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A nova estrutura sindical tem que estar a serviço dos trabalhadores e não de cúpula da direção sindical

02/10/2003 às 00:00
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Antecipando-se ao debate e ao próprio governo Lula, os Deputados Federais Vicente Paulo da Silva e Mauricio Rends encaminharam ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional (PEC 29/03) que trata da Reforma do Sistema Sindical Brasileiro. Em linhas gerais, a PEC – ao menos em tese - enuncia o fim do sindicato único, a extinção da contribuição sindical e o reconhecimento jurídico das Centrais Sindicais de grau superior. Abordaremos, sem pretender esgotar as discussões que a matéria comporta, alguns aspectos que entendemos ser de suma relevância.


I - AS CARACTERÍSTICAS DO ATUAL SISTEMA SINDICAL BRASILEIRO

O atual sistema sindical brasileiro, à partir da promulgação da Constituição de 1.988, caracteriza-se por ter uma formação de caráter híbrido, muito embora haja disposição expressa prevista na mesma Constituição dispondo ser vedado ao Estado qualquer interferência nas questões sindicais. Na sua obra Os Sindicatos na Nova Constituição(01), Leôncio Martins Rodrigues sustenta que o novo texto constitucional preservou a estrutura sindical corporativa e impediu, ao mesmo tempo, a intervenção do Estado nos assuntos internos do Sindicato. Nos atreveremos, data vênia, a discordar do renomado sociológo. Para nós, seja após, ou ainda antes da atual Constituição, nunca houve liberdade e autonomia sindicais. Há, contudo, não apenas a interferência estatal, mas sobretudo a limitação das funções sindicais face à conformação estabelecida pela Carta Política.

Com efeito, a mesma Constituição que proíbe o Estado de intervir na organização sindical determina que o sistema a ser adotado seja o da unicidade, além de exigir que os sindicatos, para adquirirem legitimidade, devam possuir um registro junto ao Ministério do Trabalho. Percebe-se, logo de início, que em detrimento à liberdade afigura-se um sistema cujas limitações são impostas pela lei. Tais normas são a base daquilo que Armando Boito Jr.(02) classifica como "sindicalismo de Estado", ou seja, a existência de regras jurídicas que limitam, efetivamente, a liberdade e a autonomia dos sindicatos.

Portanto, de antemão e sem qualquer esforço interpretativo, aufere-se que aquilo que o Estado concedeu com uma mão (no caso a "vedação" para interferir nos sindicatos), acabou por retirar com a outra (a exigência de registro no Ministério do Trabalho e a adoção da unicidade sindical). Para nós, portanto, desde a promulgação da CLT e das primeiras leis que trataram da organização sindical, até os dias atuais, nunca houve, de fato, a tão propalada liberdade sindical.


II - A CRISE DO SINDICALISMO MODERNO

O advento do neoliberalismo trouxe ao mundo do trabalho questões pontuais que acabaram por minar, efetivamente, todo o sistema de defesa das relações de trabalho. Conforme Boito Jr (03), no plano da política de Estado, o neoliberalismo no Brasil, e em geral na América Latina, assenta-se sobre quatro eixos: abertura comercial, privatização de mercadorias e serviços, desregulamentação do mercado de trabalho e redução dos gastos sociais do Estado. Entre nós, o complexo de reestruturação produtiva foi implementado logo no início do governo Collor de Melo, e à partir de então grandes empresas passaram a incorporar um conjunto de novas estratégias produtivas. Para Giovanni Alves (04), desenvolveu-se o que podemos considerar um toyotismo sistêmico e um impulso à adoção da automação microeletrônica generalizada. Mas não é só. Surge, ainda, uma nova logística da cadeia produtiva, com a adoção sistêmica da terceirização, propiciando às grandes empresas, sobretudo às corporações transnacionais, desenvolver novos laços de subcontratação e, obviamente, de redução de custos.

Os trabalhadores, por seu turno, completamente fragmentados pela nova divisão do trabalho, não apenas têm mostrado incapacidade de resistência: acabaram por incorporar aos seus discursos a defesa de algumas práticas capitalistas modernas. Inauguraram uma fase caracterizada pelo "sindicalismo propositivo", o que, na visão de Boito Jr., expressa o rebaixamento do conteúdo das propostas dos trabalhadores. O que é mais grave: tal constatação não se aplica apenas às chamadas linhas ou correntes sindicais mais identificadas com o peleguismo; à esquerda do movimento sindical brasileiro (ao menos em tese), a CUT também se vê bombardeada pela ofensiva avassaladora do capital em sua nova fase. É o que demonstra o surgimento de correntes internas que preconizam cada vez mais o abandono de concepções socialistas ou anticapitalistas, em troca de uma disposição em se adequar à ordem do capital.

