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O estrito cumprimento do dever legal como causa excludente de ilicitude

01/10/2003 às 00:00
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1. LOCALIZAÇÃO NA ESTRUTURA JURÍDICA DO CRIME

Antes de se estudar a excludente de ilicitude do "estrito cumprimento do dever legal", é imprescindível fazer a localização dessa excludente dentro da estrutura jurídica do crime, de forma a sabermos em que momento da configuração da infração penal será perquirida a presença ou ausência dessa excludente.

Adotando-se o conceito tripartido do delito, tem-se que, praticada determinada conduta, analisa-se, primeiramente, se houve "fato típico", a partir de seus elementos:

I. FATO TÍPICO:

a)Conduta – comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa;

b)Resultado – nos crimes onde se exige um resultado naturalístico;

c)Nexo de causalidade – entre a conduta e o resultado;

d)Tipicidade – formal e conglobante.

Concluindo-se pela realização de um "fato típico", passa-se à análise da "ilicitude". Ilicitude, ou "antijuridicidade", é a relação de antagonismo, de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico penal, de sorte a causar a lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado.

Ora, se a norma penal proíbe determinada conduta sob a ameaça de uma sanção, é porque aquela conduta ou causa lesão ou expõe a perigo de lesão o bem juridicamente protegido. Conseqüentemente, é de se concluir que toda e qualquer conduta típica é, em princípio, "Ilícita".

A "licitude" de uma conduta típica só será encontrada por exclusão, ou seja, se o agente praticou alguma conduta tipificada na lei penal, ela só será "lícita" se atuou amparado por uma das "causas excludentes de ilicitude" previstas no art. 23 do Código Penal, entre as quais encontra-se o "estrito cumprimento do dever legal".

Portanto, o estrito cumprimento do dever legal é perquirido no segundo momento da análise da conduta do agente dentro da estrutura jurídica do crime, após verificada a configuração do fato típico.

II. ILÍCITUDE: Quando o agente não praticou a conduta em:

a)estado de necessidade;

b)legítima defesa;

c)exercício regular de direito;

d)estrito cumprimento do dever legal.

Finalmente, para se concluir que a conduta do agente é criminosa, mister que, configurado que o fato é típico e ilícito, verificar se o mesmo é também "culpável", se o agente for "imputável", tiver "potencial consciência da ilicitude do fato" e lhe era "exigível uma conduta diversa" na situação em que se encontrava no momento do crime.

III. CULPÁVEL:

a)imputabilidade;

b)potencial consciência da ilicitude do fato;

c)exigibilidade de conduta diversa.


2. NATUREZA JURÍDICA

Como se viu no primeiro momento, o "estrito cumprimento do dever legal" é analisado quando da verificação da "ilicitude", mas é encontrada, porém, por exclusão. Em outra palavras, cometida uma conduta típica, essa conduta será também, em princípio, ilícita. Só será lícita se houver uma "causa excludente dessa ilicitude", também chamada de "causa de justificação", para a conduta do agente.

O estrito cumprimento de dever legal é uma dessa causas justificadoras. Portanto, sua natureza jurídica é a de "causa excludente de ilicitude", que significa que, embora praticando um fato típico, a conduta do agente será lícita, se tiver agido em "estrito cumprimento do dever legal".


3. CONCEITO

Diferentemente do que fez com o "estado de necessidade" e com a "legítima defesa", o Código Penal não definiu o conceito de "estrito cumprimento de dever legal", limitando-se a dizer que:

"Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

      (...)

      III – em estrito cumprimento de dever legal..."

Sua conceituação, porém, é dada pela doutrina, como por exemplo Fernando Capez, que assim define o "estrito cumprimento do dever legal": "É a causa de exclusão da ilicitude que consiste na realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta por lei, nos exatos limites dessa obrigação". Em outras palavras, a lei não pode punir quem cumpre um dever que ela impõe.

Dentro desse conceito, importante atentar para duas expressões: "dever legal" e "cumprimento estrito".

O que vem a ser "dever legal"? Ora, como a própria expressão sugere, é uma obrigação imposta por lei, significando que o agente, ao atuar tipicamente, não faz nada mais do que "cumprir uma obrigação". Mas para que esta conduta, embora típica, seja lícita, é necessário que esse dever derive direta ou indiretamente de "lei". Por "lei", entenda-se não apenas a lei penal, mas também a civil, comercial, administrativa etc. Não é necessário, também, que esta obrigação esteja imposta textualmente no corpo de uma lei "estrito sensu". Pode constar de decreto, regulamento ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que "originários de lei". O mesmo se diga em relação a decisões judiciais, que nada mais são do que determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da lei e esta na lei ou dela derive.

