Os reflexos práticos da aplicação da teoria da tipicidade conglobante no ordenamento jurídico brasileiro

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03/09/2015 às 13:03

Resumo:


  • A teoria da tipicidade Conglobante, criada por Eugênio Raul Zaffaroni, busca integrar o Direito Penal ao ordenamento jurídico, considerando não apenas a tipicidade formal, mas também a material e a antinormatividade do ato.

  • Essa teoria desloca o estrito cumprimento de um dever legal e o exercício regular de direito da ilicitude para a tipicidade, alterando o fundamento das decisões de arquivamento de inquérito policial e de absolvição sumária.

  • A adoção da tipicidade Conglobante no processo penal implica na inversão do ônus da prova, passando a acusação a ter que demonstrar a inexistência de causas excludentes da antinormatividade, que anteriormente eram de responsabilidade da defesa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo visa discutir, de modo direto, em que consiste a Teoria da Tipicidade Conglobante, a partir da evolução da construção da tipicidade penal, bem como apresentar os principais reflexos de ordem prática da mencionada teoria de Zaffaroni.

INTRODUÇÃO

A teoria da tipicidade Conglobante, idealizada pelo penalista argentino Eugênio Raul Zaffaroni, surge, conforme as palavras do renomado jurista, como um “corretivo da tipicidade legal”, visando a harmonia do Direito Penal com todo o ordenamento jurídico.

A celeuma na qual gravita o presente trabalho reside nos seguintes questionamentos: existiria alguma relevância prática na aplicação da Teoria da Tipicidade Conglobante? Para alcançarmos com segurança as respostas das citadas interrogações, far-se-á necessário, no primeiro capítulo, breve análise da evolução histórica da tipicidade legal, originário da doutrina penal alemã, até chegarmos ao segundo capítulo onde será sinteticamente apresentada a teoria da tipicidade Conglobante, caracterizada como um juízo posterior à aferição da tipicidade formal, na qual necessita do preenchimento da antinormatividade e de tipicidade material.

O terceiro e derradeiro capítulo abordará os reflexos de ordem prática quando da aplicação da mencionada teoria no caso concreto, valendo citar com destaque a alteração do fundamento das decisões absolutórias (sumária ou não), o fundamento da decisão de arquivamento de inquérito policial, bem como a inversão do ônus da prova diante de eventual estrito cumprimento de um dever legal ou exercício regular de um direito como causas excludentes da própria tipicidade.

1. DEFINIÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TIPO E DA TIPICIDADE

A evolução do conceito de tipo e tipicidade foi ganhando traços a partir da dogmática penal alemã em meados do século XVIII. Na lição de José Cirilo de Vargas, a palavra tipo “constitui uma tradução livre do vocábulo Tatbestand, empregada no texto do art. 59 do Código Penal alemão de 1871, e provinha da expressão latina corpus delicti. O tipo, portanto, é a descrição precisa do comportamento humano, feita pela lei penal.”[1]

Com isso, o tipo e a tipicidade não possuíam definição própria, impossibilitando suas análises de forma detalhada, restando ambas contidas no conceito de Tatbestand. Nesse sentido, leciona Damásio de Jesus:

A expressão Tatbestand é composta de Tat (“fato”) e bestehen (consistir), significando aquilo em que o delito consiste. O Tatbestand era, então, o fato do delito, o seu conteúdo real. Era o conjunto de todos os caracteres do delito, de natureza interna ou externa e essenciais à sua existência. Compreendia até o dolo e a culpa.[2]

Tipo e tipicidade só ganharam conceitos próprios a partir do início do século XX, através de Beling em sua obra Die Lehre von Verbrechen, publicada em 1906. Assim preleciona Cezar Roberto Bitencourt:

A moderna compreensão do tipo, no entanto, foi criada por Beling, em 1906, libertando-o daquela esdrúxula compreensão. A elaboração do conceito de tipo proposto por Beling revolucionou completamente o Direito Penal, constituindo um marco a partir do qual se reelaborou todo o conceito analítico de crime. O maior mérito de Beling foi tornar a tipicidade independente da antijuridicidade e da culpabilidade, contrariando o sentido originário do Tatbestand inquisitorial.[3]

Partindo desse marco, destacamos três etapas na evolução do tipo de maior relevância: etapa de independência, etapa da ratio congnoscendi da antijuridicidade, e etapa da ratio essendi da antijuridicidade.