Na verdade, como enuncia Giovanni Alves com muita propriedade "o novo complexo de reestruturação produtiva possui um componente político-ideológico que pode ser traduzido na sua função histórica de constituir sempre uma nova hegemonia do capital na produção, articulando a coerção capitalista e o consentimento operário."

Neste cenário, onde o movimento sindical incorpora um papel de mero coadjuvante, ou seja, o ator que exerce papel secundário, pretende-se que a PEC 29/03 surja como a "salvação da lavoura". Com todo respeito aos posicionamentos contrários, procuraremos demonstrar quão ineficaz se mostra a proposta apresentada ao Congresso Nacional.


III - DOS PONTOS PRINCIPAIS A SEREM ALTERADOS

A PEC 29/03 modifica as disposições contidas no artigo 8º, da Constituição Federal, podendo ser assim resumida: acaba com a unicidade sindical, permitindo a criação de sindicatos à partir do local de trabalho; acaba, progressivamente, num prazo de quatro anos, com o imposto sindical, apesar de manter a soberania da assembléia para instituir a contribuição confederativa ou de fortalecimento sindical; legaliza as centrais sindicais.

Em primeiro lugar há que ser frisado que a PEC possui lacunas que levarão ao legislador ordinário a tarefa de regulamentar questões de suma importância, o que nos parece uma extrema infelicidade, mormente ante a composição corporativa tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal. É o que se vê na questão do fim da unicidade: pelo texto da PEC os litígios entre as entidades sindicais pela legitimidade para negociação coletiva serão submetidos à central sindical a que elas sejam filiadas ou a comissão mista composta pelas diversas centrais sindicais quando elas forem filiadas a centrais distintas; ou por mediação e arbitragem, quando não houver acordo na comissão mista ou quando as entidades não forem filiadas a qualquer central.

Ora, quando se fala em liberdade sindical a adoção de arbitragem nos afigura, no mínimo, contraditória. A começar pela letra da lei que trata do instituto: "apenas direitos patrimoniais disponíveis podem ser submetidos à arbitragem" (Art. 1º, da Lei 9307/96). Ademais, parafraseando o Professor João José Sady (05), "quem vai arbitrar? Quem vai dizer qual dos "sindicatos únicos" será o "sindicato único" de verdade? A arbitragem, é claro, diz a PEC. Ora, mas, quem são estes árbitros, como serão escolhidos, não fica delimitado. Terá que ser um poder mas, que homens terão este poder ? A PEC não o diz."

No que pertine à determinação de que as Centrais Sindicais elegerão o sindicato representativo para fins de negociação coletiva, algumas questões merecem consideração: Inicialmente, a PEC acaba por reconhecer, juridicamente, as Centrais Sindicais, entes que atualmente possuem reconhecimento apenas político. Infere-se que, dado o antagonismo que caracteriza as diversas centrais hoje existentes no Brasil, buscou-se uma saída incessantemente negociada com as respectivas lideranças a fim de que pudesse o texto da PEC atender aos interesses de tais atores sociais. Assim, uma vez que a própria CUT é contra a adoção irrestrita da Convenção 87, da OIT, "costurou-se" um acordo político que, salvo melhor juízo, pode piorar ainda mais o já combalido sistema sindical brasileiro.


IV - DOS REFLEXOS E CONSEQUÊNCIAS IMPLÍCITAS CONTIDOS NA PEC

O reconhecimento jurídico das centrais sindicais possui uma característica estratégica, sobretudo para o Governo Lula, que no afã de demonstrar seu engajamento por reformas estruturais – sobre as quais o discurso governista praticamente joga nas costas toda a responsabilidade pelo desenvolvimento do País – poderá precarizar ainda mais as relações trabalhistas. Se num primeiro momento foi possível comemorar o arquivamento determinado pelo governo do Projeto de Lei que alteraria o artigo 618, da CLT, e praticamente acabaria com o caráter público da legislação trabalhista, há motivos de sobra para que a preocupação novamente tome conta das mentes mais lúcidas.

