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Anulação e revogação dos atos administrativos:

a dicotomia entre a nulidade do ato administrativo e a necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente

23/09/2015 às 10:38
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Quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar a convicção de sua legitimidade, seria absurdo aceitar um poder-dever indefinido de autotutela.

I – A DICOTOMIA ENTRE A NULIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO E A NECESSIDADE DE ESTABILIDADE DAS SITUAÇÕES CRIADAS ADMINISTRATIVAMENTE

O poder de invalidar atos administrativos é antes um poder-dever, ou seja, uma faculdade delimitada imperativamente por um conjunto de diretrizes, implícitas ou explícitas na lei.

Diferencia-se o anulamento da revogação. Anula-se um ato por nele se descobrir vício ou defeito suscetível de caracterizar-lhe a invalidade desde a sua emanação(razões de legalidade); revoga-se um ato válido, mesmo quando isento de quaisquer vícios, por motivos de conveniência ou oportunidade, por razões de mérito. A revogação é uma faculdade e o anulamento um poder-dever da Administração.

Como o ato nulo ou anulável, na esfera administrativa, não gera, em princípio, direitos ou situações merecedoras de amparo, a anulação ou anulamento corta o ato, ex tunc. Já a revogação, ao contrário, só priva o ato dos efeitos ex tunc, sem atingi-lo em suas conseqüências pretéritas. No primeiro caso, o ato é desfeito, desde a sua origem; no segundo, interrompe-se a produção de novos efeitos, mas não se suprimem os efeitos já produzidos.

O  que se discute no presente artigo é a possibilidade da Administração manter, em nome do interesse público, um ato formalmente inválido, salvo a hipótese de dolo ou de lesão a direitos subjetivos, e ainda a aplicação da Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

Bem disse um dos maiores juristas brasileiros, Miguel Reale[1], que no Direito Administrativo é necessário o trato da matéria de nulidade com critérios especiais: as nulidades de pleno direito configuram-se objetivamente, mas a Administração, desde que não firam legítimos interesses de terceiros ou do Estado e inexista dolo, pode deixar de proferi-la, ou então, optar por sua validade, praticando ato novo. Pode ser uma exigência do interesse público a sanatória excepcional do nulo, retroagindo os seus efeitos até a data da constituição do ato inquinado de vício. Fácil ver que essa circunstância pode vir em confronto à segurança jurídica que se apresenta  em contraste à legalidade.

Sabe-se que, às vezes, é a própria lei que prevê a sanatória do ato administrativo que venha a ser radicalmente nulo pelo simples decurso do tempo.


II – A DICOTOMIA LEGALIDADE E SEGURANÇA JURÍDICA

Discute-se aqui o princípio da segurança jurídica. Sobre ele disse Almiro do Couto e Silva, em importante obra: [2]

¨É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto crucial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do  século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o princípio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança(Treue und Glauben) dos administrados.

(....)

Esclarece Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção de confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht  in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs. ; vol. II, 1967, p. 339 e segs.).

 Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa, etc, o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se tratem de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria.¨

O consagrado jurista gaúcho, após, refere-se ao direito francês, fazendo menção ao clássico ¨affaire Dame Cachet¨:

¨Bem mais simples apresenta-se a solução dos conflitos entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica no Direito Francês. Desde o famoso affaire Dame Cachet, de 1923, fixou o Conselho de Estado o entendimento, logo reafirmado pelos affaires Vallois e Gros de Beler, ambos também de 1923 e pelo affaire Dame Inglis, de 1935, de que, de uma parte, a revogação dos atos administrativos não cabia quando existissem direitos subjetivos deles provenientes e, de outra, de que os atos maculados de nulidade só poderiam ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses, que era o mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalidade dos atos administrativos.

Hauriou, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, indagando: ¨Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administração poderá exercer-se indefinidamente em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis?  Quantos perigos para a segurança das relações sociais encerram essas possibilidades indefinidas de revogação e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve espaço de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão sem lhe impor nenhum prazo¨. E conclui: ¨Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade estender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.¨(La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105 – 106).

Necessário distinguir as duas hipóteses: a) a da convalidação e sanatória do ato administrativo nulo ou anulável; b) a de perda pela Administração do benefício de declaração unilateral de nulidade, conhecido como le bénefice du préalable.

