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A defesa do consumidor no Estado Democrático de Direito

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13/09/2015 às 23:44
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Hoje a estrutura econômica está totalmente atrelada aos preceitos fundamentais do Estado Democrático, havendo um limite para que essa economia se desenvolva.

O processo de constitucionalização sempre foi tema apaixonante para aqueles que possuem o enorme privilégio de estudar o Direito. Os últimos dois séculos fizeram aparecer um modelo de Estado que pretende, através da soberania, criar e impor leis, regulamentando assim o espaço territorial que denominamos país.

Após largo período de guerras, bem como de grande incidência do movimento liberal, esse Estado adota um novo modelo, o chamado Welfare state, ou Estado social, que pretende dar guarida a liberdades e direitos de cunho individual, fazendo nascer, assim, uma vertente de sustentação composta por fundamentos.

O século XX viu nascer a imensa necessidade de oferecer uma forma de defender a sociedade que passa a ser de massa, balizada por princípios que trazem uma ordem econômica capitalista e, portanto, apta a desenvolver relações de consumo.

Esse Estado que, hoje, se planifica como Democrático de Direito está estruturado em alguns fundamentos e é gerido por grupos de pessoas com ideologias plurais, que têm por finalidade atender os anseios do povo.

É nesse sentido que se dá a importância da temática que colocará em discussão a possibilidade de um sistema de defesa daqueles – e para aqueles – que praticam relações de consumo, sua ingerência, bem como a aparente ineficácia frente à sociedade nacional.

Antes de procedermos qualquer análise sobre a temática proposta, é necessário criarmos um parâmetro para a discussão, o chamado marco teórico fundamental ou ideia diretriz.[1]

Dessa forma, e não poderia ser diferente, elegemos a Constituição Federal de 1988 como ponto de partida para a discussão da temática proposta, demonstrando através de uma breve análise dos princípios constitucionais que permeiam a estrutura do Estado Democrático de Direito, bem como da análise da fórmula política da sociedade brasileira, como articulamos a defesa do consumidor através de um Sistema Nacional de Defesa do Consumidor que se mostra aparentemente ineficaz. O viés da demonstração dessa tutela se dá com a metrologia, ciência que estuda as medições, pretendendo assegurar a precisão exigida no processo produtivo, garantindo, então, a saúde e a integridade do consumidor.

O constitucionalista espanhol Pablo Lucas Verdú, em sua obra intitulada A Luta pelo Estado de Direito, diz que “existe uma fórmula que exerceu – e ainda exerce – particular fascinação sobre os juristas. Trata-se da expressão Estado de Direito. Apesar de aparentemente constituir um tema simples, caracteriza-se por apresentar sérias dificuldades. Além disso, implica uma desmedida pretensão: que todo o âmbito estatal esteja presidido por normas jurídicas, que o poder estatal e a atividade por ele desenvolvida se ajustem ao que é determinado pelas prescrições legais.”[2]  

Assim, o Estado Democrático de Direito deve pautar-se em cinco fundamentos que o legislador indicou, já no primeiro artigo da Carta Política, a saber: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

A ideia de um sistema normativo pautado em uma fórmula política que tem estrutura de princípios[3] deixa claro que o legislador constitucional não pretendeu criar uma “promessa de organização estatal”, mas sim uma verdadeira estrutura, que tem como finalidade reger e estruturar todo organismo dela resultante.

É o que diz José Afonso da Silva quando leciona que “a configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas o supera na medida que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1° da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, mas não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição ai já o está proclamando e fundamentando.”[4] (grifos nossos)

Portanto eleger como ponto de partida a Carta Constitucional é comungar com a ideia de que existe um sistema posto, válido e vigente, que organiza nossa sociedade. Vale dizer que essa ideia de sistema pressupõe, nos dizeres de Eros Roberto Grau, ordenação e unidade (ordenação interior e unidade de sentido)[5], ponto que discutiremos, sem pretensão de esgotar a temática, em momento oportuno.


– Estado de Direito e Estado Democrático

A palavra Estado tem múltipla significação no léxico brasileiro. A nós, interessa o viés que liga Estado ao fenômeno de formalização do próprio Direito.

Assim, desde as primeiras formulações sobre um conceito de Estado, após a dissolução da sociedade medieval, o objetivo era de que, a partir da organização de homens livres, houvesse a busca pelo bem comum.

