Breve análise acerca da paternidade socioafetiva

17/09/2015 às 10:51
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Desde a promulgação da CF/88, o conceito de família passou por notáveis mudanças. A paternidade antes caracterizada a partir de questões de ordem genéticas, atualmente exige do legislador a observância, em especial, dos laços afetivos entre as partes.

As primeiras noções de família nos remetem a uma ideia de preocupação exclusiva com a linhagem genética, porém, com a evolução da entidade familiar, essa ideia que em tempos mais remotos era aceitável, atualmente é abominada pela sociedade, a qual acredita que a família se funde também pelo afeto e não mais no intuito procriativo.

Segundo Dias (2007, apud ALVES, 2008, p. 11), “a entidade familiar está disposta em uma estruturação psíquica em que cada um ocupa um lugar e possui uma função (pai, mãe e filho), sem, no entanto, estarem necessariamente ligados por laços sanguíneos”.

É o caso, por exemplo, de crianças e adolescentes que privados do convívio com seus pais, no plano biológico ou jurídico, passam a se relacionar no campo afetivo com outras pessoas que diante do fato acabam por assumir a posição de pai e mãe.

Diante disso, a família anteriormente existente, concedeu lugar a uma outra concepção de família, a qual tem por objetivo permanecerem unidos pelo fato de entre eles haver identificação quanto ao sentido de vida e família, bem como pela existência de afeto.

Maria Berenice Dias, no livro Manual de Direito das Famílias (2010, p. 55), diz: A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor, de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca”.

Nesse mesmo sentido, como leciona Paulo Luiz Netto Lobo (2008, apud LIMA, 2009, p. 12), no Brasil, a filiação é conceito único, não se admitindo adjetivações ou discriminações. Desde a Constituição de 1988 não há mais filiação legítima, ilegítima, natural, adotiva, ou adulterina.

Devido a essa transformação social, cabe ao legislador o compromisso de conciliar o direito com a dinâmica social. Para tanto, com o advento da Carta Magna de 1988, surge um novo modo de tratar a relação parental, onde se prioriza, dentre outros, a busca da real paternidade.

Por conseguinte, prevê o artigo 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, nestes termos:

Art. 227, (...)

Parágrafo 6º - os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Pôde-se então verificar por meio de uma análise histórica que em um primeiro momento a paternidade considerada verdadeira era aquela emanada do matrimônio, preestabelecida pela presunção pater is est e legalmente reconhecida, a qual recebeu a denominação de paternidade jurídica. Já em um segundo momento, a paternidade real era fundada em laços de sangue, especialmente em consequência das evoluções genéticas e exames de DNA, esta, denominada paternidade biológica.

Porém, nenhuma dessas espécies de paternidade era capaz de suprir a necessidade que se tinha de determinar quem realmente assumia a identidade de pai. Foi então que se passou a observar a paternidade sociológica, onde predominam os vínculos afetivos, ou seja, a construção diária da relação paterno-filial.

Nesse sentido, elucida Jacqueline Filgueiras Nogueira (2001, p.84):

O verdadeiro sentido das relações pai-mãe-filho transcende a lei e o sangue, não podendo ser determinadas de forma escrita e nem comprovadas cientificamente, pois tais vínculos são mais sólidos e mais profundos, são ’invisíveis’ aos olhos científicos, mas são visíveis para aqueles que não têm olhos limitados, que podem enxergar os verdadeiros laços que fazem de alguém um ‘pai’: os laços afetivos, de tal forma que os verdadeiros pais são os que amam e dedicam sua vida a uma criança, pois o amor depende de tê-lo e se dispor a dá-lo. Pais onde a criança busca carinho, atenção e conforto, sendo estes para os sentidos delas o seu ‘porto seguro’. Esse vínculo, por certo, nem a lei nem o sangue garantem.

Ou seja, a paternidade socioafetiva não se baseia somente no vínculo biológico com a criança, mas também naquela pessoa que constrói laços afetivos, que cria, educa, garante melhores condições de vida, que cumpre a função de pai, levando em consideração o melhor interesse da criança. No entender de Zeno Veloso (1997, p. 215):

Quem acolhe, protege, educa, orienta, repreende, veste, alimenta, quem ama e cria uma criança, é pai. Pai de fato, mas, sem dúvida, pai. O ‘pai de criação’ tem posse de estado com relação a seu ‘filho de criação’. Há nesta relação uma realidade sociológica e afetiva que o direito tem de enxergar e socorrer. O que cria, o que fica no lugar do pai, tem direitos e deveres para com a criança, observado o que for melhor para os interesses desta.

Nota-se, portanto, que algumas das vezes, levando em consideração o melhor interesse da criança, os laços de afetividade que unem pais e filhos são mais fortes que os laços biológicos que possam existir.

Nessa perspectiva, o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sentenciou:

EMENTA: APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retirá-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois se arrependendo. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste colegiado, a PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse da criança. Negaram Provimento.

A relação de paternidade, portanto, não mais depende exclusivamente do vínculo biológico. Independente de ser ou não biológica, a paternidade sempre será caracterizada por laços de afetividade, por isso a necessidade de os juristas observarem a distinção entre pai e genitor. Paulo Luiz Netto Lôbo (2006, p. 16), em escrito publicado na Revista CEJ, atenta quanto ao fato:

Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora, segundo o princípio constitucional da isonomia entre sexos, mas que não envolvam direitos e deveres próprios da paternidade.

Seguindo a mesma ideia, o Relator Desembargador Washington Ferreira, da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE COM ANULATÓRIA DE REGISTRO. VÍCIO DE ERRO À ÉPOCA DO REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA. PATERNIDADE BIOLÓGICA DIVERSA. COMPROVAÇÃO. VÍNCULO SOCIOAFETIVO DEMONSTRADO. PEDIDO IMPROCEDENTE. RECURSO NÃO PROVIDO. 

I. A ausência de vício no registro, atrelada ao evidente vínculo socioafetivo já estabelecido entre o pai registral e a filha registrada, obsta o pedido de anulação do registro, muito embora tenha sido comprovada a paternidade diversa; 

II. O vínculo afetivo que se formou entre o Autor e a Ré não se apaga pura e simplesmente com a ação negatória de paternidade, porque a filiação socioafetiva se sobrepõe à vontade unilateral do genitor em excluir a paternidade. 

III.A desconstituição da paternidade exige não só a demonstração científica através do exame de DNA,negando-a, mas também a ausência de relação sócioafetiva. Se a prova dos autos atesta que houve essa relação marcada fortemente pela convivência familiar, caracterizado está o estado de filiação que é prestigiado pelo Estatuto Menorista e pela Constituição Federal, criando direitos e obrigações.  

Dessarte, quando ocorre a comprovação da paternidade socioafetiva, há por comprovada a existência da vontade real de ser pai e filho, onde se nota estar consumada uma relação espontânea.

Luiz Edson Fachin (1992, apud COSTA, 2009, p. 132), explica que nem sempre é necessário que se preencha os três elementos que a doutrina aponta como determinantes para a caracterização da posse do estado de filho (quais sejam, nome, trato e fama), diante da grande diversidade de situações que se apresentam, sendo necessário um estudo individualizado de cada caso concreto.

Contudo, dessa relação surgem obrigações que devem ser observadas por ambas as partes. Ao pai, como dito anteriormente, caberá exercer a paternidade de forma responsável, cumprindo além de seus deveres legais, seus deveres afetivos.

Atualmente, a paternidade socioafetiva vem sendo equiparada à adoção por nosso ordenamento jurídico, já que em ambos os casos, há uma relação de pai e filho, independente de haver ou não laços consanguíneos. 

Sílvio de Salvo Venosa (2005, apud SOBRAL, 2010) elucida que:

O reconhecimento, como já afirmado, tem efeito ex tunc, retroativo, daí por que seu efeito é declaratório. Sua eficácia é erga omnes, refletindo tanto para os que participaram do ato de reconhecimento, voluntário ou judicial, como em relação a terceiros. Dessa eficácia decorre a indivisibilidade do reconhecimento: ninguém pode ser filho com relação a uns e não filho com relação a outros. Vimos também que esse ato jurídico é puro, não pode ser subordinado a termo ou condição. É irrevogável, somente podendo ser anulado por vício de manifestação de vontade ou vício material. A sentença que reconhece a paternidade produz, como vimos, os mesmos efeitos do reconhecimento voluntário.

Ou seja, consoante dispõe o Código Civil de 2002 em seus artigos 1.604, 1.610 e 1.638, trata-se o reconhecimento da paternidade socioafetiva de ato voluntário, o qual não pode ser revertido, com exceção dos casos em que houver erro ou falsidade do registro, ou quando for desconstituído o poder familiar.

Isto posto, o reconhecimento do estado de filiação sociológica produzirá, da mesma forma como ocorre na filiação biológica, efeitos pessoais e patrimoniais.

Um dos efeitos jurídicos decorrentes desse reconhecimento é o dever alimentar. Esse dever encontra respaldo tanto no Código Civil de 2002 quanto na Carta Magna de 1988, nos seguintes artigos:

Art. 1.634, CC/02. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I - dirigir-lhes a criação e educação

Art. 1.695, CC/02. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.

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Art. 227, CF/88. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Parágrafo 6º - os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Art. 229, CF/88. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Conclui-se, portanto que o dever alimentar é decorrente da relação de parentesco criada pelas partes, procurando-se manter as necessidades básicas da criança em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, não podendo o direito a alimentos ser renunciado, penhorado ou transmitido. 

Outro efeito do reconhecimento dessa espécie de paternidade é quanto aos direitos sucessórios.

Os direitos sucessórios são recíprocos, se estendendo a todos os parentes sucessíveis. De acordo com o disposto no artigo 1.794 do Código Civil de 2002, aplicar-se-á, então, a legislação vigente à época da abertura da sucessão.

Art. 1.794, CC/02. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

Neste sentido, têm-se os dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2007, apud SOBRAL, 2010):

Em face da atual Constituição Federal (art. 227, §6º), do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 20) e do Código Civil de 2002 (art. 1.596), não mais subsistem desigualdades entre filhos consanguíneos e adotivos, legítimos e ilegítimos, que constavam dos arts. 377 e 1.605 e parágrafos (o §1º já estava revogado pelo art. 54 da LD) do Código Civil de 1916. Hoje, todos herdam em igualdade de condições. Mesmo os adotados pelo sistema do diploma revogado (adoção restrita) preferem aos ascendentes. O mesmo ocorre com os filhos consanguíneos havidos fora do casamento, desde que reconhecidos.

Ou seja, tanto os filhos consanguíneos como os socioafetivos detém dos mesmos direitos e deveres, possuindo a mesma capacidade sucessória e ocupando a posição de herdeiros necessários.

Por fim, cumpre mencionar que por mais que não haja previsão legal expressa a respeito da paternidade socioafetiva, esta vem aos poucos tendo seu merecido reconhecimento jurídico, em especial na Constituição Federal de 1988, uma vez que tal legislação admitiu toda e qualquer forma de parentesco.

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