RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar, de modo panorâmico, a natureza jurídica da ação popular constitucional, a nível teórico, normativo e jurisprudencial. Para isso, procura responder ao seguinte problema: “Qual a natureza jurídica da ação popular constitucional?”. O dilema jurídico existente entre considerar a referida ação como de natureza jurídica de direito público ou de direito subjetivo fundamental é o pressuposto da pesquisa, que fomentou a produção deste artigo. A opção metodológica, para a elaboração da pesquisa foi pela revisão bibliográfica, recorrendo-se, outrossim, à análise documental das normas jurídicas brasileiras. Os métodos foram, simultaneamente, exploratório e descritivo.
Palavras-chave: Ação Popular Constitucional, Natureza Jurídica, Direito Subjetivo Fundamental.
O reconhecimento da ação popular constitucional como um direito subjetivo fundamental – e não como um direito político –, requer a prévia compreensão de sua natureza jurídica, haja vista a compreensão da natureza jurídica de um determinado instituto, anterior a quaisquer outros aspectos, viabilizar e factibilizar o conhecimento de suas mais expressivas características e aptidões.
Ademais, Câmara (2013, p. 167) destaca que
O Direito é uma ciência formada por uma série de institutos, os quais podem ser agrupados em categorias jurídicas mais amplas, em uma relação de espécie e gênero. Assim, por exemplo, os institutos da fiança, da compra e venda e da locação podem ser agrupados na categoria dos contratos. [..] Verifica-se, assim, muito facilmente, que os diversos institutos jurídicos podem ser agrupados em categorias jurídicas, sendo estas o gênero, e aqueles as espécies. Quando se perquire a natureza jurídica de um instituto, o que se pretende é fixar em que categoria jurídica o mesmo se integra, ou seja, de que gênero aquele instituto é espécie.
Destarte, identificar a natureza jurídica da ação popular significa, em poucas palavras, determinar a categoria jurídica a qual pertence ou o gênero do qual é espécie jurídica.
Tendo em vista essa constatação, destaca-se que a primeira confusão, sobre a natureza jurídica da ação popular, seria o seu entendimento como um direito político. A doutrina, em especial jusconstitucionalista e jusadministrativista, majoritariamente, a entende dessa maneira. Se nem sempre a doutrina expressa de forma direta esse posicionamento, pode ele ser identificado quando o autor efetiva uma leitura restritiva e estreita da legitimidade ativa da ação popular. Nesse caso, é comum ter-se como base ou referência a redação da desatualizada da Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965), para restringir a sua legitimidade ativa à figura do cidadão-eleitor, uma vez que o seu art. 1º, §3º, exige, como prova da cidadania, o título de eleitor ou documento similar.
Nesse ínterim, não seria difícil conceber a ação popular como um direito político, ao observar-se, pelo raciocínio acima, que o “sujeito” da mencionada ação seria o (cidadão-)“eleitor”. Não seria de se estranhar que, com a reflexão acerca do assunto, chegar-se-ia naturalmente à seguinte conclusão: “todo o direito cuja legitimidade ativa encontra repouso na órbita pessoal do cidadão, enquanto eleitor, é um direito político” (BRITO, 2010, p. 93). Isso porque a substância ou a carga valorativa do “eleitor” está intimamente vinculada com o exercício específico dos direitos políticos.
Não obstante pareça coerente o argumento destacado, não é tecnicamente adequado para determinar-se a natureza jurídica da ação. Primeiro, porque é questionável a exclusividade do eleitor para o exercício da legitimidade ativa no ajuizamento da ação popular. Segundo, por existir uma reflexão mais coerente sobre qual seria a natureza jurídica da ação popular, a ser abordada a seguir.
Jurista que inaugurou as críticas ao posicionamento majoritário doutrinário, Monte Alegre (1992), em seu artigo “A Ação Popular não é Direito Político”, contrapõe-se, convincentemente, ao enquadramento da ação popular como um direito político.
O primeiro argumento de Monte Alegre (1992), contrária à juspolitização da ação popular, fixa-se no fato de que, na Carta Constitucional de 1988, a ação popular não está elencada como um direito político. Sobre esse argumento, realmente, não se discorda do autor, pois o art. 14 da Constituição Federal de 1988 apenas relaciona, como únicos meios para o exercício da soberania popular, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (incisos I, II e III), assim como o sufrágio universal, exercido através do voto secreto, direto e igual (caput). Isto posto, percebe-se, portanto, que o art. 14 não abarcou a ação popular, tal qual todo o capítulo IV, que versa sobre os direitos políticos. Quis, portanto, o constituinte, ao que parece, excluir a ação popular, do rol magno de direitos políticos.