O que significa, por sua vez, o "cumprimento estrito"? É que quando a lei impõe determinada obrigação, existem limites, parâmetros, para que tal obrigação seja cumprida, isto é, a lei só obriga ou impõe dever até certo ponto, e o agente obrigado só dever proceder até esse exato limite imposto pela lei. Dessa forma, exige-se que o agente tenha atuado dentro dos rígidos limites do que obriga a lei ou determina a ordem que procura executar o comando legal. Fora desses limites, desaparece a excludente, surgindo então o abuso ou excesso.


4. EXEMPLOS DE HIPÓTESES DE ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL

Exemplo clássico de estrito cumprimento de dever legal é o do policial que priva o fugitivo de sua liberdade, ao prendê-lo em flagrante. Nesse caso, o policial não comete crime de constrangimento ilegal ou abuso de autoridade, por exemplo, pois que ao presenciar uma situação de flagrante delito, a lei obriga que o policial efetue a prisão do respectivo autor, mais precisamente o art. 292 do CPP [1]. Preenchido, portanto, o requisito do dever legal.

Por outro lado, necessário, também, que o policial se limite a cumprir exatamente o que a lei lhe impõe, isto é, que o cumprimento desse dever cinja-se estritamente ao imposto por tal lei. Assim, basta que o policial prenda o agente flagrado, privando sua liberdade. Haveria abuso ou excesso se o policial, depois de contido o sujeito, continuasse desnecessariamente a fazer uso da força ou de ofensas físicas contra aquele.

Outro exemplo tradicional é o do oficial de justiça que retira da casa de alguém objetos de sua propriedade, em cumprimento de mandado de penhora contra aquela pessoa. Ora, por um lado, há o dever legal de assim agir, pois que o mandado judicial entregue ao oficial de justiça impõe-lhe o dever de cumpri-lo, não havendo, portanto, crime de roubo, embora a conduta seja típica.

Da mesma forma, necessário que o oficial de justiça permaneça nos limites rígidos do que lhe impôs o mandado. Assim, haveria o excesso por parte do servidor se, por exemplo, além da penhora e seqüestro de um quadro valioso, de propriedade do executado, aquele resolvesse penhorar e seqüestrar também outro bem do executado não relacionado no "mandado judicial", apenas por imaginar que futuramente teria que voltar àquela residência para fazer "reforço de penhora".


5. ELEMENTO SUBJETIVO - CONHECIMENTO DA SITUAÇÃO JUSTIFICANTE

Assim como as demais excludentes de ilicitude, o estrito cumprimento do dever legal exige que o agente tenha consciência de que age sob essa causa de justificação. Em outra palavras, é preciso que o agente que praticou a conduta típica tenha atuado querendo praticá-la, mas com a consciência de que cumpria um dever imposto pela lei.

Dessa forma, se, por exemplo, o delegado de polícia, querendo vingar-se de seu desafeto, prende-o sem qualquer justificativa, amedrontando-o pelo fato de "ser delegado", descobre, posteriormente, que já existia mandado de prisão preventiva contra aquele cidadão, cabendo a ele, delegado, cumpri-lo, nem por isso sua conduta deixa de ser criminosa, porque atuou sem a consciência e sem a intenção de cumprir o seu dever.

É pela necessidade desses elementos subjetivo que não é possível a ocorrência do estrito cumprimento de dever legal na prática de condutas típicas culposas, mas apenas em condutas dolosas. Aliás, todas as excludentes de ilicitude só podem ser verificadas em crimes dolosos.


6. ALCANCE DA EXCLUDENTE QUANTO AO SUJEITOS

Podem praticar uma conduta típica sob o albergue da causa excludente de ilicitude do estrito cumprimento de dever legal:

a) como autores da conduta: funcionários públicos (lato sensu) e particulares que exercem função pública (jurado, perito, mesário da Justiça Eleitoral) – uma vez que agem por ordem da lei;

b) como co-autores ou partícipes: qualquer pessoa, inclusive particulares, desde que atue em conjunto com um funcionário público, que seja reconhecida a excludente para este e que tenha consciência de que também está agindo sob o albergue da causa de justificação – o fato não pode ser objetivamente lícito para uns e ilícito para outros.

Seria exemplo do particular albergado pelo estrito cumprimento do dever legal a hipótese daquele que, vendo a polícia perseguir o delinqüente, trava luta corporal com este, causando-lhe lesões em virtude da prisão, com o intuito de ajudar a polícia a deter aquele delinqüente. Encontra-se acobertado também pela excludente, porque: a) foi co-autor do ato de prisão da polícia; b) é reconhecida, perfeitamente, a excludente para os policiais; c) tinha o particular a consciência plena de que agia sob o albergue da causa excludente (elemento subjetivo).

