II. DOS ATOS DE IMPROBIDADE
5. INTRODUÇÃO.
Conforme fora explicitado, este ensaio almeja traçar diretrizes básicas para a identificação dos atos de improbidade a partir da violação dos princípios que devem nortear a atividade dos agentes públicos. Com isto, visa-se a contornar os inconvenientes causados pela atecnia da Lei 8.429/92, diploma regulamentador do art. 37, § 4º, da CR/88, a qual, sempre de forma exemplificativa, elenca os atos de improbidade em seus arts. 9º [24], 10 [25] e 11 [26]. Aliada à enumeração de condutas de natureza e extensão perfeitamente definidas, o que é realizado em seus respectivos incisos, referidos dispositivos estabelecem cláusulas gerais, cuja elasticidade permitirá a ampla subsunção do ilícito perpetrado às referidas normas de moralização da atividade estatal. Nesta linha, deverá o aplicador do direito inicialmente verificar se houve violação aos princípios norteadores da atividade estatal. Tal interpretação apresenta-se em perfeita harmonia com a teleologia da norma e a sistemática legal, isto porque os atos de improbidade devem ser punidos independentemente da efetiva ocorrência de dano ao erário (art. 21, I, da Lei 8.429/92); a violação aos princípios constitui hipótese autônoma de improbidade (art. 11); o dano ao erário (art. 10) só configura a improbidade quando o agente viole os princípios norteadores de sua atividade, já que o prejuízo financeiro encontra-se ínsito em muitas atividades estatais, em especial as de cunho econômico (v.g.: intervenções do Banco Central no mercado financeiro); e o enriquecimento ilícito, por sua vez, é a mais vil das formas de improbidade, sendo nítida a violação ao princípio da moralidade.
Em um segundo momento, deve ser analisado o elemento volitivo do agente. Todos os atos emanados dos agentes públicos e que estejam em dissonância com os princípios norteadores da atividade administrativa, serão informados por um elemento subjetivo, o qual veiculará a vontade do agente com a prática do ato. Havendo vontade livre e consciente de praticar o ato que viole os princípios regentes da atividade estatal, dir-se-á que o ato é doloso; o mesmo ocorrendo quando o agente, prevendo a possibilidade de violá-los, assuma tal risco com a prática do ato. O ato será culposo quando o agente não empregar a atenção ou diligência exigida na hipótese, deixando de prever os resultados que adviriam de sua conduta por atuar com negligência, imprudência ou imperícia. Ante o teor da Lei 8.429/92, constata-se que apenas os atos que acarretem lesão ao erário público (art.10) admitem a forma culposa, pois somente aqui tem-se a previsão de sancionamento para tal elemento volitivo. Nas hipóteses de enriquecimento ilícito (art. 9º) e violação aos princípios administrativos (art. 11), o ato deve ser doloso.
Identificada a violação aos princípios administrativos e o elemento volitivo do agente, deve-se passar ao terceiro passo para a identificação da improbidade, qual seja, a subsunção do ato a um dos três preceptivos legais que elencam os atos de improbidade. Em havendo unicamente inobservância aos princípios regentes da atividade estatal, o ato será enquadrado no art. 11 da Lei 8.429/92. Na hipótese de o ato infringir os princípios e acarretar o enriquecimento ilícito do agente, aplicar-se-á o art. 9º. Importando o ato em violação aos princípios e dano ao erário, consubstanciada estará a figura do art. 10.
Por último, deve ser utilizado o princípio da proporcionalidade, o qual permitirá verificar se a lesividade do ato, analisada sob uma perspectiva intrínseca e extrínseca, justifica a aplicação da Lei nº 8.429/92. Com isto, tem-se uma verdadeira válvula de escape para a não subsunção dos atos dotados de insignificante potencialidade lesiva à tipologia da Lei nº 8.429/92.
A observância do iter sugerido ensejará a configuração do preceito primário da improbidade administrativa, ao qual estará atrelado o preceito secundário, disciplinado no art. 12 da Lei 8.429/92 e que prevê sanções distintas conforme os efeitos do ato – enriquecimento ilícito, dano ao erário e tão somente violação aos princípios regentes da atividade estatal.