Nesse sentido, Monte Alegre (1992, p. 125) enfatiza que
Relativamente aos direitos políticos, tal como aparecem na listagem constitucional, tenho como certo que a fidelidade do investigador jurídico às palavras da Constituição, aliada ao local que esta lhes reservou, haverão de conduzi-lo, no processo de conhecimento e descrição do fenômeno jurídico, à conclusão de que:
─ é de direitos subjetivos que se cogita, o que vale dizer direitos de um determinado sujeito, por oposição a direito objetivo, expressão designativa do direito legislado;
─ na categoria de direitos subjetivos, compõem a família dos direitos subjetivos públicos, em contraste aos direitos subjetivos privados;
─ dizem todos eles com o exercício da soberania, como expressão da vontade geral;
─ e, enfim, como direitos subjetivos, são exigentes da idéia de poder jurídico por parte de quem os titularize.
Monte Alegre (1992), assim, evidencia que o art. 14 não abrange a expressão da vontade estatal pela função judicial. Subtende-se desse entendimento que não abarcando, o referido artigo (que compreende, constitucionalmente, os direitos políticos), a expressão da vontade estatal pela função judicial, não haveria como se considerar, portanto, a ação popular, manifestação judiciária da soberania popular, ou seja, como um direito político, pois, se direito político fosse, teria sido implantado, pelos constituintes, nas entranhas do art.14.
Complementa o autor:
[...] não se consegue ler uma linha sequer no artigo constitucional relativo aos direitos políticos que tenha alguma coisa a ver com o exercício da função judicial, que se realiza contenciosamente e cujos atos exprimem também a vontade estatal (MONTE ALEGRE, 1992, p. 126).
Se, por tudo já discutido, torna-se inviável vislumbrar-se a ação popular como um direito político, resta tão-somente estabelecer qual é, de fato, a sua natureza jurídica.
De início, observar-se-á o posicionamento da ação na ordem constitucional. A ação popular situa-se no Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, no art. 5º, LXXIII, da Carta Constitucional de 1988. Analisando-se, em seguida, a redação do inciso, detectar-se-á que, substancialmente, trata-se de um direito. Considerando ambas observações, resta reconhecer à ação popular a condição de direito fundamental.
Salienta-se que essa foi a compreensão do constituinte acerca da natureza jurídica da ação popular, caso contrário a teria inserido, em uma outra localização constitucional, diversa daquela destinada ao supracitado Título II. Destarte, tendo sido esse o entendimento manifestado pelos constituintes, respaldam-se as críticas à sua qualificação como um direito político (BRITO, 2010).
Compreendendo-se a ação popular como um direito fundamental, resta, por conseguinte, estabelecer qual a natureza desse direito. Nessa ótica, cabe adotar a já anteriormente citada afirmação de Monte Alegre (1992): “é de direitos subjetivos que se cogita, o que vale dizer direitos de um determinado sujeito, por oposição a direito objetivo, expressão designada a direito legislado” (MONTE ALEGRE, 1992, p. 125).
Acerca do entendimento de Monte Alegre (1992), não há no que discordar-se, já que a redação constitucional do inciso LXXIII, do art. 5º, estabelece para o sujeito “cidadão”, a capacidade de exercício da ação popular. Logo, trata-se de um direito subjetivo. Acrescenta-se, outrossim, que a ação popular, do modo como se apresenta, não evidencia uma imposição legal, isto é, quando o constituinte diz que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular (...)”, delibera, implicitamente, que cabe a qualquer um, enquanto cidadão, optar pelo ajuizamento ou não dessa ação. Caso contrário, ter-se-ia redigido o inciso LXXIII de outra forma, de modo a evidenciar o dever de todo cidadão no ajuizamento da ação popular. Em suma, estipulou-se a ação popular constitucional como uma faculdade de agir do cidadão, o que leva a entendê-la como facultas agendi, ou seja, direito subjetivo (BRITO, 2010).
Esse entendimento torna-se mais claro ao observar-se, especificamente, a ação popular ambiental. Segundo o caput do art. 225 da Carta Constitucional de 1988, impõe-se à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente, ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações. Destaca-se, no entanto, que o exercício desse dever de proteção ambiental poderá ser efetivado de inúmeras formas. Com a realização de passeatas, com o agrupamento de cidadãos em organizações não-governamentais de cunho ambiental, coma realização de campanhas de educação ambiental pelos cidadãos e, dentro de casa, por meio da ação isolada de cada indivíduo (economizando água, por exemplo), poder-se-á cumprir com o dever constitucional de proteção ambiental. A propositura da ação popular ambiental é apenas um dos meios de cumprir com esse dever (BRITO, 2010).