O Estado moderno, diferentemente da sociedade medieval, assume uma estrutura de concentração de poder, poder que tem o condão de criar o direito, ganhando, assim, legalidade para tal.

Fazemos, aqui, um aparte para elucidar a questão da supremacia do direito positivo em relação ao direito natural.

Nesse sentido, Norberto Bobbio leciona que para os jusnaturalistas a intervenção do Estado, enquanto poder político organizado, limita-se a tornar estáveis as relações jurídicas.[6]

Referido autor diz que “antes da formação do estado moderno, de fato, o juiz ao resolver as controvérsias não estava vinculado a escolher exclusivamente normas emanadas do órgão legislativo do Estado, mas tinha uma certa liberdade de escolha na determinação da norma a aplicar; podia deduzi-la das regras do costume ou ainda daquelas elaboradas pelos juristas ou, ainda, podia resolver o caso baseando-se em critérios equitativos, extraindo a regra do próprio caso em questão segundo princípios da razão natural.”[7]

O Estado moderno, por sua vez, vincula o juiz à aplicação das normas produzidas pelo órgão legislativo do Estado, e o direito posto (pelo Estado) passa a ser o único verdadeiro.

Importante a observação feita pelo ilustre Professor Celso Antônio Pacheco Fiorillo com respeito à passagem da esfera da legitimidade para a esfera da legalidade, formalizando-se o Estado sem a figura do monarca e ganhando espaço a norma jurídica.[8]

Renomado jurista afirma que “...a passagem da esfera da legitimidade para a legalidade, conforme já mencionado em face dos ensinamentos de Schiera, veio assinalar uma fase ulterior do Estado moderno, a saber, a do Estado de Direito, fundado sobre a liberdade política (não apenas privada) e a igualdade de participação (e não apenas pré-estatal) dos cidadãos (não mais súditos) perante o poder, mas gerenciado pela burguesia como classe dominante, com os instrumentos científicos fornecidos pelo direito e pela economia triunfal da Revolução Industrial”.[9]

Observamos que, a partir desta nova dinâmica e com uma economia orientada pela Revolução Industrial, o Estado se formula na condição de ente soberano, permitindo e garantindo participação popular, liberdade política, que hoje, ganha status de direito fundamental, eliminando, assim, a possibilidade de um Estado autoritário.

O artigo 1.º da Carta Constitucional brasileira assume a forma de Estado de Direito, mas acrescenta a essa fórmula a possibilidade de que esse Estado seja Democrático. É importante lembrar que a fórmula Estado de Direito, prestigiada por longo passado histórico (Aristóteles afirmava que as leis são menos apaixonadas que os homens), tem seu ápice com o triunfo político da burguesia, em que, por conta do liberalismo, o Direito passa a exigir que o Estado crie mecanismos de defesa das liberdades individuais.

O Estado de Direito, segundo Paulo Bonavides, “não é forma de Estado nem forma de governo. Trata-se de um ‘status quo’ institucional, que reflete nos cidadãos a confiança depositada sobre os governantes como fiadores e executores das garantias constitucionais, aptos a proteger o homem e a sociedade nos seus direitos e nas suas liberdades fundamentais. Tanto do ponto de vista histórico como da inspiração que o fez surgir, até se converter num dos mais controversos princípios de organização jurídica do Estado contemporâneo – controvérsia maliciosa sobre os seus fundamentos! – o estado de Direito teve sua base ideológica principal formada à sombra dos combates que a liberdade feriu contra o absolutismo, razão por que seus laços políticos mais íntimos são com as crenças liberais da sociedade burguesa do século passado.”[10]

Verifica-se que o liberalismo foi sensível à formação desse novo modelo de Estado, que perseguia o fim do absolutismo em favor de liberdades, inclusive políticas, pretendidas pela sociedade.

Interessante a síntese de premissas do Estado Liberal de Direito feita por Carlos Ollero. Vejamos:

a) primazia da lei, que regula toda a atividade estatal, tanto na esfera executiva quanto no âmbito jurisdicional; entenda-se a lei em sentido formal, elaborada por órgãos legislativos do Estado (nas democracias liberais, pelo parlamento); formalmente, os cidadãos são iguais perante a lei;

b) um sistema hierárquico de normas que preserva a segurança jurídica e que se concretiza na diferente natureza das distintas normas e em seu correspondente âmbito de validade;

c) legalidade da Administração Pública, estabelecendo-se o sistema de recursos (contra as suas decisões) correspondente;

d) separação dos poderes como garantia da liberdade ou controle de Possíveis abusos – essa separação pode ser interpretada de diferentes modos;

e) reconhecimento da personalidade jurídica do estado, que mantém relações jurídicas com os cidadãos;

f) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem constitucional;

g) em alguns casos, controle de constitucionalidade das leis como garantia ante o despotismo do legislativo – esse controle se efetua de várias formas, segundo a realidade de cada país.”[11]

Pressupõe como marca desse Estado de Direito, soberania, unidade do ordenamento jurídico, divisão dos poderes, igualdade formal dos cidadãos perante a lei, reconhecimento de garantias individuais, civis e políticas, segurança jurídica.

Esse novo modelo de Estado de Direito traz em seu conteúdo alguns valores que são verdadeiros alicerces de todo o Estado, tornando-o democrático. Nessa seara, Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma que “fundamentalmente são dois os valores que inspiram a democracia: liberdade e igualdade, cada um destes valores, é certo, com sua constelação de valores secundários.”[12] É a partir desses valores que o Brasil estrutura-se em Estado Democrático de Direito, adotando uma posição de índole providencialista ou social.[13]

Logo, o princípio democrático exige desenvolvimento no plano econômico e social e, “por via de conseqüência exatamente em decorrência dos instrumentos fornecidos pela Economia e pelo Direito da Revolução Industrial que nos dias atuais devemos considerar que a Carta Magna de 1988 entendeu por bem estabelecer que a república Federativa do Brasil não só tem sua base em Estado de Direito, ou seja, Estado submetido ao regime constitucional, mas especificamente em Estado Democrático de Direito adaptado à passagem antes aludida, que guarda ligação direta não só com a economia orientada inicialmente pela Revolução Industrial, economia esta que, sem Duvida alguma, teve sua origem na longa luta da ‘classe media’ (Revolução Gloriosa, Inglaterra, séc. XVII; Revolução Francesa, França, séc. XVIII) visando destruir a velha ordem feudal substituindo-a por uma nova ordem baseada na livre troca de mercadorias, com o objetivo primordial de obter lucro, inaugurando, assim, o sistema capitalista”.[14]

Resta claro que o legislador constitucional adota essa posição quando diz que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

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É importante elucidar que o legislador concedeu a prerrogativa da participação popular ao cidadão. Este, no afã de atender os interesses do povo brasileiro, pode articular-se e criar partidos políticos, que controlarão, por conseguinte, o Estado Democrático de Direito.

É a determinação da Carta Constitucional que entende, em seu artigo 14, que a soberania popular será exercida através do sufrágio universal e pelo voto direto e secreto – com valor igual para todos.

Ademais, determina liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, que darão ensejo à efetivação da própria democracia no nosso país, desde que observados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana. Fica clara a intenção do legislador ao permitir articulação popular, mas determinando, através de um estado de direito, que se tornará Estado Democrático uma vez que obedecer aos fundamentos que o sustentam.

O Estado de Democrático de Direito guarda, portanto, vinculo com a estrutura política do nosso país. É o que vemos em lúcida lição de Celso Antônio Pacheco Fiorillo, quando diz que “a soberania popular, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, são efetivadas concretamente no âmbito do direito positivo não só através do sufrágio universal como da participação concreta dos partidos políticos no cenário nacional.”[15]

Logo, pensar em efetivar a estrutura Democrática em um Estado, é pensar em concretamente viabilizar os fundamentos desse Estado através da iniciativa popular.

 1.1. - Direitos políticos vinculados à soberania e à dignidade da pessoa humana em face do Estado Democrático de Direito com a possibilidade do cidadão se articular através de canais representativos tendo em vista o pluralismo político.

Entendem-se por direitos políticos “as prerrogativas, os atributos, a faculdade ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país.”[16]

Da simples leitura desse conceito, observamos que os direitos políticos não estão adstritos apenas à capacidade eleitoral ativa, mas muito mais que isso, são alicerces para que a democracia se desenvolva deixando de lado qualquer modelo autoritário de governo.

Para elucidar a temática, importante a transcrição de trecho da obra do constitucionalista pernambucano Luiz Pinto Ferreira que diz “a concepção dos direitos políticos se desenvolveu principalmente com a contribuição dos juristas ingleses e franceses da época do liberalismo. Locke, no ensaio do governo civil e Blackstone, nos Comentários às leis da Inglaterra, são os seus paladinos entre os britânicos, como Rousseau e Sieyés o são entre os franceses. À revolução de 1789 da França se deve uma oportuna classificação dos direitos, no seu interesse de limitar o Poder Público em benefício das liberdades, como é o fim do chamado Estado de Direito.”[17] (grifos nossos)

Com a chegada de um modelo de Estado de Direito, fortemente marcado pelos ventos do liberalismo, surge a necessidade de repensar a forma pela qual a sociedade iria participar no próprio processo histórico de formação.

Conforme citação acima transcrita, as liberdades urgem serem tuteladas pelo Estado, que passa a ter o monopólio da produção jurídica.

Essa participação popular foi ganhando espaço até que, por conta do advento da Constituição Federal de 1988, cria-se verdadeira regra do jogo para que a democracia se desenvolva no país.

No Brasil, portanto, é o artigo 14 da Carta Política que determina como será o exercício da soberania popular e indica que se dará através de plebiscito, referendo ou iniciativa popular.

O direito do cidadão de votar e ser votado[18], de exercer e fiscalizar atos do poder, são delineamentos do Estado Democrático.

Desta feita, importante comentarmos acerca da possibilidade da criação de partidos políticos[19], partidos que farão a ingerência do poder e, sustentados pela Carta Constitucional, visando à obtenção do lucro, dentro de uma realidade capitalista tendo por fim maior conferir uma existência digna à pessoa humana.

Sem os partidos políticos não há como organizar uma sociedade democrática, visto ser por meio deles a externalização da vontade popular.

É o que diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “a importância do sistema de partidos para a caracterização do regime político é reconhecida de modo pacífico desde a obra magistral de Duverger (Les partis, cit.). Os partidos são necessários à democracia na medida em que, por meio deles, se processa a formação política do povo, na medida em que se formulam as opções, escolhendo homens capazes de executá-las, que serão submetidas à escolha de eleitorado. Sua formação deve estar suficientemente aberta para que novas ideias, novos programas possam chegar à escolha popular; sua ação deve ser livre para que possa preencher sua função.”[20]

Essa organização de homens com opinião igual sobre a forma de gerência do poder, que busca trabalhar em função do interesse nacional (?), tem autonomia para definir sua estrutura interna, vedada a sua utilização para fins de organização paramilitar.

É, pois, através desses partidos que o cidadão viabilizará a estrutura do Estado Democrático de Direito, ou nos dizeres de J. J. Gomes Canotilho, “a articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional significa assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político, deriva do ‘poder dos cidadãos’.[21] (grifos nossos)

Destas breves linhas podemos afirmar que, combinando a necessidade dos partidos políticos, que têm garantia plural de desenvolverem sua ideologia, com a possibilidade de articular soberania dentro de dado território, com a finalidade de garantir vida digna aos cidadãos, é que estamos diante de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que, por óbvio, articulará o poder de forma sazonal, com vistas à obtenção do lucro.

 A superação do binômio direito público versus direito privado e a criação do subsistema de direitos difusos e coletivos

Por muito tempo, discutimos a dicotomia direito público versus direito privado, herança que trazemos do direito romano Essa divisão teria sido explicitada no Digesto, onde Ulpiano, após aceitar a definição de Direito proposta por Celso, dividiu-o em Direito em Público e Privado.[22]

Desta forma, públicos seriam aqueles direitos referentes ao estado dos negócios, enquanto que privado seria aquele que tratava do direito dos particulares.

O mestre Goffredo Telles Júnior, nas primeiras lições acadêmicas, já ensina que “para os romanos, o fundamento ou critério desta divisão era, evidentemente, a utilidade visada pelas leis. Diziam eles que certas coisas são de utilidade pública, outras são de utilidade particular; se a lei tem por objeto as primeiras, é lei de Direito Público; se tem por objeto as segundas, é lei de Direito Privado.”[23]

Conta-nos Rosa Maria de Andrade Nery, que “a expressão ‘direito privado’ tem conteúdo cultural e histórico, moldado a partir de sucessivas ocasiões de aperfeiçoamento da estrutura tradicional do direito romano, pelo fenômeno da recepção do direito antigo, em constante e progressiva evolução científica no decorrer do tempo.”[24]

Fato é que durante um longo período de tempo discutiu-se o critério para fazer tal distinção, que foi estudada sob o viés da utilidade ou do interesse. Acontece que muitas vezes o interesse do particular visa também ao interesse do Estado. Outras vezes é o interesse do Estado que incide sobre o interesse do particular. Desta forma, e conforme a categórica afirmação de Goffredo Telles Júnior, o interesse ou utilidade não são fundamentos substanciais para a divisão do direito.[25]

Maria Helena Diniz, com o brilhantismo que lhe é peculiar, trata do assunto oferecendo um panorama geral das teorias modernas acerca do debate e assevera que “hodiernamente, se tem buscado o elemento diferenciador no sujeito ou titular da relação jurídica, associando-se ao fator objetivo ou subjetivo. O direito público seria aquele que regula as relações em que o Estado é parte, ou seja, rege a organização e atividade do Estado considerado em si mesmo (direito constitucional), em relação com outro Estado (direito internacional), e em suas relações com os particulares, quando procede em razão de seu poder soberano e atua na tutela do bem coletivo (direito administrativo e tributário). O direito privado é o que disciplina as relações entre particulares, nas quais predominam, de modo imediato, o interesse de ordem privada, como compra e venda, doação, usufruto, casamento, testamento, empréstimo etc.”[26]

Digna de leitura e releitura é a obra do mestre Tércio Sampaio Ferraz que elucida a questão de forma específica. Inicia sua exposição com a citação de Ulpiano que dividiu e conceituou no Digesto, direito público e direito privado, e diz, sustentado por Hanna Arendt que, na Antiguidade, a esfera privada representava o reino da necessidade, uma vez que esta coage o homem a exercer um tipo de atividade para sua sobrevivência, sendo que a casa era o local em que desenvolvia essas atividades (por exemplo a produção de alimentos) e que a palavra privado tinha o sentido de privus, “do que é próprio, daquele âmbito em que o homem, submetido às necessidades da natureza, buscava sua utilidade como meios de sobrevivência. Neste espaço não havia liberdade, pois todos, inclusive o senhor, estavam sob a coação da necessidade”.[27]

Somente a alguns, os cidadãos, a ideia de desenvolver essa atividade dava-se fora do âmbito privado, visto que eles podiam praticar suas atividades nas cidades (polis). Nesse sentido é que a distinção vai tomando força, iniciando-se uma projeção da esfera privada na esfera pública.

Após verificarmos perfunctoriamente as raízes históricas da questão, vale ressaltar que essa dicotomia está superada.

Mauro Capelletti, em artigo histórico, ressaltava já no final do século passado, que entre o público e o privado havia um abismo.[28] Isso porque com as inovações tecnológicas, bem como com a vinda das pessoas que residiam na zona rural, para a zona urbana, a sociedade passou a exigir do legislador um direito que estivesse acima do interesse individual. O surgimento das grandes massas trouxe consigo a necessidade de uma tutela especifica que atendesse, de forma metaindividual, os interesses da sociedade.

Após os conflitos de massa terem atingido uma proporção gigantesca, e uma vez que o binômio direito público versus direito privado não conseguia mais solucionar todos os problemas de ordem social, surge um novo modelo de tutela adequado para essa sociedade de massa, passando a Constituição Federal promover explicitamente a tutela dos interesses difusos e coletivos.

Precisamos fazer referência a dois diplomas legais que, antes mesmo da Carta Política entrar em vigor, já indicavam a evolução do direito, e, por consequência, a superação do binômio público X privado.

O primeiro deles é a Lei n.º 4.717/65, conhecida como Ação Popular, que já dava “ares” na busca para instrumentalizar uma tutela que atendesse o interesse da massa. Claro que a Lei da Ação Popular, ainda tímida em 1965, é hoje um dos grandes mecanismos de defesa do interesse difuso e coletivo, elevada, inclusive, ao rol dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

O segundo é a Lei n.º 7.347/85, apelidada de Lei da Ação Civil Pública, delineava, já com traços mais fortes, a instrumentalidade de um direito que atendesse o cidadão quando da existência de lesão ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, bem como ao consumidor.

Acompanhando o desenvolvimento legislativo, assim como a necessidade de atender essa demanda é que o legislador Constituinte, em 1988, insere a matéria no sistema jurídico brasileiro, consagrando a existência de um bem que não é público, tampouco é particular: o chamado bem ambiental.

Celso Antônio Pacheco Fiorillo, que diz “em face dessa previsão constitucional (bem ambiental), foi publicada a Lei n. 8078, de 1990, que tratou de definir os direitos metaindividuais (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos) e acrescentou o antigo inciso IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85, que havia sido vetado, possibilitando, desse modo, a utilização da ação civil pública para a defesa de qualquer interesse difuso e coletivo .”[29]

Dignas de ressalva as palavras de Geisa de Assis Rodrigues que afirma que “a transindividualidade caracteriza a titularidade do direito, eis que seu gozo é atribuível a um conjunto mais ou menos indeterminado de pessoas, assim como a sua violação afeta a esfera jurídica desse espectro de indivíduos. Por isso que em muitos casos a transindividualidade equivale à indivisibilidade do objeto do direito, como ocorre no direito difuso e no direito coletivo, que também enseja a sua indisponibilidade. Aqui não se trata de um somatório de interesses individuais, mas sim um novo interesse que pertence a muitos ou a um grupo, sem que pudesse ter fruição individual.”[30]-[31]

Foi nesse sentido que houve significativa mobilização de juristas brasileiros[32], resultando na aprovação do projeto que criou, por fim, o Código de Defesa do Consumidor. Esse instrumento, em seu artigo 81, define direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Assim, por difusos e segundo inteligência de referido artigo, entende-se aqueles interesses ou direitos de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

1.2 – Princípios constitucionais

Buscando dar continuidade ao desenvolvimento do tema, necessário se faz, por todo o acima exposto, a análise, ainda que de forma sucinta, de alguns princípios constitucionais que incidem diretamente sobre a proteção do consumidor dentro do Estado Democrático de Direito.

É de se ressaltar que as Constituições anteriores não tratavam do tema, sendo essa preocupação explicitada na Carta Magna de 1988, que consagra, já no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[33], a necessidade normativa de referida temática.

Inova a Constituição Federal de 1988 em incluir a proteção de consumidor no tópico dos direitos e garantia fundamentais, quando determina em seu artigo 5.º, XXXII que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Assim, e conforme já tivemos oportunidade de dizer[34], o direito do consumidor torna-se direito fundamental, isto é, deu destaque à defesa do consumidor como base constitucional, até mesmo pela busca da igualdade.

Para Rizzatto Nunes, princípios são “dentre as formulações deônticas de todo o sistema ético-jurídico, os mais importante a serem considerados, não só pelo aplicador do Direito, mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se dirijam”.[35] Diz ainda o renomado Professor que, “os princípios situam-se no ponto mais alto de qualquer sistema jurídico, de forma genérica e abstrata, mas essa abstração não significa incidência no plano da realidade. É que, como as normas jurídicas incidem no real e como elas devem respeitar os princípios, acabam por levá-las à concretude”.[36]

Feliz é o posicionamento de Celso Antônio Bandeira de Melo no sentido de que “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.”[37]

É nesse sentido, e por tudo o que ressaltamos até agora, que se faz necessária a verificação dos princípios constitucionais que organizam nossa sociedade.

1.2.1 - Soberania

A palavra soberania tem sua origem, conforme nos explica Kildare Gonçalves Carvalho, em super omnia, superanus ou supremintas, indicando, segundo o autor, o poder de mando, em última instância, de uma sociedade politicamente organizada.[38]

Mas, somente a partir de 1576, com a publicação da obra de Jean Bodin, intitulada “Seis Livros Sobre a República”, é que o tema soberania ganha contornos tal como conhecemos hoje, visto que o autor traça um conceito formal em que determina ser a soberania poder absoluto e perpétuo da República.[39]

Em pleno século XVI, com a incidência do movimento iluminista, “a obra de Bodin restringe a soberania limitando-a à lei humana, já que a lei de Deus e a lei natural são independentes da vontade terrestre, e, por conseguinte, alem dos poderes do homem.”[40]

A soberania está indicada na Constituição Federal como fundamento do Estado Democrático de Direito e, segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo, não se trata somente de um fundamento estruturante, mas também de “princípio limitador da ordem econômica previsto no Titulo VII, art. 170, I, da Carta Magna”.[41]

Pensar a soberania hoje é transcender o conceito do século XVI, restando claro que o plano normativo a soberania está ligada ao patrimônio cultural brasileiro, no sentido em que são formas de expressão portadoras de referencia à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores de nossa sociedade.[42]

Importante a observação feita por José Afonso da Silva sobre a desnecessidade de mencionar a soberania, visto ser ela fundamento do próprio conceito de Estado.[43]

Soberania do Estado brasileiro implica, portanto, na sua autodeterminação de criar e impor leis, que têm como finalidade a organização da sociedade para seus destinatários finais: a pessoa humana.[44]

1.2.2 - Cidadania

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito de cidadão passa a ser observado sob a perspectiva dinâmica do sistema, ou seja, é sob a luz do sistema de direito positivo que devemos interpretar o conceito de cidadão, que, como verificaremos, passou por uma fundamental modificação.

Os regimes anteriores conceituavam cidadão como aquele que portava título de eleitor, vinculando alguns direitos à própria existência do referido documento.[45] Fato é que esse conceito foi alargado e, hoje, deve ser interpretado sob a óptica sistemática.

Nesse sentido é esclarecedora a lição de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que dizem ser “igual a dignidade social de todos os cidadãos – que aliás não é mais do que um corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas, cujo sentido imediato consiste na proclamação da idêntica validade cívica de todos os cidadãos, independente de sua inserção econômica, social, cultural e política, proibindo desde logo formas de tratamento ou de consideração social discriminatórias,.”[46]

É, pois, a cidadania, status para exercício dos direitos políticos, para o gozo pleno dos direitos constitucionais trazidos pela Carta Magna. É o que ensina Paulo Afonso de Leme Machado em brilhante lição: “Vejo a cidadania como a ação participativa onde há interesse público ou interesse social. Ser cidadão é sair de sua vida meramente privada e interessar-se pela sociedade de que faz parte e ter direitos e deveres para nela influenciar e decidir.”[47]

É nessa perspectiva atual que analisaremos a temática, já que o próprio consumidor é cidadão e deve gozar plenamente do arsenal de direitos e garantias que a Carta Política lhe oferece.

1.2.3 – Dignidade da pessoa humana

Com a chegada da filosofia humanística a partir do século XIV, os pensadores pararam de analisar o cosmos em função da análise do Homem. Essa análise resulta no que, bem mais tarde, sintetizou o jusfilósofo Miguel Reale. Para ele, a pessoa humana é a única capaz de dar valor a coisas e, portanto, passa a ser o valor-fonte de todos os valores.[48]

A partir dessa perspectiva e levando em conta a necessidade de levar para a esfera normativa alguns valores, principalmente após as barbáries mundialmente vividas pelas grandes guerras, é que passamos a dar ênfase ao ser humano e sua dignidade, sendo esta um marco para a interpretação de alguns sistemas de direito.[49]

O Brasil adotou a dignidade da pessoa humana não só como fundamento que rege e estrutura o Estado Democrático de Direito, mas também como verdadeira fonte de interpretação, paradigma do que se pretende no plano do direito positivo. Brilhante, portanto, o ensinamento de Rizzatto Nunes quando diz ser a dignidade da pessoa humana “primeiro fundamento de todo sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais.[50]

Diógenes Madeu esclarece que “a dignidade da pessoa humana é o princípio dotado de máxima normatividade e abstração, do qual são derivados os direitos fundamentais, que, por sua vez, são concebidos como os direitos humanos positivados nas constituições, explícita ou implicitamente. Esses direitos são imprescindíveis à realização da dignidade humana”.[51]

É, pois, dessa abstração que decorrerão outros princípios necessários para a vida digna, que juridicamente estão explicitados no art. 6.º da Carta Constitucional. É o que diz Celso Antônio Pacheco Fiorillo quando nomina referido artigo de “piso vital mínimo”, por se tratar do mínimo necessário para concretamente atender-se o conceito de dignidade da pessoa humana.[52]

A própria ordem econômica está fundada na existência digna, conforme verificaremos em momento oportuno.

1.2.4 – Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa           

Discorrer, ainda que em breves linhas, acerca da valorização do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos estruturantes da nossa sociedade é, sem dúvida, debater um tema que, por sua importância e complexidade, de per si mostra a preocupação do legislador em organizar um Estado, levando em conta alguns princípios balizadores.

O trabalho humano, tal como conhecemos hoje, é fruto de longa história. Se antes o trabalho era basicamente agrícola e o trabalhador ficava a mercê do seu Senhor, hoje ele está elevado à condição de direito fundamental, fazendo parte da estrutura do Estado Democrático Brasileiro.[53]

Com o advento constitucional de 1988 e conforme já pudemos observar, o trabalho humano ganha status de direito fundamental, ocupando lugar de destaque no ordenamento jurídico. Tanto isso é verdade, que a própria ordem econômica, em total harmonia com os preceitos fundamentais, destaca o trabalho humano, bem como a livre iniciativa, no afã de garantir existência digna.

Celso Antônio Pacheco Fiorillo, em obra de destaque, entende que “o trabalho tutelado na Constituição Federal, além de humano, tem que estar indelevelmente ligado a um aspecto econômico, na medida que ele, trabalho, é passível de valoração social.”[54]

Renomado jurista diz ainda que “seria lícito, portanto, afirmar que, em verdade, não é o trabalho de per si que é tutelado, mas sim os efeitos jurígenos decorrentes da situação de trabalhar, no sentido de que ele estaria ligado a uma necessidade de valoração social (proteção à saúde, segurança, lazer etc.).”[55]

Não é diferente o posicionamento de Eros Roberto Grau, que diz que “a valorização do trabalho humano e reconhecimento do valor social do trabalho consubstanciam cláusulas principiológicas que, ao par de afirmarem a compatibilização – conciliação e composição – portam em si evidentes potencialidades transformadoras. Em sua interação com os demais princípios contemplados no texto constitucional, expressam prevalência dos valores do trabalho na conformação da ordem econômica...”.[56]

Mas não são apenas valores sociais do trabalho que a Constituição referencia. Invoca também os valores sociais da livre iniciativa, permitindo, assim, pleno exercício da atividade econômica. A livre iniciativa, é, portanto, segundo o que leciona Eros Roberto Grau, “tomada no quanto expressa de socialmente valioso; por isso não pode ser reduzida, meramente, à feição que assume como liberdade econômica, empresarial (isto é, da empresa, expressão do dinamismo dos bens de produção); pela mesma razão não se pode nela, livre iniciativa, visualizar tão-somente, apenas, uma afirmação do capitalismo. Assim, livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pelo capital, mas também pelo trabalho.”[57]

A lição deixa claro que ao proceder assim, ou seja, ao elevar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa à condição de direitos fundamentais, o legislador determinou uma baliza para que o capitalismo pudesse se desenvolver, baliza que significa cumprir os ditames da justiça social, com vistas ao oferecimento de uma existência digna, nos moldes do que diz o art. 170 da Carta Magna.

1.2.5 – Pluralismo político

Desde que a Constituição Federal entrou em vigor, adotamos como fundamento o pluralismo político. Isto porque a nossa sociedade tem bases ideológicas diversas e a ideia é que essa multiplicidade de manifestações seja igualmente tutelada.

É por isso que a Carta Constitucional prevê a existência dos direitos políticos nos artigos 14 , 15 e 16; bem como, dos partidos políticos, no artigo 17. O próprio conceito de partido político[58] demonstra que a Carta Constitucional explicita um pluralismo para ver efetivados seus fundamentos.

É, portanto, a partir da possibilidade de criação de ideologias plurais, que poderão fazer a ingerência do Estado, é que garantimos a estrutura democrática nacional.

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Sobre o autor
Paulo Sérgio Feuz

Doutor, Mestre e Especialista em Direito pela PUC-SP. Coordenador e Professor do Curso de Direito das Faculdades Integradas Rio Branco da Fundação de Rotarianos de São Paulo. Professor da Graduação e Pós Graduação da da Faculdade de Direito da PUC-SP. Coordenador do Núcleo de Direito Desportivo da Pós Graduação em Direito da PUC-SP. Advogado em São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEUZ, Paulo Sérgio. A defesa do consumidor no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4456, 13 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42756. Acesso em: 19 dez. 2024.

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