Antes de adentrarmos ao estudo pormenorizado de cada uma das etapas acima mencionadas, vale mencionar que tais etapas de evolução da tipicidade, não rara as vezes, são mencionadas por parte da doutrina como etapas de desenvolvimento do tipo. Isso porque no início da evolução da dogmática penal moderna a tipicidade e o tipo não possuíam contornos definidos, induzindo, por vezes, a este equívoco. Sendo assim, nos tópicos seguintes, eventuais referências doutrinárias acerca do desenvolvimento do tipo deverá ser interpretado como desenvolvimento da própria tipicidade à luz do que foi exposto.

1.1. TEORIA DA AUTONOMIA OU ABSOLUTA INDEPENDÊNCIA

Conforme mencionado no tópico anterior, anteriormente a Beling, a existência da tipicidade estava umbilicalmente ligada ao conceito de Tatbestand, que em suma limitava-se a soma de todos as peculiaridades do delito, abrangendo, inclusive, a materialidade do fato criminoso, bem como a antijuridicidade e a culpabilidade.

Mudando toda a compreensão do tipo e da tipicidade, Beling idealiza a teoria da absoluta independência ou da autonomia, na qual o tipo passou a possuir caráter puramente descritivo. Segundo ensina Rogério Greco, “não havia sobre ele valoração alguma, servindo tão somente para descrever as condutas proibidas (comissivas e omissivas), pela lei penal”[4].

Conforme preleciona Fragoso,

Com a obra de Beling, Die Lehre von Verbrechen, publicada em 1906, o conceito de Tatbestand, ou seja, o conceito de tipo, assumiu um significado técnico mais restrito. Para Beling o tipo não tem qualquer conteúdo valorativo, sendo meramente objetivo e descritivo, representando o lado exterior do delito, sem qualquer referência à antijuridicidade e à culpabilidade. Haveria no tipo, tão somente, uma delimitação descritiva de fatos relevantes penalmente, sem que isso envolvesse uma valoração jurídica dos mesmos.[5]

Em síntese, a tipicidade era isenta de qualquer juízo de valoração, não possuindo nenhuma relação com a antijuridicidade e com a culpabilidade. Segundo Beling, se o agente mata alguém com a ressalva de estar amparado pela legítima defesa, excluir-se-á a antijuridicidade, mas o fato permanecerá típico.

1.2. TEORIA DA INDICIARIEDADE OU RATIO COGNOSCENDI

Apesar da importância do trabalho e contribuição de Beling, separando de maneira clara os elementos integrantes da estrutura analítica do crime, conferindo ao tipo função puramente descritiva de condutas, suas ideias não foram bem vistas pela doutrina e logo começaram a surgir as críticas.

Com isso, em 1915 Max Ernst Mayer, através de seu Tratado de direito penal, reestruturou o conceito de tipo legal que, ao contrário de Beling – que isolava a tipicidade da antijuridicidade, atribuindo-lhe caráter meramente descritivo –, Mayer ampliou o seu conceito, concedendo ao fato típico função de indício da antijuridicidade, aceitando também elementos normativos do tipo.

Citando Francisco Muñoz Conde, Rogério Greco assim exemplifica:

Numa segunda fase, o tipo passou a ter caráter indiciário da ilicitude. Isso quer dizer que quando o agente pratica um fato típico, provavelmente, esse fato também será antijurídico. A tipicidade de um comportamento, segundo Muñoz Conde, “não implica, pois, a sua antijuridicidade, senão apenas indício de que o comportamento pode ser antijurídico (função indiciária do tipo)”. O tipo, portanto, exercendo essa função indiciária, é considerado a ratio cognoscendi da antijuridicidade.[6]

Debruçando-se sobre o tema, Zaffaroni e Pierangeli ilustram a teoria da ratio congnoscendi aduzindo que “a tipicidade se comporta a respeito da antijuridicidade como fumaça em relação ao fogo”.[7] Logo, segundo esta teoria, conclui-se que a existência do fato típico gera presunção iuris tantum de ilicitude, invertendo-se o ônus da prova diante de discriminantes.

1.3. TEORIA DA ABSOLUTA DEPENDÊNCIA OU RATIO ESSENDI

A teoria da ratio essendi, idealizada por Edmund Mezger no ano de 1931, rejeitou a natureza puramente descritiva do tipo proposta por Beling, afunilando ainda mais o vínculo que Mayer apresentara entre a tipicidade e a antijuridicidade. Dessa forma, para Mezger a tipicidade passou a ser a ratio essendi da antijuridicidade, sua própria razão de ser.

Para esta teoria, há uma verdadeira junção entre o fato típico e a antijuridicidade, de maneira que, uma vez afastada a antijuridicidade por qualquer das causas justificantes, estar-se-ia eliminando o próprio fato típico.

Exemplificando, Rogério Greco afirma que:

O art. 121 do Código Penal, para aqueles que adotam a teoria da ratio essendi, estaria assim redigido: “Matar alguém, ilicitamente”. O fato, parra essa teoria, ou é típico e antijurídico desde a sua origem, em razão da ausência de qualquer causa de exclusão da ilicitude, ou é atípico desde o início, em face de uma causa de justificação.[8]

Na esteira desta teoria, surgiu a teoria dos elementos negativos do tipo, sustentada por Hellmuth Von Weber, chegando no mesmo resultado alcançado pela teoria rario essendi, entretanto por caminho diverso, entendendo que o tipo penal é composto de elementos positivos (explícitos) e elementos negativos (implícitos), concluindo que a presença de um tipo permissivo configurador de uma causa de justificação eliminará a tipicidade.

Também partindo da teoria da absoluta dependência, porém com menos enfoque, há a teoria do tipo de injusto atualmente defendida por Paul Bockelmann, segundo a qual “a tipicidade também implica a antijuridicidade, mas esta última pode ser excluída por uma causa de justificação em uma etapa de análise posterior”.[9]

Justamente por transformar a tipicidade na própria razão de ser da antijuridicidade, a teoria ratio essendi foi alvo de diversas críticas. Não economizando críticas às variantes da teoria ratio essendi – teoria dos elementos negativos do tipo e teoria do tipo de injusto –, Zaffaroni e Pierangeli pontificam que:

A teoria dos elementos negativos do tipo faz retroagir a teoria do delito aos tempos anteriores à introdução do conceito de tipo penal, a este reduzindo a dois caracteres específicos.

A teoria do tipo de injusto não procede racionalmente, porque não é coerente que um estrato afirme aquilo que no seguinte pode ser negado, que num estrato se ponha o que no seguinte se tira.[10]

Em suma, podemos concluir quem de acordo com a teoria ratio essenti, a antijuridicidade é a própria essência da tipicidade, existindo uma relação de absoluta dependência entre ambas.

1.4. TEORIA ADOTADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

No Brasil, apesar de parcela minoritária que ainda resiste, a jurisprudência e doutrina[11] majoritárias defendem a segunda das teorias ora aqui trabalhadas, qual seja a teoria da ratio cognoscendi.[12]

Nessa vertente, assegura Flávio Monteiro de Barros que “a concepção ideal para a tipicidade decorre da conjugação da teoria da indiciária, decorrente da teoria da tipicidade indiciária, desenvolvida por Beling e Mayer, mesclada com as ideias finalistas.”[13]

Considerando a teoria adotada pelo ordenamento jurídico pátrio, antes de adentrarmos propriamente ao estudo da teoria da tipicidade conglobante, imperioso se faz destacar que – especialmente para melhor entendimento do desfecho do presente trabalho – para a teoria ratio cognoscendi não cabe à acusação provar a inexistência de eventual causa justificante, uma vez que a acusação só possui o ônus de provar que o fato é típico. Debruçando-se sobre o tema, já esclareceram Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel que “cumpre à defesa provar a existência da discriminante e, portanto, a licitude do fato típico e, consequentemente, a inexistência de crime.”[14]

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2. A TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE DE ZAFFARONI

Partindo da premissa de que a estrutura analítica do crime é composta pelos substratos fato típico, ilicitude e culpabilidade, para o estudo da teoria da tipicidade Conglobante faz-se necessário melhor análise dos dois primeiros, em especial quanto à tipicidade penal – figurando como um dos elementos do fato típico[15].

A percepção quanto à tipicidade penal tem evoluído conforme as diversas concepções sobre o Direito Penal que surgiram ao longo do tempo.

Inicialmente, segundo uma corrente mais tradicional, fruto de um positivismo rígido, a tipicidade era compreendida sob o aspecto estritamente formal, ou seja, para o preenchimento da tipicidade penal bastava a mera subsunção do fato à norma.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, fortemente influenciada pela teoria do garantismo penal do italiano Luigi Ferrajoli, a doutrina – classificada por alguns como doutrina moderna – entendeu que a mera subsunção do fato à norma era insuficiente para o preenchimento da tipicidade penal, merecendo, também, juízo de valoração sobre a relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Em outras palavras, a tipicidade penal englobaria, além da tipicidade formal, a tipicidade material[16].

Fortalecendo a concepção anterior, Eugênio Raul Zaffaroni concebe a teoria da tipicidade Conglobante, servindo como verdadeiro corretivo da tipicidade penal.

Segundo esta teoria, a tipicidade penal é composta pela soma dos elementos tipicidade formal e tipicidade Conglobante, e, esta última, por sua vez, compreendida pela tipicidade material e antinormatividade do ato (ato não fomentado ou não determinado por lei).

Sintetizando a finalidade da teoria da tipicidade Conglobante, vale citar o magistério de Rogério Sanches Cunha:

A proposta da teoria da tipicidade Conglobante é harmonizar os diversos ramos do direito, partindo-se da premissa de unidade do ordenamento jurídico. É uma incoerência o Direito Penal estabelecer proibição de comportamento determinado ou incentivado por outro ramo do Direito (isso é desordem jurídica). Dentro desse espírito, para se concluir pela tipicidade penal da conduta causadora de um resultado, é imprescindível verificar não apenas a subsunção formal fato/tipo e a relevância da lesão, mas também se o comportamento é antinormativo, leia-se, não determinado ou incentivado por qualquer ramo do Direito.[17]

Sendo assim, o Direito Penal deve harmonizar-se com os demais ramos do ordenamento jurídico, de tal modo que não se poderá considerar típica eventual conduta determinada ou fomentada por outro ramo do Direito (Direito Civil, Administrativo, Constitucional, Tributário, etc.).

De fato, haveria verdadeira incoerência o Direito Penal considerar típico determinado comportamento incentivado ou até mesmo imposto por outro ramo do Direito.

Exemplificando, segundo Zaffaroni, o oficial de justiça no cumprimento de uma ordem, executa a penhora e o sequestro de um quadro, pertencente à um devedor, apesar de presentes a tipicidade formal e a tipicidade material, não existe tipicidade penal, pois o ato do oficial não é antinormativo, mas normativo, determinado por lei (no caso, pelo Código de Processo Civil)[18].

3. REFLEXOS PRÁTICOS DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE

Passa-se agora ao cerne do presente trabalho, analisando os principais reflexos da aplicação da teoria da tipicidade Conglobante, demonstrando-se não se tratar de questão meramente acadêmica, mas sim de enorme importância, em especial no processo penal.