A identificação e ulterior coibição da improbidade somente serão possíveis com uma ampla análise da observância dos princípios constitucionais que regem a atividade estatal. Para tanto, o princípio da separação dos poderes não pode ser erigido à categoria de óbice intransponível à aferição da integral subsunção dos atos do Poder Público aos princípios constantes do art. 37 da Constituição da República, o mesmo ocorrendo com relação aos princípios implícitos nesta e que defluem do sistema. Considerando que todos tem esteio constitucional, sendo os últimos considerados princípios setoriais pertinentes à Administração Pública, e, o primeiro, princípio fundamental da República Federativa do Brasil [27], a interpretação dos mesmos deve ser norteada por critérios lógico-sistemáticos, o que possibilitará sua maior integração e a potencialização de seus fins.
Com contornos semelhantes ao legado de Montesquieu, estabelece o texto constitucional que os Poderes (rectius: funções) da União são independentes e harmônicos entre si (art. 2º da CR/88). Independência e harmonia não são premissas conceituais que se excluem; pelo contrário, integram-se e complementam-se. Nesta linha, às atividades preponderantemente desempenhadas por cada qual são aplicáveis as diretrizes traçadas na Constituição, as quais buscam garantir a integridade dos fins almejados, vedando-se a ingerência externa; a concreção dos objetivos colimados; e a estrita observância dos princípios norteadores do Estado Social e Democrático de Direito. Com o desiderato final de garantir a integridade dos fins do aparato estatal e a pureza dos meios utilizados pelos poderes constituídos, são estabelecidos mecanismos de integração entre os mesmos, permitindo-se a implementação de um sistema de controle recíproco [28] e o legítimo exercício de atividades anômalas, ontologicamente pertencentes a determinada função, mas constitucionalmente outorgadas a outra.
O sistema constitucional pátrio apresenta peculiaridades que o distinguem de outros sistemas ocidentais. Na França, onde as distinções afiguram-se marcantes, a partir da Revolução, salvo expressa autorização legal, era defeso aos Juízes exercer qualquer controle sobre a atividade administrativa. Inicialmente, tal atividade era exercida por autoridades administrativas, consoante critérios de hierarquia; ulteriormente, no ano VIII da Revolução, foi implementada a separação da atividade administrativa ativa e da contenciosa, sendo criado um sistema de Tribunais Administrativos, o qual foi subdividido em duas categorias básicas: o Conselho de Estado e os Conselhos de Prefeitura. Com o romper das décadas o sistema sofreu diversas mutações, mas ainda hoje são identificadas múltiplas vedações quanto à possibilidade de o Judiciário pronunciar-se sobre a atividade administrativa. Esta separação é historicamente justificável em virtude da postura sistematicamente hostil dos tribunais em relação ao Executivo nos últimos anos do antigo regime francês [29]; hodiernamente, em que pese terem cessado os motivos originais, a estrutura é mantida não por razões de desconfiança do Judiciário, mas por auferirem os Tribunais Administrativos resultados satisfatórios; demonstrarem uma capacidade de adaptação mais célere às mutações de ordem administrativa; e por apresentarem um grau de especialização que não convém alterar.
No Brasil, ao Poder Judiciário foi confiada a tarefa de zelar pela estrita obediência dos preceitos contidos na Constituição da República e na legislação infraconstitucional; quer advenham de norma expressa; quer sejam conseqüência da densificação dos princípios exarados pelo sistema. Em razão disto, é defeso ao legislador infraconstitucional excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CR/88). Sendo a lesão ou a ameaça passíveis de serem perpetradas pelos próprios poderes constituídos, tem-se importante instrumento de controle da adequação dos atos destes aos princípios constitucionais, os quais apresentam-se como alicerce do próprio ente estatal. Considerando que todo o poder emana do povo, afigura-se inequívoco que a adequação do obrar do administrador aos referidos princípios erige-se como elemento indissociável da segurança que deve nortear as relações entre o Poder Público e os administrados, apresentando-se como direito destes e consectário lógico do próprio Estado Democrático de Direito. Estabelecidas estas premissas, tem-se que todos os membros da coletividade tem o direito subjetivo público de utilizar-se dos mecanismos pertinentes [30] e exigir que os poderes constituídos observem as diretrizes balizadoras do Estado. Todo o poder emana do povo, sendo exercido consoante os critérios estabelecidos na Constituição, a qual delimita o alcance e a forma de exercício dos poderes outorgados ao agente público, apresentando-se imperativa a utilização dos mesmos em benefício daquele.
