Artigo Destaque dos editores

Medida provisória instituiu no âmbito da União a modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns

Leia nesta página:

          1. A despeito da sociedade ter reconhecido como meritória a ação do legislador no tocante à inserção de procedimentos rígidos e de mecanismos mais moralizadores na prática das licitações quando da edição da Lei n.º 8.666/93, a verdade é que o vigente Estatuto das Licitações, por muitos até considerado elenco de normas procedimentais e detalhistas, provocou inquietação e apreensão entre os representantes dos entes federados em face da denunciada e propalada ofensa à competência legislativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, eis que muito pouco, ou quase nada, restou para a regulamentação no âmbito daquelas unidades federadas.


          2. Ao longo dos seus quase sete anos de vigência foram constantes e acirradas as manifestações dos entes federados no sentido de apontarem as dificuldades trazidas pela nova lei na implementação das licitações, tendo como argumento basilar o comprometimento do franco funcionamento da Administração Pública, e nesse particular, vozes se uniram num só coro para propugnar pela alteração do Estatuto das Licitações, com o desiderato de restringir o elenco das normas gerais e flexibilizar a atuação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, restabelecendo, assim, a prática mais flexível contemplada no então vigente Decreto-lei n.º 2.300/86.


          3. Tão logo entrou em vigor, renomados juristas advogaram a inconstitucionalidade de alguns dispositivos do novo Estatuto das Licitações, e debates doutrinários foram travados sobre os limites constitucionais da competência do legislador federal. Naquela oportunidade o Mestre Toshio Mukai, in O Novo Estatuto Jurídico das Licitações e Contratos Públicos, São Paulo, RT, 1993, assim se expressou:

"Pode-se verificar que o novo diploma legal esgota a matéria sobre licitações e contratos administrativos, senão vejamos. Sobre licitações, trata dos princípios, das definições, das obras, compras, alienações, da licitação, suas modalidades e limites, da habilitação, dos registros cadastrais, do procedimento e do julgamento. Sobre contratos, além das definições gerais, da formalização, alterações, execução, inexecução, penalidades. Ainda dispõe sobre as sanções administrativas e do direito de petição.

Portanto, regulou inteiramente a matéria, praticamente não deixando nada a ser legislado, dentro da autonomia constitucional dos Estados e Municípios, esvaziando-lhes tal competência.

Assim, como o inciso XXVII do art. 22 da CF reservou a capacidade legislativa sobre a matéria apenas em termos de normas gerais, e, como vimos, no caso, o legislador, a pretexto de legislar sobre normas gerais, esgotou a matéria em termos totais, invadindo a competência dos Estados e Municípios, sob esse aspecto, a lei é absolutamente inconstitucional, em todas as disposições que não possam se enquadrar como norma geral."


          4. De outra parte, advogando ponto de vista divergente, em artigo publicado sob o título "Enfoque da Constitucionalidade da Lei n.º 8.666/93" o Prof. Ulisses Jacoby Fernandes manifestou-se com arrimo na decisão do E. Tribunal de Contas do Distrito Federal, proferida no processo n.º 4.473/93, que assim entendeu:

"... em princípio ... enquanto não declarada possível inconstitucionalidade da Lei n.º 8.666/93, no que respeita à aplicabilidade plena de suas disposições ao Distrito Federal, consideram-se revogadas as normas anteriores sobre a matéria de que ela trata, mantendo-se, contudo, a aplicação do Decreto n.º 19.996/88 - que no Distrito Federal dispôs sobre o assunto em consonância com o DL 2.300 - naquilo em que não conflitar com a referida lei, como se recepcionado fosse, de modo a resguardar o interesse público, até que o poder local competente disponha regulamentação diversa ou até que a questão constitucional seja decidida.


          5. Em decorrência ea deflagração do movimento reformista pró-Estatuto das Licitações, o então Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE, tornou pública a proposta de um "ANTEPROJETO DE NOVA LEI DE LICITAÇÕES", DOU de 19.02.97, que contemplava certo avanço na liberdade conferida aos demais entes federados, já que o anteprojeto posto em debate incorporava resultados dos inúmeros debates enfrentados no tocante à constitucionalidade da Lei n.º 8.666/93, e nele estava assegurada a competência dos demais entes federados para legislarem sobre temas como os prazos e veículos para publicidade do ato convocatório e seus requisitos mínimos; os prazos para interposição e a decisão de recursos; os procedimentos operacionais para instituição do cadastro de fornecedores; o processamento da habilitação e do julgamento das propsotas e da conseqüente contratação e, ainda, a previsão das sanções administrativas, dentre outros.


          6. É compreensível o interesse e a própria necessidade das unidades federadas no sentido de lhes ser assegurada a competência para editar normas próprias sobre licitações e contratos, consentâneas com as suas peculiaridades e a realidade cotidiana. De outra parte, também é sensata e imperiosa a fidelidade às normas gerais ou aos limites fixados pelo legislador federal, em estrita observância ao comando constitucional, cujo propósito é, como já asseverado, o de evitar problemas no relacionamento entre as unidades federadas e, ainda, assegurar o disciplinamento uniforme de determinados limites à liberdade normativa do legislador local.


          7. Na diretriz do que dispõe a própria Lei n.º 8.666/93, não se deve ignorar o caráter de "norma geral" atribuído a preceitos relativos às modalidades e tipos de licitação, os limites financeiros, as penalidades, dentre outros, além, é claro, dos princípios emanados da Carta Magna. Todavia, a realidade nos mostra que a iniciativa do MARE ainda não se concretizou e, portanto, mesmo que tenha sido ou continue sendo contestada, a verdade é que a Lei n.º 8.666/93 segue disciplinando as licitações e contratos da Administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.