Miguel Reale[3], ao estudar a matéria, lembra que, no Direito Administrativo europeu, a doutrina e a jurisprudência mostraram-se sensíveis em relação a ambos os aspectos do problema, seja admitindo a possibilidade de haver-se como legítimo um ato nulo ou anulável, em certas e determinadas situações, bem como a constituição, em tais casos, de direitos adquiridos e, de outro, considerando-se exaurido o poder revisional ex officio da Administração, após um prazo razoável.

Assim na doutrina há a ilação de Olivier Dupeyroux[4]:

¨A solução do Conselho de Estado consiste, em suma, em admitir, de um lado, que nenhum direito subjetivo pode, em princípio, nascer de uma decisão irregular da Administração, mas de outro lado, que o decurso de certo tempo cria uma confiança legítima no espírito dos particulares e transforma uma situação de fato em situação jurídica, em direito subjetivo. Haveria, desse modo, uma espécie de prescrição aquisitiva de um direito subjetivo à manutenção do ato.¨

Para Miguel Reale[5], o que não se pode é recusar à autoridade administrativa, como expressão que é do organismo estatal, o poder de convalidar dada situação de fato, cuja permanência lhe pareça justa, em virtude não só do tempo transcorrido, mas à vista de  circunstâncias que excluam a existência de dolo, ou quando se revelem, sem maiores indagações, valores éticos ou econômicos positivos a favor da permanência do ato irregular.

A conclusão de Miguel Reale é salutar:[6]

¨Nâo é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna obrigatória. Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si convalecer, - como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico, - mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato.¨

Sendo assim, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se constituíssem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar a convicção de sua legitimidade, seria absurdo conceder à Administração um poder-dever indefinido de autotutela.

Tem-se em conta as conclusões de Frederico Marques[7] quando entende que a subordinação do exercício do poder anulatório a um prazo razoável pode ser considerado requisito implícito no princípio do due process of law.

Nessa linha de pensar, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do MS 22.357 – DF, realizado em 27 de maio de 2004(DJ de 5 de novembro de 2004), entendeu que o tema tem assento constitucional(princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, em seu artigo 2º.


III – AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES  

A súmula 473 do Supremo Tribunal Federal consagrou, por certo, que a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que o tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

É certo que Miguel Reale[8] impugna a possibilidade do Executivo anular o ato administrativo, quando se configura um ato administrativo simplesmente anulável, pois, aí, cessaria a competência anulatória do Executivo, cabendo apenas ao Poder Judiciário o poder de decretar a nulidade. No entanto, tal opinião, que se invoca ao lado de outra do Ministro Orozimbo Nonato, não é aceita, ressalvando-se o direito subjetivo a terceiro e a responsabilidade pelos efeitos patrimoniais decorrentes da anulação, como se lê da lição de Miguel Seabra Fagundes.[9]

Há, sem dúvida, um limite nesse pensar: o pressuposto do devido processo legal.

Isso porque, na esfera administrativa, não pode haver privação de liberdade ou restrição patrimonial, sem o cumprimento do devido processo legal.

Disse a Ministra Cármen Lúcia Antunes[10] que o processo administrativo é indispensável, pois o patrimônio jurídico do interessado pela prática do ato é atingido, impondo-se, ¨para a sua ciência e para que ele, inclusive, possa se contrapor ao desfazimento do ato, oferecendo argumentos no sentido de sua manutenção ou da manutenção de seus efeitos.¨

No julgamento do AI 857.812 MS, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe 076, publicação de 24 de abril de 2013, o Ministro Marco Aurélio deixou consignado que a anulação de ato administrativo que repercuta no campo dos direitos individuais, somente pode ocorrer oportunizando-se o direito de defesa, instaurando-se processo administrativo. Com isso será garantido ao administrado a garantia do contraditório e da ampla defesa.

Helly Lopes Meirelles[11] ensinou que ocorrendo situação que caracterize um litígio com o destinatário do ato a ser objeto de exame para a devida anulação, a Administração Pública deve assegurar-lhe o direito de defesa e o contraditório, que são previstos no artigo 5º, LV, da Constituição Federal.

Mais uma vez, louva-se a lição da Ministra Cármen Lúcia Antunes[12], para quem o processo administrativo democrático não é senão o encontro da segurança jurídica justa. Ela é uma das formas de concretização do principio da legitimidade do poder, à medida  em  que se esclarecem  e se afirmam os motivos das decisões administrativas.

