias para o julgamento pela JARI não pode ser justificado pela sobrecarga laboral deste órgão, assemelhando este fato à existência de força maior.

Quanto à força maior, esta se distingue do caso fortuito, porquanto esta diz respeito a evento da natureza extraordinário, enquanto que a força maior se caracteriza, para efeitos legais, como evento humano extraordinário. Vale neste sentido trazer à baila, os dizeres do Mestre Hely Lopes Meirelles [2]:

"Força Maior: é o evento humano que, por sua imprevisibilidade e inevitabilidade, cria para o contratado impossibilidade intransponível de regular execução do contrato. Assim, uma greve que paralise os transportes ou a fabricação de um produto de que dependa a execução do contrato é força maior, mas poderá deixar de sê-lo se não afetar totalmente o cumprimento do ajuste, ou se o contratado contar com outros meios para contornar a incidência de seus efeitos no contrato.

(...) O que caracteriza determinado evento como força maior ou caso fortuito são, pois, a imprevisibilidade (e não a imprevisão das partes), a inevitabilidade de sua ocorrência e o impedimento absoluto que veda a regular execução do contrato. Evento imprevisível mas evitável, ou imprevisível e inevitável mas superável quanto aos efeitos incidentes sobre a execução do contrato, não constitui caso fortuito nem força maior (...) (Destacou-se)

Com esteio nesta lição, percebe-se de forma hialina que se o motivo para a demora no julgamento dos recursos administrativos se dá pela sobrecarga laboral, não estará diante de motivo de força maior, porque se o evento (sobrecarga de processos) é, em tese, imprevisível, encontra-se totalmente possível de ser contornado ou evitável. Neste persuasão, impossível a aplicação do artigo 285, 3º do CTB.

Outro aspecto a ser considerado: na prática quase não há necessidade de realização de perícia e outros mecanismos probais, há simplesmente prorrogação do prazo estabelecido pelo CTB por mera omissão do órgão Julgador. Caso fosse demonstrado, de fato, que os processos reformulados pelo representado precisassem de um tempo maior que os 30 (trinta) dias previstos, casos estes excepcionais, estaria, aí sim, em caso de legítima força maior, eis que tais documentos probantes não dependeriam diretamente dos Julgadores para a sua realização, mas sim de terceiros.

Desta forma, apenas se demonstra não ser este o motivo válido para perpetuar a demora nos julgamentos dos recursos administrativos.


III- Do cancelamento da multa

O certo é que se o CTB não diz expressamente que o descumprimento do prazo ensejará o cancelamento da multa, tampouco estabelece o contrário. Neste caso como a Lei de Trânsito pertinente é omissa, caberá ao administrador agir mediante interpretação teleológica do ordenamento jurídico pátrio. Assim, buscando dirimir o conflito prático existente, foram tomadas as seguintes premissas:

1º) Como trata-se de uma penalidade, a interpretação deve ser favorável ao infrator;

2º) O sentido do artigo 285 do CTB demonstra com clareza a necessidade das autoridades de trânsito cumprirem o prazo legal estipulado de 30 (trinta) dias, pois a própria exceção para o descumprimento foi taxativamente prevista no CTB (força maior), logo não está-se diante de um prazo impróprio. O princípio da legalidade no direito administrativo corrobora para isto, inclusive, na medida em que o administrador deve obedecer restritamente o que a lei determina;

3º) A breve existência da Medida Provisória n° 75/2002, apesar de não mais surtir seus efeitos no mundo jurídico, como sabido, demonstrou a intenção do Poder Executivo Federal em anular as multas que não fossem julgadas no prazo.

Por oportuno, cumpre salientar que a referida MP não foi revalidada por motivos outros. Pois a MP 75/2002 tratava precipuamente de concessões fiscais, parcelamento de débito, REFIS, SIMPLES e outras questões de índole tributária. Até mesmo na exposição de motivos da MP 75/2002 sequer foi mencionada a pretendida alteração que o Poder Executivo pretendia realizar no CTB.

Assim, não é discipiendo lembrar que a mesma não foi convalidada pelo Legislativo pelas razões de ordem tributária, campo que várias vezes pede o instrumento de lei (formal e material). Não houve, no entanto, qualquer menção quanto à alteração pretendida no CTB.

Há o interesse público em que seja cumprido o disposto no artigo 285 do CTB, caso não haja seu fiel cumprimento (como vem ocorrendo em alguns casos) é óbvio que deverá existir um instrumento coator legítimo hábil capaz de aplicar proporcionalmente a falta administrativa cometida a cabível sanção. A aludida MP esboçou o que poderia ser considerado como instrumento sancionatório, o mesmo não se pode dizer, contudo, o CTB (porquanto este quedou-se silente).

Assim, cabe à autoridade administrativa de trânsito competente suprir as lacunas legais, não age em desconformidade com a lei, mas tão somente procura-se sanar a deficiência legislativa nesta questão. O interesse coletivo, por certo, não quer se sentir à mercê do abuso administrativo. Isto é, não pode a Administração Pública utilizar como subterfúgio o suposto "interesse geral" para justificar seu descumprimento legal (o prazo de 30 dias) e a sua arbitrariedade sem escopo em lei.

Quando a Administração deixa de cumprir o prazo de 30 (trinta) dias para o julgamento dos recursos administrativos, ela se distancia, nitidamente, do interesse público. Defeso é, então, após a detecção da irregularidade, sê-la voluntariamente olvidada e posto somente em comento o cancelamento das multas, que é ato conseqüente da verificada irregularidade.


IV- Da Jurisprudência

No caminho perfilhado, vale tecer algumas considerações acerca dos entendimentos consolidados pela jurisprudência pátria. É assente o posicionamento jurisprudencial adotado pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sob a questão em comento:

"ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MULTA DE TRÂNSITO. INOBSERVÂNCIA DO PRAZO DO ART. 285, PARÁGRAFO 3º DA LEI 9.503/97"

1- Se o recurso administrativo interposto em razão de aplicação de multa de trânsito não for julgado no prazo de 10 dias, deve ser-lhe atribuído o efeito suspensivo, previsto no §3º do artigo 285 do Código de Trânsito Brasileiro. (AMS n. 20007100036413-0, 4ª Turma, Rel. Des. Amaury Chaves de Athayde, DJ 18/08/2002) (Destacou-se)

Tal entendimento somente corrobora com as premissas já levantadas, porquanto se não for julgado o requerimento administrativo no tempo estabelecido por lei, caberia à autoridade competente, de ofício, conceder o efeito suspensivo AO MENOS. Entretanto, isto não está sendo verificado, prejudicando o particular pela dupla conduta omissiva das autoridades competentes (a primeira de julgar em tempo hábil, a segunda de, ultrapassado o prazo determinado por lei, conceder ao menos o efeito suspensivo).

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V.Da decadência

O prazo de trinta dias determinado expressamente pelo Código de Trânsito Brasileiro, na realidade, constitui prazo decadencial como procedimento administrativo que representa. A lei, como exposto alhures, não confere ao administrador outra alternativa senão o julgamento naquele prazo, comportando inclusive apenas uma exceção: quando comprovada força maior. Quando não há força maior, não poderá a Administração perpetuar sua ineficiência em total detrimento ao administrado. Cuida-se, assim, de preclusão administrativa, conforme bem nos ensina o Ilustre Doutrinador Nelson Nery Júnior [3]:

"Preclusão- É a perda da faculdade de praticar ato processual. Pode ser temporal, prevista na norma sob comentário, mas também lógica ou consumativa. A preclusão tem como destinatários principais as partes, mas também incide sobre os poderes do juiz, que não pode decidir novamente sobre questões já decididas, salvo as de ordem pública que não são atingidas pela preclusão". (Destacou-se)

Aliás, a eficiência do serviço público também é um dos princípios constitucionais perpetrado no artigo 37, caput da CF/88 e que deve ser sempre visado pelo administrador público, in verbis:

"Art. 37- A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:" (Destacou-se)

Tal conduta omissiva pode até mesmo ensejar aos responsáveis pela conduta, a imputação de improbidade administrativa ante ao total descumprimento dos princípios fundamentais previstos no artigo 37, caput da CF/88.

Neste raciocínio, com a devida acuidade que lhe é peculiar, assim leciona o Ilustre Pontes de Miranda [4]:

"(...) Preclui o que deixa de estar incluído no mundo jurídico. Preclusão é extinção de efeito.- de efeito dos fatos jurídicos, de efeitos jurídicos (direito, pretensão, ação, exceção, "ação", em sentido de direito processual). Prescrição é encobrimento de eficácia, não extinção dela.

Tem-se dado largo uso à expressão decadência, em vez de preclusão. A cada momento fala-se de prazo de decadência, para se nomear prazo de preclusão. O terminus technicus é prazo preclusivo. O direito cai, não decai. (...) Direito preclui, preclui pretensão, preclui ação, preclui exceção; só pretensões e ações prescrevem. Daí ser absurdo dizer-se que os efeitos são os mesmos (e. g. 1º Câmara do Tribunal de Justiça do Paraná, 5 de novembro de 1947, RF 131/506). (Destacou-se)

Por certo, não pode o particular ser responsabilizado pelas flagrantes mazelas oriundas do mau funcionamento da máquina estatal.


CONCLUSÃO

O Código de Trânsito Brasileiro é omisso quanto à conduta administrativa que deve ser realizada, quando o prazo de 30 (trinta) dias para o julgamento de recursos administrativos de multa de trânsito é descumprido. Logo, pelo silêncio legal verificado a respeito, incumbe à autoridade competente, seguindo os princípios da razoabilidade e moralidade (art. 37, caput, CF/88) preencher a lacuna legal. Também deve ser destacado que a multa é uma forma de penalidade e deve ser interpretada restritivamente.

Ante o todo demonstrado, percebe-se com nitidez a obrigatoriedade das autoridades administrativas cumprirem o disposto rigorosamente na Lei de Trânsito. O descumprimento do artigo 285 do CTB enseja o cancelamento da multa, pelos motivos fartamente expostos.


NOTAS

01. DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 14ª Ed. São Paulo. Págs. 67/68.

02. MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 17ª Ed.

03. JÚNIOR. Nelson Nery. Código de Processo Civil Comentado.

04. MIRANDA.Pontes. Tratado de Direito Privado.

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Sobre a autora
Liana Paula Vidal Pacheco

advogada em Brasília (DF), Escritório Cortês e Zupiroli Advogados Associados, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), acadêmica de Filosofia pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PACHECO, Liana Paula Vidal. O artigo 285 do Código de Trânsito Brasileiro e o cancelamento de multa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 77, 18 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4232. Acesso em: 25 abr. 2024.

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