É cediço que uma das bandeiras do PT e da CUT, relativamente à questão trabalhista, repousa na instituição do contrato coletivo de trabalho. Nota-se que, apesar de a PEC não fazer qualquer alusão ao mesmo, por via transversa abre-se a efetiva possibilidade do instituto ser adotado, já que desaparecendo a representação por categorias, desapareceriam, natural e acessoriamente, as convenções coletivas de trabalho. Forçoso inferir, pois, que a pretexto de se evitar um retardamento na celebração de "acordos coletivos" pelas disputas de representatividade que seriam travadas pelos diversos sindicatos, acabariam as centrais sindicais celebrando um contrato coletivo de trabalho único, aplicável como legislação mínima à todos os trabalhadores. Caminho aberto para extinção gradual de toda a parte material da CLT.


V - DA ADOÇÃO DO SINDICATO ORGÂNICO

Desde a Constituição a CUT defende, de maneira aberta, a instituição do sindicato orgânico, ou seja, sindicatos constituídos através de fusão e submetidos ao controle da cúpula da central sindical. Veja o que declarou Vicentinho enquanto presidiu a CUT:

"A proposta de Sindicato orgânico, que nós defendemos, passa por esses princípios. Uma estrutura sindical que visa também diminuir o número de Sindicatos em nosso país (...)Por isso entendemos que até mesmo em nossa Central, que hoje é a maior da América Latina, devemos nos preparar para a diminuição do número de Sindicatos, através de fusões, quebrando a unicidade sindical e unificando os Sindicatos nas regiões. Queremos Sindicatos cada vez maiores, das cidades para as regiões, das regiões para o Estado. Não é absurdo pensar em um único Sindicato de metalúrgicos no Estado, à semelhança de professores (como já existe), absurdo é existirem centenas de Sindicatos de uma mesma categoria. O importante é que quando um Sindicato sentar à mesa de negociação, ele seja representativo."

Há todo um projeto cutista em curso que visa instituir o sindicato orgânico. No ramo de comércio e serviços, no mês de julho de 1990, em Vitória, no Espírito Santo, é criado o Departamento Nacional dos Comerciários da CUT. Mais tarde, no CONCUT que se realizou em 1993 nasce a CONTRACS – Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços da CUT, avançando para o conceito de construção de ramo aglutinando comércio e serviços, além disso transforma o Departamento em Confederação passando a representar os trabalhadores no comércio e Serviços. Várias categorias se organizam em diferentes confederações e federações como a FITTEL/FENATEL, FITERT/FENART, CNB/CONTEC, CNM/CNTM.

A partir da 9ª Plenária, a CUT indica para as instâncias verticais a meta da constituição de sindicatos por ramos de atividade com base mínima estadual em todos os Estados, evitando-se a fragmentação das atuais entidades de abrangência estadual ou regional em sindicatos municipais ou por empresa. Até o ano de 2.000 eram contabilizadas confederações e federações cutistas orgânicas constituídas em 12 ramos, com diferentes graus de estruturação e organização: financeiros (CNB), metalúrgicos (CNM), químicos (CNQ), seguridade social (CNTSS), transportes (CNTT), construção civil e madeira (CNTICM), vestuário (CNTV), alimentação (CONTAC), comércio e serviços (CONTRACS) e educação (DNTE), telemática (CNTTI) e urbanitários (FNU). A CUT investe numa política de reestruturação sindical baseada no fenômeno da unidade, unificando sindicatos e criando órgãos de representação superior.

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A PEC 29/03, ainda que adotando uma "suposta" pluralidade, praticamente abre as portas para a adoção ampla do sindicato orgânico. É pouco provável, aliás, que a supressão dos termos "categoria econômica e profissional" se traduza numa pulverização sindical capaz de agregar, numa mesma entidade, trabalhadores ou empregadores de diversos ramos do setor produtivo, de serviços, doméstico ou público. A preocupação, no entanto, diz respeito a possível centralização burocrática dos sindicatos, tornando–os meras instâncias administrativas das Centrais, cujo objetivo pode acabar aprisionando e contendo as iniciativas e soberania das assembléias de base, além é claro, de deter total controle sobre os recursos financeiros das entidades.