Nessa conjectura, há de separar-se o direito ao meio ambiente (trazido no art. 225), do direito de ajuizar a ação popular (contido no inciso LXXIII, do art. 5º). Enquanto este trata-se unicamente de um direito fundamental de ordem subjetiva, aquele, por interesse constitucional, além de ser um direito difuso, tem a sua proteção como um dever de cada cidadão e, inclusive, do Poder Público. Dessa maneira, fica evidenciado que o dever constitucionalmente determinado é o de proteção do bem ambiental e não o de utilização da ação popular para essa proteção. Nesse cenário, o ajuizamento da ação popular ambiental é uma faculdade de cada cidadão, isto é, um direito subjetivo, cabendo a cada um decidir o modo como vai cumprir com o seu dever constitucional de proteção ambiental: se através de passeatas ou campanhas de educação ambiental; se pelo ajuizamento de uma ação popular ambiental, quando legitimado para tanto, ou de uma ação civil pública, por intermédio de uma associação civil formalmente constituída, de regra, há pelo menos um ano; se pela formalização de uma representação no Ministério Público ou por meio de quaisquer outras iniciativas (BRITO, 2010).
Em síntese, a faculdade, a prerrogativa, de ajuizamento (ou não) da ação popular, nesse caso, é o que caracteriza esse instrumento constitucional como um direito subjetivo. Nas palavras de Montoro (2000, p. 441),
a realidade objetiva e concreta é a existência de direitos subjetivos, como verdadeiras prerrogativas ou faculdades conferidas a indivíduos e entidades pela ordem jurídica positiva de todas as nações. Direitos do pai, da esposa, dos filhos; direitos do Estado, dos Municípios, das Associações; direitos do empregado, do empregador, do cidadão (grifos nossos), do proprietário, do credor, do inquilino. Não se trata apenas de normas em relação a determinados sujeitos e situações, mas de poderes, faculdades ou prerrogativas, sem dúvida derivados da norma, mas distintas dela. Não são a própria norma. São outra coisa.
Ante a lição de Montoro (2000), faz-se nítida a compreensão da ação popular como um direito subjetivo, por ser uma prerrogativa ou faculdade de cada cidadão. Todavia, para estancar quaisquer dúvidas, faz-se relevante observar se a ação popular possui todos os elementos necessários à configuração de um direito subjetivo.
Na perspectiva de Montoro (2000), são elementos do direito subjetivo os seguintes: a) sujeito; b) objeto; c) relação jurídica; e d) proteção. Por consubstanciarem-se como elementos (o sujeito, o objeto, a relação jurídica e a proteção), a ausência de um deles, de certo, descaracterizará o direito, enquanto direito subjetivo (BRITO, 2010). Aí repousa a importância de constatar-se a existência de todos os mencionados elementos na ação popular. Para tanto, analisar-se-á situação que se relacione à ação popular ambiental.
Em um primeiro instante, cabe constatar a existência do primeiro elemento: o sujeito. O sujeito é dividido em ativo (o autor da ação) e passivo (aquele em face do qual é impetrada ação). É sujeito ativo da ação popular ambiental, segundo a redação do inciso LXXIII do art. 5º da C.F. de 1988, o cidadão. Por sua vez, é caracterizado como sujeito passivo toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, que, através de sua ação ou omissão, lese ou, potencialmente, possa lesar o meio ambiente. Cabe ressaltar que a definição do que venha a ser cidadão será realizada mais à frente, no tópico referente à legitimidade ativa, da mesma maneira que, também mais à frente, será estudado mais intensamente o sujeito passivo, no tópico correspondente à legitimidade passiva (BRITO, 2010).
O objeto da ação popular pode ser o patrimônio público ou o de entidade de que o Estado faz parte, a moralidade administrativa ou o meio ambiente (incluindo-se nele o patrimônio histórico e cultural). No caso específico da ação popular ambiental, o objeto é o meio ambiente em quaisquer de suas formas (BRITO, 2010).
