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Aspectos históricos da responsabilidade civil médica

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6 A evolução no Direito Brasileiro

A história ancestral da responsabilidade civil – ou obrigação de reparação de danos – no Brasil tem seu marco inicial nas Ordenações do Reino. Nelas se mantinha forte a influência do Direito Romano, que era expressamente mencionado como fonte subsidiária de direito positivo [8].

Até então, a responsabilidade civil estava atrelada à responsabilidade penal, havendo menção, no Código Criminal de 1830, ao dever de satisfação, ou seja, de ressarcimento pelo ofensor à vítima, em razão do dano causado.

Nada mais natural, para nós, esta separação. Entretanto, não era este o pensamento predominante à época. O elemento definidor da esfera de responsabilidade é, basicamente, o tipo de interesse atingido. Na responsabilidade civil, a lesão é de ordem essencialmente privada, sem necessidade de ofensa à ordem pública. Já em relação à responsabilidade penal, o interesse lesionado é de ordem social, tutelado pelo Estado. Normalmente se verifica a existência de uma vítima prejudicada, mas este não é elemento indispensável. O importante é a distinção entre ordem pública e interesses privados.

Sobre o assunto, aduz Câmara Souza [9]:

"Uma próxima fase, a terceira, tem início pela genialidade de Teixeira de Freitas, o qual não concordava que a responsabilidade civil estivesse ligada à responsabilidade criminal. Ele observava, em seus escritos, que o ressarcimento do prejuízo ocasionado pelo delito passava a ser abordado como competência de legislação civil. Isso ocorria, segundo ele, em conseqüência da Lei de 3 de dezembro de 1841 ter derrogado o Código Criminal, tendo revogado-lhe o art. 31 e o § 5º do art. 269 do Código de Processo. Nessa mesma época, portanto, o instituto da responsabilidade civil se consolida como independente da responsabilidade criminal, passando, também, a se fundamentar no conceito de culpa, desenvolvendo-se a teoria da responsabilidade indireta, sendo admitida a presunção de culpa no dano causado por coisas inanimadas. Desenvolve-se, na mesma época, o princípio da responsabilidade dos funcionários públicos."

Marilise Kostelnaki Baú [10], assim complementa:

"No Brasil-Colônia, as Ordenações do Reino determinavam a obrigação de satisfação do dano, conforme comenta Valler, ao mencionar o art. 21, que tratava da obrigação do delinqüente de reparar o dano causado com o delito. O art. 22 determinava manter que a satisfação devesse ser a mais ampla possível e que, em caso de dúvida, a interpretação fosse feita em favor do ofendido. O art. 29, de sua vez, tratava da obrigação dos herdeiros do delinqüente em satisfazer o dano até o limite dos bens herdados.

Até o começo do século, a responsabilidade civil, no Brasil, no referente ao funcionário público, prevista na Constituição Federal, e quanto ao transporte de coisa, estabelecida no Código Comercial. Lei específica surgiu, pela primeira vez, em 1912, versando sobre a regulamentação da responsabilidade das estradas de ferro. O princípio norteador, genérico, sobre a responsabilidade aquiliana, adveio com os artigos 159 e 160 do Código Civil, de 1916. Dessas regras emanam todas as demais obrigações de reparação de danos."

Nossa doutrina desenvolveu-se no sentido de considerar passível de responsabilização civil a violação de duas fontes de obrigação; a inobservância de textos legais e o descumprimento da norma contratual.

Posteriormente, com o estabelecimento da indenização por dano moral alçado a elemento constitucional, através do advento da Constituição Federal de 1988, e com a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor, de 1990, nova era de direitos veio a se estabelecer no país, no tocante à responsabilidade civil, consoante já verificado em trabalhos anteriores, de nossa autoria.


7. Conclusões

Esta, em síntese, a história da formação das bases filosóficas e doutrinárias dos atuais conceitos de responsabilidade civil, de inegável influência no cotidiano dos profissionais da área de saúde.

A crescente interposição de ações judiciais contra erros médicos, em todas as regiões do país vem demonstrar a realidade destes aspectos. Os números demonstram não só a alarmante repetição de situações de risco, a precariedade das condições físicas, mas também o despreparo de profissionais jogados no mercado sem a devida habilitação e compromisso. Por outro lado, evidencia-se uma conscientização cada vez maior da população, em busca de qualidade no atendimento que lhe é entregue.

A má conduta profissional não deve, sob nenhuma hipótese, ser confundida com a má prática médica. A má conduta é geradora do erro médico, resultado imprevisto ou indesejado que pode ser ocasionado por ação ou omissão. Já a má prática médica ocorre quando os conhecimentos da medicina são desviados de sua finalidade primeira, e utilizados de forma a atentar contra a dignidade do ser humano, através de experiências científicas não autorizadas, ou mesmo qualquer tipo de discriminação, sob qualquer pretexto ou forma.