VI - A PANACÉIA DO IMPOSTO SINDICAL

Um ponto que sempre provoca acaloradas discussões cinge-se ao fim do chamado "imposto sindical". Em recente entrevista, o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Francisco Fausto (06) asseverou que "tanto a unicidade, que é defendida em algumas áreas sindicais brasileiras, quanto o imposto retiram do sindicato a liberdade de atuar como representante dos empregados. Então, para que haja representatividade sindical, é preciso haver uma mudança muito grande na estrutura sindical, de tal maneira que os sindicatos passem a viver exclusivamente da contribuição de seus associados, tornando-se mais livres." Ambas matérias são tratadas pela PEC, mas no que pertine ao fim do imposto sindical novamente se conclui pelo antagonismo presente no projeto.

Da mesma forma que prevê o fim do imposto sindical, e ainda assim em termos progressivos pelos próximos quatro anos, a PEC determina que "o empregador fica obrigado a descontar em folha de pagamento e a recolher às organizações sindicais as contribuições associativas, as contribuições para o custeio do sistema confederativo e as contribuições de fortalecimento sindical ou similares que sejam aprovadas pela assembléia geral representativa de acordo com os respectivos estatutos."

Aufere-se que fica mantida a chamada contribuição confederativa, o que reforça a tese de que pretende-se garantir às entidades de grau superior (fortalecidas pela adoção do sindicato orgânico), ou seja, às Federações, Confederações e Centrais receita proveniente dos salários dos trabalhadores, sendo que os percentuais atribuídos a cada entidade poderão ser estipulados, por exemplo, de maneira unilateral pelos órgãos de cúpula.


CONCLUSÕES

Não se pretende, de maneira alguma, encerrar qualquer discussão sobre a PEC encaminhada ao Congresso Nacional, mas tão somente lançar as bases para um debate mais amplo que o caso enseja. Nossa intenção foi a de, tão somente, trazer ao debate questões pontuais que se acham presentes nas análises preliminares acerca das disposições constitucionais objeto da alteração legislativa em curso.

Assim sendo, em linhas gerais pode ser inferido sem qualquer esforço que a intenção de se conseguir liberdade sindical pode desaguar numa ditadura de cúpula, alijando as entidades de base dos processos decisórios. A PEC possui dispositivos incompletos e outros efetivamente antagônicos, não enfrentando de forma concreta os problemas autênticos que envolvem a estrutura sindical corporativa que reina desde a Era Vargas. Talvez por questões políticas derivadas da articulação preliminar com todas as Centrais Sindicais quanto aos principais pontos do Projeto foi posta de lado, ao menos inicialmente, a discussão sobre os problemas centrais que envolvem o tema da estrutura sindical brasileira, como a transparência patronal das negociações coletivas, a ampliação do direito de greve, a moralização das lideranças sindicais e o combate à corrupção, dentre outros. De qualquer forma demarcado está o objeto, e bem ou mal o pontapé inicial já foi dado.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

(01) Rodrigues, Leôncio Martins. "Os Sindicatos na Nova Constituição" em Análise da Nova Constituição Federal ao término do primeiro turno de votação, Núcleo de Estudos Constitucionais, Unicamp, Campinas, 1988.

(02) BOITO JR, Armando. "O Sindicalismo de Estado no Brasil – Uma análise crítica da estrutura sindical, Unicamp, Campinas, 1991.

(03) ______________ "Neoliberalismo e Corporativismo de Estado no Brasil", in Do Corporativismo ao Neoliberalismo, ARAÚJO, Ângela (org), Boitempo, São Paulo, 2002.

(04) ALVES, Giovanni. "O Novo (e precário) Mundo do Trabalho – Reestruturação produtiva e Crise do Sindicalismo", Boitempo, São Paulo, 2000.

(05) SADY, João José, Artigo publicado no site www.defesadotrabalhador.com.br, 14 de maio 2.003.

(06)- PASSOS, Edésio, Reforma Sindical, - Sistema de unicidade sindical tem de ser mantido, artigo publicado no site Consultor Jurídico em 07.05.03.

(07) Ver íntegra da entrevista no site www.pelaordem.com.br

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Sobre o autor
Daniel Pestana Mota

advogado trabalhista, mestrando pela UNESP de Marília (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOTA, Daniel Pestana. A nova estrutura sindical tem que estar a serviço dos trabalhadores e não de cúpula da direção sindical. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 91, 2 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4268. Acesso em: 28 mar. 2024.

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