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Não foi de outro modo que o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, quando do julgamento do MS nº 22.693/SP, mencionou que a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, LV, ampliou o direito de defesa, assegurando aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A garantia aí consagrada contém os seguintes direitos: a) direito à informação, que obriga o julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; b) direito de manifestação, que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se, oralmente ou por escrito, sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; c) o direito de ver seus argumentos considerados, o que exige do julgador a capacidade de apreensão e isenção de ânimo.

Colhe-se o voto do Ministro Celso de Mello, na Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 27.422, onde se fala que a  essencialidade do postulado da segurança jurídica e a necessidade de se respeitarem situações consolidadas no tempo, amparadas pela boa-fé do cidadão, representam fatores a que o Judiciário não pode ficar alheio.

Mônica Martins Toscano Simões[13], discutindo com relação ao verbete sumular, assim disse:

¨Necessário compreender a autotutela administrativa na sua devida extensão, a fim de que sejam fielmente preservados os direitos dos administrados. Nesse mister, cumpre investigar que leitura a Carta de 1988 imprimiu à Súmula 473 e que interpretação deve, nessa medida, ser extraída do preceito legal em comento.

(....)

A súmula 473 – e hoje, também o art. 53 da Lei 9.784/1999 – não deve ser utilizada como instrumento autoritário, capaz de desconstituir situações sem conferir aos interessados as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Não se pode admitir que a Administração invalide atos – os quais, vale lembrar, gozam de presunção de legitimidade – sem conceder àqueles que serão atingidos pela decisão administrativa a chance de sustentar, no curso do devido processo legal, que se trata de atos legítimos(pág. 162).

(...)

O exercício da autotutela deve ocorrer através do procedimento administrativo que confira àqueles que eventualmente venham a ser atingidos pela decisão invalidatória oportunidade de manifestação prévia, observados os desdobramentos da ampla defesa. Essa providência é indispensável ao resguardo do devido processo legal, sem o qual não se pode falar em legítima recomposição da legalidade¨(pág. 163).

Segurança jurídica aliada à garantia do contraditório e do devido processo legal são postulados a seguir e que devem ser observados pelo Poder Judiciário diante de atos cometidos pela Administração.

A matéria é, portanto, uma das mais complexas no exame das relações entre a Administração, em seu poder de anular atos administrativos, e o administrado.

Some-se que a própria Súmula 249 do Tribunal de Contas da União dispõe:

¨É dispensada a reposição de importâncias indevidamente percebidas, de boa-fé, por servidores ativos e inativos, e pensionistas, em virtude de erro escusável de interpretação de lei por parte do órgão/entidade, ou por parte de autoridade legalmente investida em função de orientação e supervisão, à vista de presunção da legalidade do ato administrativo e do caráter alimentar das parcelas salariais.¨


Notas

[1] REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição,  1980, pág. 63.

[2] SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, v. 18, nº 46, pág. 11- 29, 1988.

[3] REALE, Miguel. Obra citada, pág. 69.

[4] DUPEYROUX, Olivier. La règle de la non-retroactivité des actes administratifs, 1954, pág. 261.

[5] REALE, Miguel. Obra citada, pág. 69.

[6] REALE, Miguel. Obra citada, pág. 70 a 71.

[7] MARQUES, José Frederico. Anulação do ato administrativo, em o Estado de São Paulo, 22 de março de 1964.

[8] REALE, Miguel. Obra citada, pág. 91.

[9] SEABRA FAGUNDES, Miguel. Anulamento do ato administrativo, in RDA 2/487.

[10] ANTUNES, Cármen Lúcia. Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro, in RDTP, São Paulo, Malheiros, 1997, volume 17, pág. 24.

[11] LOPES MEIRELLES, Hely. Direito administrativo brasileiro, São Paulo, Malheiros, 36ª edição, 2010, pág. 211.

[12]ANTUNES, Cármen Lúcia. Artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, volume 34, nº 136, out/dez 1997, pág. 5 a 28.

[13] SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados, São Paulo, Malheiros, 200, pág. 160.  

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Anulação e revogação dos atos administrativos:: a dicotomia entre a nulidade do ato administrativo e a necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4466, 23 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42951. Acesso em: 21 nov. 2024.

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