3.1. EXCLUSÃO DA TIPICIDADE DIANTE DO ESTRITO CUMPRIMENTO DE UM DEVER LEGAL OU EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO – DECISÃO DE ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL E DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA

Conforme analisado em capítulo anterior, segundo a teoria em debate, para que haja tipicidade penal é necessário que o ato praticado pelo agente seja antinormativo, vale dizer, não determinado ou não incentivado pelo Direito.

Com isso, a tipicidade Conglobante tem como consequência, dentro da estrutura analítica do delito, o deslocamento do estrito cumprimento de um dever legal e do exercício regular de direito fomentado do substrato ilicitude para a tipicidade penal, como consequentes causas de sua exclusão[19].

Partindo dessa premissa, podemos destacar a alteração do fundamento nas decisões de arquivamento de inquérito policial e de absolvição sumária diante de causas manifestas de estrito cumprimento de um dever legal e de exercício regular de um direito.

O artigo 397 do Código de Processo Penal elenca as hipóteses que autorizam o magistrado a proferir sumariamente sentença absolutória, dentre elas quando houver manifesta causa excludente da ilicitude do fato (inciso I), e, quando o fato evidentemente não constituir crime, leia-se, atipicidade (inciso III).

Quanto aos fundamentos que autorizam o arquivamento de inquérito policial, apesar da omissão do CPP, a doutrina majoritariamente entende pela possibilidade de aplicação por analogia dos fundamentos das decisões que autorizam a rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária. Nesse sentido, precisas são as lições de Renato Brasileiro de Lima:

O Código de Processo Penal silencia acerca das hipóteses que autorizam o arquivamento do inquérito policial, ou, a contrario sensu, em relação às situações em que o Ministério Público deve oferecer a denúncia. Em que pese o silencio do CPP, é possível a aplicação, por analogia, das hipóteses de rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária, previstas nos arts. 395 e 397 do CPP, respectivamente[20].

Logo, uma vez aplicada a teoria da tipicidade Conglobante, e, diante de eventual causa de estrito cumprimento de um dever legal ou de exercício regular de direito, seja na fase inquisitorial seja quando da possibilidade de absolvição sumária, o fundamento da decisão de arquivamento e da decisão de absolvição sumária deixará de ser o constante do inciso I, do art. 397, do CPP, e passará a ser o inciso III da referida norma.

Não obstante, prosseguindo a persecução penal e, ao final, sendo constatado uma das citadas causas excludentes da tipicidade Conglobante, o fundamento da sentença absolutória deixaria de ser o constante do inciso VI, do art. 386, do CPP, e passaria a ser o constante do inciso III da norma mencionada.

Portanto, o primeiro reflexo de ordem prática da teoria objeto deste trabalho é a alteração do fundamento das sentenças de natureza absolutória e da decisão de arquivamento de inquérito policial.

3.2. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

O segundo reflexo prático quanto à aplicação da teoria da tipicidade Conglobante – e, ao nosso ver, a consequência de maior relevância prática – se dá quando da análise do ônus da prova no processo penal.

Não obstante, antes de adentrarmos propriamente à inversão do ônus da prova ocasionado pela teoria em estudo, imperioso se faz breve análise da distribuição do ônus da prova no processo penal.

Considerando que a Lei nº 11.690/08 não alterou a redação da primeira parte do art. 156 do CPP (“a prova da alegação incumbirá a quem o fizer”), torna-se necessário apontar qual é o ônus da acusação e da defesa.

Como alhures aludido, uma vez que o sistema pena pátrio tem adotado por maioria a teoria da indiciariedade ou ratio cognoscendi[21], prevalece na doutrina[22] a tese de que há verdadeira distribuição do ônus probatório entre a defesa e a acusação.

A partir da regra insculpida no art. 333, inciso I, do Código de Processo Civil, e, diante do disposto no art. 156 do CPP, recai sobre a acusação a prova da existência do fato típico, da relação de causalidade, do elemento subjetivo do agente (dolo ou culpa) e da autoria ou participação.

