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Judicialização dos conflitos familiares

18/10/2003 às 00:00
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O novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que entra em vigor no próximo ano, ao incorporar o espírito da Constituição de 1988 no tocante à instituição da família, transformou o juiz no grande árbitro dos conflitos familiares.

Alguns exemplos, colhidos aqui e ali, ilustram bem a assertiva: havendo divergência entre o casal no tocante à autorização para casamento do filho menor de 16 anos, pode ele recorrer ao juiz, enquanto no regime anterior prevalecia a vontade paterna (art.1517). A direção da sociedade conjugal, antes atribuída ao marido, passa a ser exercida em colaboração com a mulher. Mas, se eles não entrarem em acordo, podem pedir ao juiz a solução para a controvérsia, a qual será decidida no interesse do casal e dos filhos (art.1567). No Código de 1916, o pátrio poder competia ao marido, que o exercia com a colaboração da esposa. O pátrio poder passou a ser denominado poder familiar, no novo Código, e o seu exercício compete, em conjunto, ao casal. Mas, se no Código anterior prevalecia a vontade paterna em caso de desacordo, no Código atual o árbitro é, uma vez mais, o juiz (art. 1631). A habilitação para o casamento, ato tipicamente cartorário, bem como a separação judicial amigável continuam a passar pelo crivo do juiz, que deve homologá-las (art. 1526 e 1574).

A bem da verdade, a família parece já não mais constituir a preocupação primeira do legislador civil, que elegeu, antes dela, outras prioridades, mais de acordo com os tempos modernos. Basta ver a ordem dos livros que formam os códigos civis velho e novo. No Código de 1916, a ordem dos livros era: Direito de Família, Direito das Coisas, Direito das Obrigações e, por fim, Direito das Sucessões. Representava, como uma seqüência, o ciclo da própria vida: o homem adquiria a maioridade, se casava, criava a família, adquiria propriedade, contraía obrigações, fazia contratos e, por fim, a morte o colhia e vinha o direito regular a distribuição dos seus bens entre os que ficavam.

O novo Código traz novidades: primeiro, Direito das Obrigações; segundo, Direito de Empresa; depois, Direito de Família? Não. Direito das Coisas. O Direito de Família vem em quarto lugar, seguido das Sucessões. É como um retrato da modernidade: o homem adquire a maioridade, contrai obrigações, faz contratos, cria empresas, enriquece ou empobrece, adquire bens ou não, torna-se proprietário ou possuidor e, se der tempo, constitui família. A sucessão vem por último, mesmo porque a ciência genética não conseguiu, por enquanto, nos livrar da morte. Na próxima codificação, quem sabe...

O juiz passará a ser, doravante, o responsável pelo delineamento da instituição familiar nesse início de século. Sem dúvida, uma grande responsabilidade lhe é outorgada – o papel que a sociedade patriarcal e rural do velho Código atribuía ao pater familias, a sociedade cibernética delega ao juiz, terceiro imparcial, representante de um Estado que vai se tornando cada vez mais um big brother. Contraditórias disposições em face do art. 1513 do mesmo Código, que proíbe a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida constituída pela família. Para harmonizar esse dispositivo com os outros é necessário acrescentar: a não ser que essa comunhão não exista, quando então o Estado-Juiz deverá ser acionado.

Diz-se que o novo Código, com essas medidas, insere-se na linha pós-positivista, em que ao juiz é dado um papel de destaque, como elemento integrador de uma nova filosofia de codificação, que se caracteriza por uma estrutura aberta e flexível. O juiz é o elemento fluido que se move no meio dessas normas, dando-lhes vida e abrindo espaço para uma nova faceta do Estado, que prima pela judicialização dos seus conflitos e transforma o magistrado em uma estrela em ascensão, como o fora o legislador, no século XVIII, ou o administrador, nos séculos XIX e XX.

Se a experiência dos outros vale como exemplo, Portugal tem adotado caminho diferente: partiu para a desjudicialização. Medidas relativas a menores ou relações familiares, tais como atribuição de alimentos a filhos maiores, a autorização para utilização ou proibição do uso do sobrenome do cônjuge divorciado, a conversão da separação em divórcio, quando não houver litígio, a reconciliação de cônjuges separados, entre outras, foram transferidas para o Ministério Público ou o próprio Cartório de Registro Civil (Decretos-Leis n. 272 e 273 de 13 de outubro de 2001). É o retorno ao Estado-Administrador das questões que efetivamente não possuíam natureza jurisdicional e foram por isso denominadas de "jurisdição voluntária". O Judiciário português se despe dessas atribuições, para se concentrar naquilo que originariamente lhe cabe: a solução dos conflitos.

As conseqüências da judicialização brasileira são previsíveis: provável aumento do número de demandas, congestionamento do (já sufocado) aparelho judiciário, eternização dos litígios familiares, necessidade de mais juízes, mais funcionários, mais recursos, cidadão insatisfeito, Estado em descrédito.

A solução possível parece ser a apontada e defendida com ênfase pela nobre Ministra FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, do Superior Tribunal de Justiça: Juizados de Conciliação ou de Pequenas Causas, também para a área de família. A experiência envolve custos menores, podendo-se valer de organismos de apoio psicológico e assistencial que não dependam exclusivamente do dinheiro público, como por exemplo, as associações não-governamentais e o voluntariado.

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De qualquer modo, o novo Código revela uma curiosa faceta: apresenta-se como direito em construção, especialmente na área de família, em que para o juiz se transfere a penosa missão de intermediar os complexos (sob o ponto de vista social e humano) conflitos familiares. Dos juízes se espera, no entanto, a sabedoria de deixar preservada a intimidade familiar, utilizando-se dos meios que levem ao seu fortalecimento e não à sua dissolução. Afinal, ainda que sob nova roupagem, a família continua a ser, como já dizia RUI no início do século que findou, o refúgio e o conforto do indivíduo, a primeira escola, a célula formadora do grande organismo que é a pátria.

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Sobre a autora
Mônica Sifuentes

Desembargadora Federal do TRF 1ª Região. Mestre em Direito Econômico e Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIFUENTES, Mônica. Judicialização dos conflitos familiares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 107, 18 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4242. Acesso em: 20 abr. 2024.

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