Porém, se o particular encontra determinado indivíduo na rua, seu desafeto e, sem perceber que o mesmo estava sendo perseguido pela polícia, desfere-lhe um soco na face, para vingar-se de antiga rixa. Nesse caso, deverá ser responsabilizado pelas eventuais lesões que advierem de sua conduta, não podendo se beneficiar da excludente, porque: a) embora tenha agido como co-autor da conduta dos policiais; b) embora seja reconhecida para estes a excludente; c) não agiu com a intenção de auxiliar o autor da conduta no cumprimento de dever legal nem tinha consciência de que existia, no contexto fático, aquela situação justificante.

Existe uma discussão doutrinária acerca da possibilidade de o particular praticar, como autor, um conduta típica acobertado pela excludente do estrito cumprimento de dever legal. Citam o caso do art. 1.634, inciso I, que diz que "compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação". Ora, sendo certo que, muitas vezes, deverão os pais, na direção da criação e educação dos filhos, tomar atitudes enérgicas. Se, porventura, com a finalidade de corrigi-los, vierem a constrangê-los de alguma forma, estão os pais albergados pelo "estrito cumprimento do dever legal", tendo em vista a norma do Código Civil? Bem, é certo que não há crime, nessa hipótese, desde que os castigos aplicados pelos pais esteja de acordo com um critério de razoabilidade. Porém, quanto à causa de excludente de ilicitude aplicável no caso, há duas correntes que tentam responder a essa indagação.

Francisco de Assis Toledo entende que atuam os particulares sob o estrito cumprimento do dever legal, quando exista norma que lhes imponha um dever, como no caso do art. 1.634, inciso I, do Código Civil, embora a excludente tenha como endereço a atuação dos agentes do Poder Público no exercício de suas funções. Argumenta que há deveres impostos pela lei que não são dirigidos àqueles que fazem parte da Administração Pública.

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Magalhães Noronha e Rogério Greco, por sua vez, corrente à qual me filio, entendem que incide na hipótese não o "estrito cumprimento de dever legal", mas o "exercício regular de direito", pois que não há um dever de corrigir os filhos, aplicando-lhes castigos moderados, mas sim um direito. Isto é, os pais podem ou não se valer de castigos corporais, ou outras formas de constrangimento, para que seus filhos sejam educados e corrigidos. Portanto, a norma do Código Civil mencionada não impõe um dever aos pais, mas apenas confere-lhes um direito.


7. ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL x TIPICIDADE CONGLOBANTE ANTINORMATIVA

A tipicidade é a relação de adequação da conduta do agente com o tipo penal. Ela é formada pela tipicidade formal e a tipicidade conglobante, que por sua vez engloba a tipicidade conglobante material e a tipicidade conglobante antinormativa. Pela tipicidade conglobante antinormativa, não é típica a conduta daquele que pratica uma conduta que, embora seja formalmente típica, seja imposta ou fomentada pelo direito.

Os doutrinadores, ao lecionar sobre o tema, apresentam o exemplo do oficial de justiça que, cumprindo uma ordem de penhora e seqüestro de bens, toma do executado um quadro valioso. Vê-se que se trata exatamente da mesma situação prevista para a excludente do estrito cumprimento do dever legal. Se tanto essa excludente como a tipicidade conglobante antinormativa têm a mesma conceituação, a conduta do agente que atua em exemplos como a do policial e a do oficial de justiça deve ser examinada à luz do "fato típico" ou à luz da "antijuridicidade"?

Na atualidade, como o nosso Código Penal adotou o estrito cumprimento de dever legal como causa de exclusão de ilicitude, condutas como as dos exemplos devem ser examinadas ainda sob a ótica da ilicitude.

Porém, Zaffaroni e Pierangeli entendem que os casos de estrito cumprimento de dever legal deveriam ser analisados quando da verificação da tipicidade penal, sob a ótica da tipicidade conglobante antinormativa, pois isso evita que coexistam dentro do ordenamento jurídico uma norma que ordena que se faça uma coisa, enquanto outra norma proíbe essa mesma conduta. Em outras palavras, deve-se buscar evitar que condutas impostas pelo ordenamento jurídico sejam consideradas típicas pelo próprio ordenamento jurídico, tornando este mais harmônico.


NOTA

01. "Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas."


BIBLIOGRAFIA:

1) GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2002.

2) CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002.

3) TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994.

4) NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1980.

5) ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

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Sobre o autor
Kleber Martins de Araújo

advogado no Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Kleber Martins. O estrito cumprimento do dever legal como causa excludente de ilicitude. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 90, 1 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4262. Acesso em: 2 nov. 2024.

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