Além do sujeito e do objeto, existe ainda, enquanto elemento, a relação jurídica. No entender de Montoro (2000), a relação jurídica engloba a relação jurídica propriamente dita que é a relação entre sujeito-ativo e sujeito-passivo e a dependência jurídica, relação entre o sujeito e o objeto. Não há dúvidas que a existência ou não da relação jurídica só pode ser observada na prática, afinal, somente analisando-se cada caso, com as suas devidas características e peculiaridades, é que se poderá identificar se o autor da ação é legitimado ativamente e se o réu comportou-se de maneira tal indevida que possibilitou a sua caracterização enquanto sujeito passivo. Certamente que não se poderá falar de relação jurídica, quando não houver a legitimação do autor ou do réu (ou de ambos simultaneamente), na propositura da ação popular ambiental (BRITO, 2010).
Muito embora a relação jurídica só possa ser satisfatoriamente visualizada em cada caso específico, considerando-se, hipoteticamente, que “A” por sua ação ou omissão lesou ou, potencialmente, poderá lesar o meio ambiente “X”, caracteriza-se a possibilidade de que o cidadão “B” (ou qualquer outro interessado e legitimado) impetre uma ação popular ambiental em face de “A”. Nessa situação hipotética, a relação jurídica entre sujeito-ativo e sujeito-passivo é constatada. Da mesma forma, constata-se a dependência jurídica entre o sujeito e o objeto da ação, pois, por ser o meio ambiente de natureza jurídica difusa, qualquer lesão ou ameaça de lesão à sua integridade afeta um número indeterminado de sujeitos. Assim sendo, direta ou indiretamente o sujeito “B” acaba sendo afetado pela, concreta ou potencial, agressão ao meio ambiente “X”. Destarte, para a existência da relação e da dependência jurídica basta que se constate a legitimação ativa e passiva dos sujeitos envolvidos na ação popular ambiental e a lesão ou ameaça de lesão ao meio ambiente. Existindo esses dois fatores, evidencia-se a existência do terceiro elemento do direito subjetivo (BRITO, 2010).
No mais, resta observar, apenas, a existência do quarto e último elemento: a proteção. Dizer que um direito é protegido, significa dizer que ele é “garantido”, ou seja, “tutelado” pelo ordenamento jurídico brasileiro. Sob esse argumento, afirmar-se-á, de certo, que a ação popular ambiental possui o elemento “proteção”, pois, além de estar resguardada no inciso LXXIII do art. 5º, da “Lei Maior”, a ação popular (com as devidas ressalvas, no campo ambiental), ainda é vislumbrada na Lei 4717/1965 (BRITO, 2010).
Por fim, ante tudo já apresentado, sendo legitimados os sujeitos ativo e passivo e havendo a lesão ou ameaça de lesão ao meio ambiente, notar-se-á que a ação popular ambiental, além de ser uma faculdade do cidadão, possui todos os quatro elementos acima expostos, indispensáveis à caracterização do direito enquanto subjetivo, de modo que não restam dúvidas sobre o fato do referido instrumento constitucional ser um direito subjetivo (BRITO, 2010).
Em caráter complementar, é crucial afirmar-se que, por estar localizada constitucionalmente no Título II – que versa sobre os direitos e garantias fundamentais –, incumbe compreender a natureza jurídica da ação popular, em múltiplas facetas, como um direito subjetivo fundamental. Reforça-se essa ideia com a seguinte colocação:
A proteção jurídica subjetiva do ambiente fica clara a partir do momento em que a Constituição da República Federativa do Brasil reconhece o direito fundamental ao meio ambiente a todos. Neste perfil entende-se que a tutela, via ação popular ambiental é um direito subjetivo fundamental (grifo nosso) de caráter difuso da coletividade e acionável individualmente pelos cidadãos e, por isso, foi por nós inserido dentro da categoria de dano ambiental individual (LEITE, 200-).
De resto, portanto, entende-se, neste artigo, que a natureza jurídica da ação popular destoa da noção de direito político, não restando outro entendimento tão coerente quanto o de entendê-la como um direito subjetivo fundamental.
Referências
BRITO, Fernando de Azevedo Alves. Ação popular ambiental: uma abordagem crítica.2.ed. São Paulo: Nelpa, 2010.
CÂMARA, Alexandre de Freitas. Lições de direito processual civil. vol.1. 24 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
LEITE, José Rubens Morato. Ação popular: um exercício da cidadania ambiental?. Busca Legis. Disponível em: <http://buscalegis.ccj.ufsc.br/arquivos/Acao_popular_ambiental.html>. Publicada em: 200-.Acesso em: 15 de Abril de 2003.
MONTE ALEGRE, Sérgio. Ação popular não é direito político. In: Revista de Direito Administrativo, n.189, p. 123-138, jul./set. 1992.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.