Conclui-se que a valoração dos atos dos agentes públicos sob a ótica dos princípios mencionados não importará em qualquer mácula ao princípio da separação dos poderes; pelo contrário, zelará pela efetiva independência dos mesmos, garantindo a primazia dos princípios norteadores do Estado de Direito e implementando a indispensável harmonia entre os poderes, isto porque de nada valeria um comando constitucional em não havendo instrumentos aptos a implementar sua observância [31]. Afora isto, caracteriza-se como direito indisponível do administrado a garantia das liberdades públicas e a observância, por parte dos agentes públicos, dos princípios constitucionais, apresentando-se a inobservância destes insuscetível de ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário, isto sob pena de mácula ao art. 5º, XXXV da CR/88. Identificada a improbidade, está o Ministério Público legitimado [32] a ajuizar as medidas cabíveis [33] para que o Poder Judiciário, sem qualquer mácula ao princípio da separação dos poderes, recomponha a ordem jurídica lesada sempre que o obrar dos poderes constituídos não apresentar-se adstrito aos lindes delimitadores de sua legitimidade. Tal não importará em qualquer ingerência externa na atividade desenvolvida, mas tão somente velará para que a mesma mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Desta forma, não se estará diante de juízo censório ou punitivo à atividade desempenhada por outro poder, mas unicamente de aplicação de eficaz mecanismo previsto no regime democrático, sempre com o desiderato final de garantir o bem estar da coletividade.
A seguir, será realizada uma breve análise dos atos praticados pelos agentes públicos, os quais encontram-se subdivididos consoante a natureza de cada qual e não conforme a atividade preponderante do órgão emissor. Assim, verbi gratia, os atos administrativos, ainda que emanados dos Poderes Legislativo e Judiciário no desempenho de atividades administrativas, serão analisados em conjunto, já que invariáveis os princípios informativos.
6. ATOS ADMINISTRATIVOS.
Consoante a lição de Renato Alessi [34], a atividade administrativa é desenvolvida sob a concepção de função estatal, a qual deve ser entendida como o dever do agente em praticar determinados atos, valendo-se dos poderes que a lei lhe confere, visando a consecução do interesse da coletividade. A partir desta lição, teceremos breves considerações a respeito dos atos administrativos discricionários e dos caracteres delineadores do abuso de poder do administrador, principais veículos condutores da improbidade em sua acepção estritamente administrativa.
Ante a impossibilidade de delimitação precisa de todas as situações fáticas e jurídicas que ensejarão a prática de determinado ato, são comumente previstas em lei situações que admitem um juízo subjetivo do administrador quanto: à valoração da presença de determinada situação fática ou jurídica, em virtude da utilização de conceitos jurídicos indeterminados; à conveniência de agir; à oportunidade de agir; e quanto à escolha da medida adequada à hipótese. Tal liberdade caracteriza a discricionariedade administrativa, a qual visa melhor resguardar o interesse público ao garantir que o administrador, diante de determinada situação, possa agir da forma que melhor se adeqüe à consecução do interesse público. Em razão desta liberdade, encontra-se arraigada dentre a grande maioria dos administrativistas pátrios a concepção de que o denominado "mérito administrativo" [35] fugiria à esfera de valoração do Poder Judiciário, sendo injurídica a intromissão deste na esfera de liberdade outorgada ao administrador pela lei. Não obstante isto e amparados por valiosas lições doutrinárias [36], entendemos que os atos discricionários são passíveis de controle judicial. Partindo-se da noção de função estatal e de forma sintética, deve-se dizer que todo ato administrativo, inclusive o discricionário, deve visar a satisfação do interesse público, sendo certo que este somente será atingido a partir da identificação da solução que melhor se adeqüe à hipótese. Tal concepção tem esteio no próprio princípio da legalidade, já que a regra de competência e os poderes outorgados ao agente visam sempre uma finalidade pública, razão de ser do próprio Estado Democrático de Direito. Assim, sempre que a situação fática ou jurídica motivadora do ato tornar patente, de forma objetiva, que somente uma medida se adeqüe à hipótese, esta deverá ser adotada pelo agente, ainda que outras se apresentem à sua discrição. Em outros momentos, serão divisadas hipóteses em que mais de uma medida afigura-se adequada ao atingimento da finalidade pública; sendo, ainda aqui, admissível o controle judicial. Este será implementado a partir de um critério de razoabilidade, sujeitando o ato a indefectíveis parâmetros de obediência após a identificação de uma zona de certeza negativa – onde é patente a inadequação do ato – e de uma zona de certeza positiva – onde é certa a adequação do ato. Nesta hipótese, vedado será, unicamente, a interferência na zona intermediária, local em que reside a discrição do agente [37]. Com tais critérios de aferição, será possível identificar a validade dos atos discricionários e eventual infração aos princípios administrativos; o que, a partir da valoração da proporcionalidade do ato ante as sanções cominadas, permitirá identificar a consubstanciação da improbidade administrativa.
Ainda com base no alicerce erigido sob a concepção de função administrativa, tem-se que serão inválidos todos os atos praticados com abuso de poder, isto porque os instrumentos (rectius: poderes) outorgados ao agente não foram utilizados no cumprimento do dever de atingir o bem-estar da coletividade. O abuso poderá apresentar-se de duas formas: o excesso e o desvio de poder. Será verificado o excesso de poder quando o agente, servindo-se de uma competência que a lei lhe confere, rompe os limites estabelecidos por esta; bem como quando contorna dissimuladamente tais limites, apossando-se de poderes que não lhe são garantidos pela lei. Estará presente o desvio de poder quando o agente atua nos limites de sua competência, mas pratica o ato visando atender uma finalidade pública que não é aquela correspondente à competência utilizada [38] (v.g.: transferir um funcionário que praticara uma falta visando puni-lo); ou, tem seu obrar embasado em motivos ou fins diversos dos previstos na norma e exigidos pelo interesse público. Nos casos de desvio de poder, comumente o ato apresentará aparente adequação à legalidade, o que faz com que o princípio da moralidade assuma relevância ímpar na identificação do real propósito do agente, na revelação da intenção viciada deste [39] (v.g.: desapropriar um imóvel com o real propósito de prejudicar um adversário político). Deve-se ressaltar que não somente o ato comissivo pode assumir contornos abusivos; também o ato omissivo poderá apresentá-los, inobservando o agente seu dever jurídico em benefício próprio ou alheio. Identificado o abuso de poder e sempre com esteio no já analisado princípio da proporcionalidade, será possível delinear os contornos da improbidade administrativa.
7. ATOS LEGISLATIVOS.
Sendo a lei produto da razão e, consoante a clássica lição de Kelsen, estando a validade da mesma adstrita à observância da norma que lhe é hierarquicamente superior, torna-se certo que o legislador infraconstitucional deve render estrita obediência aos comandos estuídos no texto constitucional, isto sob pena de invalidade das normas que editar. Como se vê, a atividade legislativa não é incontrastável, devendo ser perquirida sua adequação aos comandos constitucionais, o que torna legítima a atuação do Poder Judiciário neste sentido. Em linha de princípio, entendemos que a edição de norma dissonante da Constituição, por si só, não teria o condão de caracterizar a improbidade administrativa. Identificada a inconstitucionalidade da norma, deveria ser perquirido, de acordo com o caso concreto, o elemento volitivo que deflagrou a ação do órgão legislativo e a finalidade almejada com a edição da norma. A partir de tais elementos, seria estabelecido um critério de proporcionalidade na conduta do legislador, o que permitiria a identificação da improbidade sempre que a norma for absolutamente dispensável; dissociada do interesse público; e a situação fática demonstrar que o desiderato final do agente era obter benefício para si ou para outrem com a mesma. Para melhor visualização do tema, seria relevante identificar se a hipótese versa sobre lei em sentido material ou, tão somente, em sua acepção formal. Na primeira hipótese tem-se uma norma de conduta instituída em caráter imperativo e geral, a qual veicula regras eminentemente abstratas; lei formal, por sua vez, é a denominação dada a toda deliberação do órgão legislativo, destituída de abstração e generalidade. Aquela tem natureza impessoal e universal, enquanto que esta em muito se assemelha aos atos administrativos.
Tratando-se de lei em sentido material, o principal parâmetro de verificação de sua adequação ao padrão de probidade que deve reger os atos do agente público consiste na observação do princípio da moralidade; o que permitirá a identificação dos vícios de uma norma aparentemente harmônica com o texto constitucional. Como já foi possível constatar, o princípio da moralidade é amplamente estudado sob a ótica dos atos administrativos, sendo torrencial a jurisprudência sobre a aplicação do mesmo. Em que pese a aparente adstrição do princípio à referida seara, sua observância deve assumir uma amplitude compatível com a unidade do texto constitucional, regendo as atividades das demais funções do Estado de Direito, em especial a legislativa. A normatização expressa e a densificação dos princípios extraídos da Constituição da República erigem-se como alicerce adequado à sustentação da necessária adequação dos atos legislativos ao princípio da moralidade. Se não vejamos: a) a República Federativa do Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); b) o amplo acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e a utilização da ação popular para anular ato lesivo à moralidade administrativa (art. 5º, LXXIII) apresentam-se como direitos fundamentais; c) a moralidade administrativa caracteriza-se como princípio setorial da administração pública direta ou indireta, de qualquer dos Poderes, (art. 37, caput); d) a falta de decoro parlamentar apresenta-se como substrato legitimador da perda do mandato dos Deputados e Senadores (art. 55, II); e) os sistemas de controle difuso (art. 97) e concentrado (arts. 102, I, "a" e 125, § 2º) de constitucionalidade permitem a aferição da compatibilidade entre as leis e demais atos normativos com a Constituição da República, aqui incluídos os princípios que defluem do sistema.
Note-se, no entanto, que não se defende um campo de atuação ilimitada para o Judiciário, devendo ser respeitadas e acatadas as opções políticas do legislador. O que se almeja é a perquirição da adequação entre a norma de conduta editada, os princípios constitucionais norteadores da atividade estatal e o real elemento volitivo que deflagrou a atividade legislativa – o que avultará em importância quando se constatar que o legislador recebeu vantagens patrimoniais para defender certos interesses. O Supremo Tribunal Federal tem coibido os desvios éticos do legislador invocando os princípios do devido processo legal (em sua acepção material) e da razoabilidade, sempre visando evitar o excesso ou o desvio de poder legislativo; no entanto, são raras as invocações ao princípio da moralidade, havendo grande resistência em declarar-se a inconstitucionalidade de determinada norma unicamente com fundamento neste. Resistência à parte, é inequívoco que a violação aos deveres de justiça, honestidade e boa-fé que são extraídos do texto constitucional importam em violação à moralidade, a qual, por si só, pode embasar a deflagração do controle difuso ou concentrado de constitucionalidade. Na lição de Marcelo Figueiredo [40], "constata-se que a violação ao princípio da moralidade surge, essencialmente, quando a autoridade (administrativa, legislativa ou judiciária) desvia-se dos comandos expressos ou implícitos contidos no ordenamento jurídico, notadamente nos princípios constitucionais. Essa a razão por que a constatação da violação ao princípio da moralidade normalmente vem associada à violação a outros princípios constitucionais, como, v.g., a legalidade, a isonomia, a publicidade, a impessoalidade etc. Isso não significa que o princípio da moralidade não possa por si só ser a causa do vício impugnado."
À guisa de ilustração e pinçando unicamente o exemplo mais recente, deve ser mencionada a Lei 9.996 de 14 de agosto de 2000, a qual "dispõe sobre a anistia de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral em 1996 e 1998." Como foi amplamente noticiado pelos meios de comunicação à época, os ilustres congressistas e principais infratores da legislação eleitoral, visando satisfazer interesses pessoais, aprovaram referido diploma legal com a inqualificável intenção de não arcarem com as sanções que lhes foram aplicadas em razão dos ilícitos praticados por ocasião da campanha eleitoral. Afora isto, é relevante lembrar que o projeto foi vetado pelo Presidente da República, sendo o veto ulteriormente derrubado, em votação secreta, pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, conforme autoriza o art. 66, § 4º, da CR/88. In casu, questiona-se: legislar em causa própria e provocar sérias lesões ao Fundo Partidário, ente destinatário das multas recolhidas, importa em violação ao princípio da moralidade? Em nosso entender, sim. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADIN 2.306-3 [41], suspendeu, em sede de cognição sumária, a eficácia da Lei 9.996/00 sob o argumento de que a mesma seria inconstitucional por lesar os direitos de uma pessoa jurídica de direito privado, qual seja, o Fundo Partidário. A conduta dos ilustres congressistas, imoral ao extremo, apresentar-se-ia como nítido ato de improbidade, pois utilizaram-se de suas funções para auferir benefícios pessoais, ou mesmo visando a beneficiar a outrem - isto na hipóteses dos condescendentes não devedores.
Em que pese o exposto, à luz do sistema constitucional pátrio, não se afigura possível punir os parlamentares - federais, estaduais e municipais - pelas palavras, opiniões e votos que emitirem no exercício de suas funções, pois tais agentes gozam de imunidade material [42].
8. ATOS JURISDICIONAIS.
Cabe preponderantemente ao Poder Judiciário, mediante um devido processo legal e com eficácia vinculativa, dirimir as lides que lhes sejam submetidas à apreciação, aplicando o direito ao caso concreto; bem como atuar nas hipóteses em que inexista conflito, mas a lei exija sua intervenção. Ante a natureza da atividade desempenhada pelos órgãos jurisdicionais, não é necessário maior esforço intelectivo para se constatar a impossibilidade de realização de um controle da atividade finalística desempenhada pelos mesmos. Deve ser ampla a possibilidade de o órgão jurisdicional valorar os fatos e proferir, consoante as normas vigentes, a decisão que se afigurar mais justa à hipótese. Ao interessado restará a utilização dos mecanismos disponibilizados pelo ordenamento jurídico, fazendo com que a causa seja reexaminada pelo mesmo, ou por outro órgão, nas situações previstas em lei. Justifica-se tal concepção, pois entendimento contrário disseminaria a insegurança e comprometeria a própria atividade jurisdicional, sujeitando os magistrados a severas sanções sempre que suas decisões fossem reformadas sob o argumento de apresentarem dissonância com a lei ou a Constituição, o que seria um grande absurdo. No entanto, afora a perquirição do conteúdo dos atos administrativos praticados pelos membros do Poder Judiciário, duas situações merecem maior reflexão: a) a influência de fatores externos no teor das decisões proferidas; e b) a omissão deliberada na prática dos atos jurisdicionais.
É inconcebível um conceito de Justiça dissociado da idéia de imparcialidade, somente havendo exercício da função jurisdicional em sendo visada a consecução do ideal de Justiça; e esta somente se materializará em havendo eqüidistância entre o julgador e as partes, sem preferências de ordem pessoal. Em razão disto, sempre que for constatada a presença das situações fáticas consubstanciadoras do impedimento ou da suspeição do magistrado -consoante a previsão legal- aliadas ao silêncio deste e ulterior prolação de decisório favorável a uma das partes, ter-se-á um relevante indicador da improbidade do mesmo. Tal ocorrerá com maior intensidade quando haja recebimento de algum tipo de vantagem patrimonial para que a decisão seja favorável a uma das partes. In casu, haverá flagrante violação aos princípios da legalidade e da moralidade; sendo imprescindível, no entanto, que a verificação de tais irregularidades seja feita com grande cautela, inclusive com o manejo da ação rescisória prevista no art. 485, I e II do CPC.
Além de levar a efeito a dialética processual, valorando os interesses contrapostos e proferindo seu decisório final, tem o magistrado o dever de praticar os atos de impulso processual e proferir suas decisões em tempo hábil, observando, sempre que possível, os prazos da lei processual. Não se sustenta, é evidente, que um magistrado responsável pela condução de milhares de feitos deva observar prazos exígüos cuja previsão normativa encontra-se em flagrante dissonância com a realidade fenomênica. Tais situações são extremamente corriqueiras, o que torna impossível que um ser humano, como é o magistrado, corresponda às expectativas de todos que necessitam de um pronunciamento jurisdicional célere. No entanto, em muitos casos, a desídia será clara aos olhos do observador, sendo facilmente vislumbrado o injustificável aumento de processos paralisados em "conclusão", ou mesmo o irrisório volume de sentenças e audiências realizadas, o que pode ser verificado a partir da publicação das pautas e das estatísticas nos órgãos oficiais. Em situações tais, deve o observador ser norteado por um critério de razoabilidade, o que permitirá que a conclusão alcançada assuma contornos de objetiva certeza, tornando-se patente que o magistrado retardou ou deixou de praticar, indevidamente, atos de ofício (art. 11, I, da Lei 8.429/92). Constatada tal situação e independentemente das sanções administrativas e penais que o mesmo será passível de sofrer, configurada estará a improbidade administrativa [43], havendo flagrante violação aos princípios da legalidade e da moralidade.
9. DA CASUÍSTICA.
Consoante a sistemática adotada neste ensaio, a análise casuística das situações configuradoras da improbidade administrativa previstas na Lei 8.429/92 assume caráter eminentemente secundário, já que os ilícitos perpetrados pelos agentes públicos são analisados sob uma perpectiva principiológica. Não obstante isto e visando melhor ilustrar a exposição, procederemos à análise de uma situação comumente divisada no cotidiano dos agentes públicos.
A teor do art. 9º, VII, da Lei 8.429/92, constitui ato de improbidade, importando em enriquecimento ilícito, "adquirir para si ou para outrem, no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público". Em torno deste preceptivo legal foram construídas basicamente três linhas de argumentação. Consoante a primeira, trata-se de nítida hipótese de inversão do ônus da prova, cabendo ao agente provar que os bens de valor desproporcional à sua renda foram adquiridos com numerário de origem lícita [44]. De acordo com a segunda corrente, ao autor caberia o ônus de provar não só a desproporção entre os bens adquiridos e a renda auferida pelo agente, como também a prática de conduta ilícita no exercício da função e o nexo de causalidade existente entre esta e referida aquisição [45]. Esta posição possui os seguintes alicerces: a) a Lei 8.429/92, diferentemente da legislação fiscal, não faz referência a sinais exteriores de riqueza; b) o caput do art. 9º dispõe que os bens devem ter sido adquiridos "em razão do exercício do cargo...", o que é extensivo ao inciso VII, devendo o autor provar o nexo causal; c) o art. 26 do projeto que originou a Lei 8.429/92 previa a inversão do ônus da prova, não tendo sido aprovado. A terceira corrente, que entendemos mais consentânea com o espírito e a letra da lei, sustenta que: a) ao autor incumbe comprovar a desproporção entre os bens e a renda do agente, inexistindo inversão do ônus da prova; b) a lei 8.429/92 refere-se à aquisição de bens de valor desproporcional à renda, o que representa efetivo sinal exterior de riqueza; c) a mens legislatoris não guarda sinonímia com a mens legis, tendo relevância meramente histórica; e d) o caput do art. 9º contém conceito jurídico indeterminado, enquanto que os diversos incisos do referido preceptivo abrangem situações fáticas autônomas e específicas. [46]
Feito um breve resumo das correntes predominantes, resta tecer algumas considerações de ordem suplementar à posição que sufragamos. No incisos VII e VIII, do art. 9º encontram-se elencadas situações fáticas que, consoante as regras de experiência, apresentam-se como consectários lógicos do obrar ilícito do agente público em suas atividades, acarretando uma relação de causa e efeito com as mesmas. O agente que aceita emprego de pessoa física ou jurídica que tenha interesse em sua atividade, por óbvio e independentemente de restar provado qualquer obrar ilícito do mesmo, estará auferindo vantagens indevidas do cargo que exerce. Do mesmo modo, aquele que exerce atividade laborativa perante o Poder Público com dedicação exclusiva e percebe módica remuneração, acaso apresente evolução patrimonial faraônica será induvidosa a origem ilícita de seus bens. Nesta linha, é oportuno trazer à baila a lição do Mestre das Provas, Nicola Framarino Dei Malatesta [47], verbis: "No indício, a coisa que se apresenta como conhecida é sempre diversa da desconhecida, que se faz conhecer. Ora, uma coisa conhecida só nos pode provar uma diversa coisa desconhecida, quando se nos apresente como sua causa ou efeito, porquanto entre coisas diversas não há, conforme demonstrado, senão a relação de causalidade, capaz de conduzir de uma a outra."... "Da força que pode apresentar a relação de causalidade que ocorre entre fato indicante e fato indicado, relação de causalidade que é o trâmite lógico do raciocínio indicativo, deduzimos o valor probatório que pode apresentar o indício." Compete ao autor o ônus de provar a aquisição de bens de valor desproporcional à renda do agente, sendo este o fato indicante; o fato indicado, por sua vez, é o enriquecimento ilícito, o qual é desdobramento lógico do mesmo. Assim, não há que se falar em inversão do ônus da prova, restando ao agente público demandado, unicamente, o ônus de provar os fatos modificativos, impeditivos ou extintivos da pretensão do autor, o que deflui da própria sistemática vigente (art. 333, II, do CPC). Ademais, entendimento contrário culminaria em coroar a perspicácia de ímprobos cujo patrimônio aumenta em progressão geométrica e que possuem atividade extremamente diversificada, o que inviabilizaria a identificação do momento e da forma em que se operou o ilícito deflagrador de tal prosperidade.