Para a defesa, uma vez que o fato típico é incendiário da ilicitude e, por conseguinte, ambos são incendiários da culpabilidade, recai o ônus de provar eventuais causas justificantes ou exculpantes.

Nesse interim, por mais uma vez vale citar os ensinamentos de Renato Brasileiro de Lima:

...incumbe à acusação tão somente a prova da existência do fato típico, não sendo objeto da prova acusatória a ilicitude e a culpabilidade. O fato típico constitui expressão provisória da ilicitude e o injusto penal (fato típico e ilicitude) é indício da culpabilidade respectiva. Comprovada a existência do fato típico, portanto, haveria uma presunção de que o fato também seria ilícito e culpável, cabendo ao acusado infirmar tal presunção[23].

Diante das informações acima, há de se concluir que uma vez adotada a teoria da tipicidade Conglobante, e, diante de eventual estrito cumprimento de um dever legal ou exercício regular de um direito, haverá verdadeira inversão do ônus da prova da defesa para a acusação. Ora, uma vez que as citadas causas (anteriormente justificantes) passam a excluir a própria tipicidade penal e, por conseguinte, o fato típico, não caberia mais à defesa a prova de suas existências, visto que caberia à acusação demonstrar a inexistência de tais causas.

Por fim, quanto a tal entendimento não há óbice e nem se contradite que seria impossível à acusação demonstrar a inocorrência das excludentes da antinormatividade porque corresponderia ao ônus de provar fato negativo. Verdadeiramente, o impossível seria provar alegações de fatos indeterminados, fossem eles negativos ou positivos. Agora, “se o fato negativo for determinado, é perfeitamente possível comprovar sua inocorrência através da prova de fatos positivos contrários ou com ele incompatíveis”[24].

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese a resistência de parcela da doutrina em não admitir a aplicação da teoria da tipicidade Conglobante no ordenamento jurídico pátrio[25], há de se concluir, após as considerações sintetizadas no presente trabalho, não se tratar de discussão meramente acadêmica, possuindo relevantes reflexos no âmbito da persecução penal.

Vale frisar que o presente trabalho não possui a pretensão de esgotar o assunto – especialmente, em razão dos limites objetivos estruturais permitidos –, mas sim apresentar os reflexos de ordem prática da teoria apresentada por Zaffaroni, quais sejam a alteração do fundamento das decisões absolutórias (sumária ou não) e decisões de arquivamento de inquéritos policiais diante de manifestas causas de estrito cumprimento de um dever legal ou exercício regular de direito, bem como a inversão do ônus da prova da defesa para a acusação defronte das mencionadas causas excludentes da antinormatividade, reforçando a necessidade de adoção da teoria da tipicidade Conglobante não apenas por se tratar de verdadeiro corretivo da tipicidade penal, mas também por harmonizar-se com os princípios norteadores do sistema penal, como o princípio da ratio cognoscendi, paridade de armas, dentre outros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CAPEZ, Fernando. Direito Penal – Parte Geral – Volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.

DE LIMA, Renato Brasileiro. Curso de Processo Penal – Volume Único. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2013.

ESTEFAM, André. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

FRAGOSO, Heleno Claudio. Conduta punível. São Paulo: Bushatsky, 1961.

GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de. Direito Penal Parte Geral. 2ª ed. rev. ampl. E atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. A teoria “ratio cognoscendi” e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude. Disponível em: <http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=2009030915201770&mode=print>. Acesso em 12 de dezembro de 2014.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 15ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2013.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Volume 1 – Parte Geral. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. Belo Horizonte: UFMG, 1997.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – volume 1 – Parte Geral. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

 

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Sobre o autor
Diego Luiz Victório Pureza

Advogado. Pós-Graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp LFG. Pós-Graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Anhanguera Uniderp - LFG. Pós-graduando em 'Corrupção: controle e repressão a desvios de recursos públicos'. Membro da Comissão 'OAB vai à escola' da 36ª Subseção da OAB/SP. Palestrante e Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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