A prática da medicina, por ser uma atividade humana, está necessariamente limitada em seus conhecimentos, e exposta a resultados eventualmente adversos e inesperados. Todavia, é inegável que um dos ramos da ciência que experimentou maior desenvolvimento no decorrer do século passado foi exatamente o da medicina.

Os trabalhos e pesquisas realizados permitiram a identificação de novas doenças e agentes patogênicos, com a determinação de sua etiologia, ocasionando a possibilidade de diagnósticos precisos, e terapêuticas adequadas mediante tratamentos clínicos ou intervenções cirúrgicas cada vez mais especializadas e cada vez mais delicadas. Tudo isto representa um considerável aumento de complexidade no exercício da atividade médica e, por natural conseqüência, dos riscos a ela inerentes.

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A importância deste tema consiste basicamente na dificuldade, quando não da impossibilidade, da reparação dos danos causados pela má conduta profissional do médico. Em sua maioria, as ações danosas não podem ser desfeitas, quando muito, reparadas, gerando transtornos de ordem física e emocional difíceis até mesmo de quantificar. A intervenção profissional exige um nível cada vez maior de comprometimento, na medida em que a ciência torna os conhecimentos sobre o corpo humano mais e mais específicos e complexos.


Notas

01. In Responsabilidade Civil do Médico, 4ª ed., pp. 38.

02. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (www.jurinforma.com.br/notas/0160.html).

03. Si hay desgracia tú daras vida por vida, ojo por ojo, diente por diente, mano por mano, pie por pie, quemadura por quemadura, herida por herida.

04. Ob. Cit., pp. 39

05. O Erro médico: Porto Alegre: Livraria do advogado, 1991, pp. 23 a 25.

06. Op. Cit, pp. 44-45.

07. Em sua obra citada nas referências bibliográficas, pp. 22 e 23.

08. O artigo 2º da lei historicamente conhecida como Lei da Boa Razão, datada de 18 de agosto de 1769, determinava expressamente "que o direito romano servisse de subsídio, nos casos omissos, não por autoridade própria, que não tinha, mas por serem muitas as suas disposições fundadas na boa razão."

09. Néri Tadeu Câmara Souza, In Responsabilidade Civil no Erro Médico, internet.

10. Em sua obra "O contrato de assistência médica e a responsabilidade civil", 2ª ed., pp. 11.


Referências bibliográficas

01. Baú, Marilise Kostelnaki. O contrato de assistência médica e a responsabilidade civil. Ed. Forense, 2ª edição, São Paulo, 2001.

02. Corsaro, Luigi. Culpa y responsabilidad civil: la evolución del sistema italiano. in Perfiles de la responsabilidad civil en el nuevo milenio. Ed. Dykynson, Madrid, 2000.

03. Couto Filho, Antonio Ferreira. Responsabilidade Civil Médica e Hospitalar. Ed. Del Rey. Belo Horizonte, 2001.

04. Kfouri Neto, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. Ed. Revista dos Tribunais, 4ª ed., São Paulo, 2001.

Culpa Médica e Ônus da Prova. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002.

05. Leleu, Yves-Henri. Le Droit Médical – Aspects juridiques de la relation médecin-patient. Éditions De Boeck Université, Bruxelas, 2001.

06. Lutzky, Jane Courtes. El Código de Defensa del Consumidor y la responsabilidad personal del médico en la República Federativa del Brasil. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (http://www.bioetica.org/courteslutsky.htm), em 31/10/01.

07. Malufe, Guilherme Martins. Responsabilidade Civil dos Médicos. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (www.jurinforma.com.br/notas/0160.html).

08. Mariano, Alonso Pérez. La relación médico-enfermo, presupuesto de responsabilidad civil (En torno a la "lex artis"), in Perfiles de la responsabilidad civil en el nuevo milenio. Ed. Dykynson, Madrid, 2000.

09. Moraes, Irany Novah. Erro Médico e a Lei. Ed. Revista dos Tribunais, 3ª ed., São Paulo, 1995.

10. Porto, Mário Moacyr. Temas de Responsabilidade Civil. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1989.

11. Rabinovich-Berkman, Ricardo D. Responsabilidad del médico – Aspectos civiles, penales Y procesales. Editorial Astra. Buenos Aires, 1999.

12. Stoco, Rui. Tratado da Responsabilidade Civil. Ed. Revista dos Tribunais. 5ª ed. São Paulo, 2001.

13. Souza, Néri Tadeu Câmara. Responsabilidade Civil do Erro Médico. Disponível na internet em 01.10.01, no endereço eletrônico www.direitomedico.com.br/neri.

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Sobre o autor
Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas

advogado em Alagoas e Pernambuco, consultor de empresas em Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Eduardo Vasconcelos Santos. Aspectos históricos da responsabilidade civil médica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 107, 18 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4288. Acesso em: 26 abr. 2024.

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