          8. Esta preleção tem o condão de provocar um exercício intelectivo sobre a Medida Provisória n.º 2.026, de 5.5.2000, que instituiu no âmbito da União a modalidade de licitação denominada "PREGÃO", para a aquisição de bens e serviços comuns, publicada Diário Oficial - Seção 1, de 5.5.2000, págs. 35/36, e estimular uma reflexão sobre o tema por parte de todos que têm a responsabilidade de atuar no complexo campo das licitações, notadamente em razão do disposto nos arts. 22, 115 e 118 da Lei n.º 8.666/93, verbis:

"Art. 22. São modalidades de licitação:

I – concorrência;

II – tomada de preços;

III – convite;

IV – concurso;

V – leilão.

§ 8º É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo."

"Art. 115. Os órgãos da Administração poderão expedir normas relativas aos procedimentos operacionais a serem observados na execução das licitações, no âmbito de sua competência, observadas as disposições desta Lei."

"Art. 118. Os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as entidades da administração direta deverão adaptar suas normas sobre licitações e contratos ao disposto nesta Lei."


          9. Todavia, embora reconhecendo a oportunidade e a sensatez da intenção contida na indigitada Medida Provisória, já que o novel procedimento certamente proporcionará maior celeridade e economicidade no descortino dos procedimentos licitatórios da Administração Pública Federal, não podemos deixar de expressar o modesto entendimento de que o seu conteúdo encontra óbice legal na explícita vedação do transcrito art. 22 do vigente Estatuto das Licitações – criação de outras modalidades de licitação, eis que a União se submete ao império da Lei n.º 8.666/93.


          10. Em que pese a salutar intenção do Poder Executivo Federal, temos que a Medida Provisória que instituiu a modalidade denominada "PREGÃO" no âmbito da União, feriu o disposto no transcrito art. 22 da Lei n.º 8.666/93, colocando em disputa jurídica a sua própria validade.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

          11. Assim, com a percepção de que a instituição da nova modalidade licitatória, nos termos em que se consumou, está em conflito com as disposições de uma norma de caráter geral contemplada na Lei n.º 8.666/93 – art. 22, que define especificamente as modalidades de licitação, e seu § 8º, que veda a criação de outras, advogamos o entendimento de que a criação do "PREGÃO" deva ser processada via alteração do vigente Estatuto das Licitações, a exemplo do ocorrido com a Medida Provisória n.º 1.531 e suas reedições, finalmente convertida na Lei n.º 9.648/98, restando contempladas e reconhecidas não apenas as necessidades palpitantes da União, mas, também, dos demais entes da organização político-administrativa da República Federativa do Brasil, que não devem ficar a deriva desta salutar inovação.


          12. Também é nosso ponto de vista que o disposto no § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-Lei n.º 4.657/42 não pode ter o condão de dar respaldo legal a argumento respeitante a "revogação tácita" do § 8º do art. 22 da Lei n.º 8.666/93 em decorrência da sua incompatibilidade com o teor da Medida Provisória n.º 2.026/2000, uma vez que a multicitada Medida Provisória, a despeito de restringir a sua aplicação ao âmbito da União, introduziu alteração em norma de caráter geral e com expressa vedação contemplada no vigente Estatuto das Licitações – criação de nova modalidade licitatória.


          13. A propósito, vejamos alguns ensinamentos de renomados doutrinadores:

"A lei proíbe a adoção de outras modalidades de licitação ou a combinação das regras procedimentais para produzir novas figuras. Significa que o elenco do art. 22 é exaustivo. Essa norma geral deverá ser observada pelas demais entidades da Federação". (Marçal Justen Filho, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Aide, 4ª Ed., pág. 138).

"O artigo, seus incisos e parágrafos contêm normas de caráter geral porque essenciais à definição dos modos por meio dos quais a Administração licitará, ou seja, as modalidades que implementam o dever geral de licitar, que é princípio constitucional ( CF/88, art. 37, XI) ." (Jessé Torres Pereira Júnior, Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, Renovar,1994, pág. 132)

"Proíbe a lei atual que sejam criadas novas modalidades de licitação ou mesmo a combinação das espécies referidas neste artigo." (J. Cretella Júnior, Das Licitações Públicas, Forense, 8ª Ed., pág. 224)


          14. Diante do exposto, cabe dizer que orientamos a nossa modesta manifestação na premissa de que em se tratando da instituição de uma nova modalidade de licitação, e estando em franca vigência a Lei n.º 8.666/93, que instituiu normas para licitações e contratos da Administração Pública, nem mesmo o firme propósito de se flexibilizar a aplicação do Estatuto das Licitações no âmbito de qualquer dos entes federados pode ensejar que se faça tabula rasa da imperiosa observância das suas normas gerais. A nosso ver, o assunto enseja uma reflexão por parte do Poder Executivo Federal, na medida em que o tema envolve questão do exame da legalidade do ato normativo em comento, sem perder de vista que ele permanecerá no ordenamento jurídico até que pelos trâmites legais venha a ser dele retirado.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Wálteno Marques da Silva

advogado em Brasília (DF)

Gustavo Henrique Trindade da Silva

advogado em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Wálteno Marques ; SILVA, Gustavo Henrique Trindade. Medida provisória instituiu no âmbito da União a modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/426. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos