A necessidade de legalização do aborto

22/09/2015 às 18:28
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O aborto é prática coibida pelo Direito brasileiro, ensejando crime a conduta de realizá-lo. Foi proibido por questões religiosas, uma vez que o catolicismo é enraizado em nossa cultura. Entretanto, em pleno século XXI, ainda é necessário proibi-lo?

Aborto se caracteriza como a expulsão ou remoção de um feto do interior do útero de sua genitora, causado por motivo diferente do parto. No Brasil, o aborto é considerado crime, sendo delimitado em três tipos penais distintos, tipificados nos art. 124 a 126 do Código Penal:

“Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:       

Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: 

Pena - reclusão, de um a quatro anos.”

O Código Penal brasileiro trata de forma diferenciada três condutas relativas ao aborto: 1ª – a mulher praticar o aborto em si mesma, ou consentir que nela lhe provoquem (art. 124); 2ª – praticar aborto, sem o consentimento da gestante (art. 125); 3ª – com o consentimento da mesma (art. 126), diferenciando também as penas privativas de liberdade que deverão ser impostas a quem cometerem tais condutas criminosas (um a três anos de detenção, no primeiro caso; três a dez de reclusão, no segundo; um a quatro de reclusão, no terceiro).

A legislação penal brasileira, entretanto, traz, em seu art. 128, situações na qual o aborto é legalizado, sem receber, o médico que o praticar e/ou a gestante que o permitir, qualquer sanção penal. As situações são:

“I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

O primeiro caso de permissão é o chamado aborto necessário e se caracteriza quando expelir o feto do interior do útero da gestante seja necessário para manter a vida da mesma. Já o segundo caso é o chamado aborto humanitário, que ocorre quando a mulher foi estuprada e o mesmo resultou em gravidez. Tem como condão privar a mulher de um sofrimento maior que é a possível lembrança perpétua do estupro, ou dos frutos do mesmo.

Mais recentemente, em 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 54, na qual determinou não ser fato punível o aborto praticado para expelir feto anencéfalo. Tal julgamento se deu pelo fato de que feto anencéfalo não possui condições de sobreviver mais que poucos dias e serviu para livrar a mãe da obrigação de carregar um bebê por nove meses sabendo de que o mesmo não sobreviveria por mais que poucos dias.

Com este julgado do STF, surgiu a questão sobre a legalização, ou a própria descriminalização, do aborto (consentido, caracterizado nos art. 124 e 126, caput, tão-somente). Os argumentos são muitos. O primeiro destes se caracteriza na aceitação da sociedade de tal conduta, perdendo o condão caracterizador do crime, que é a reprovação do ato por parte da sociedade.

Segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, 2.384 abortos voluntários são feitos todos os dias e cerca de 7,4 milhões de brasileiras, até 40 anos, já haviam feito o procedimento no país. Ou seja, a sociedade aceita o aborto e grande parcela da mesma já o fez, mesmo sendo proibido e sancionado.

O segundo dos argumentos é a forma como tais abortos são cometidos, pelo fato de não haver legalização. Como não há clínica especializada no assunto, os abortos acontecem normalmente em clínicas clandestinas, ou até mesmo nas residências, com métodos primitivos e locais mal higienizados, que resultam normalmente em infecções e mortes. Se houvesse local especializado no assunto – e não clandestino, aberto em qualquer local, sem qualquer método higiênico -, certamente o número de infecções e mortes diminuiria consideravelmente.

O terceiro dos argumentos é a questão do ser a ser expelido pelo aborto. Conforme se desprende por uma leitura rápida do Código Penal, os crimes de aborto se caracterizam no rol de crimes contra a vida. Portanto, presume-se ser tal ser vivo. Entretanto, analisando o art. 2º do Código Civil, o mesmo determina que só se adquire personalidade aquele que nascer com vida[1]. Ou seja, só é considerado ser vivo apenas no instante em que o feto vier ao mundo com vida, ainda que brevemente. Portanto, por mais que a lei deva resguardar o direito ao nascituro, o mesmo não é ser vivo, não possui vida, não possui registro de nascimento e de óbito[2], não possui direito de personalidade e, em hábito penal, não se pratica assassinato ou qualquer conduta homicida aquele que ceifá-lo da expectativa do direito à vida. E não deve prosperar o pensamento de que “em minha religião o ser humano é considerado vivo desde a sua concepção”. É um posicionamento interessante de algumas religiões, mas não deve o mesmo ser levado em pauta para analisar a legalização, ou não, do aborto, pois o Brasil é um país laico (art. 19, I da Constituição Federal), devendo respeitar todas as religiões, mas não levar os seus pensamentos – ou pior, de apenas uma ou duas religiões - em conta para definir o que é regra, ou não, em matéria de lei.

O quarto argumento se baseia na família e no seu planejamento. Conforme determina o art. 226, § 7º da Constituição Federal, “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”. Ou seja, a própria família quem deve decidir acerca do planejamento familiar. E os filhos havidos das relações do casal também compreendem na questão do planejamento familiar, eis que o advento de um filho necessita aos pais de planejar todo o futuro, seu e do feto, sendo que, muitas vezes, acabam largando o próprio sonho de lado – principalmente pais muito jovens, ainda em ascensão – para dedicar e para suprir as necessidades do futuro filho, que, diga-se de passagem, não são poucas – filho se gasta muito. Se os pais puderem escolher o momento em que tiverem os seus filhos – e não sendo obrigado a aceitarem o acaso -, certamente teremos pais mais responsáveis, pois os mesmos só terão filho quando bem lhes aprouverem. E o filho virá ao mundo com muito mais carinho dos pais – pois os mesmos lhe quiseram – e com estrutura familiar e financeira melhor – pois os pais escolheram o momento para terem os seus pais.

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Não se pode usar mais o argumento de que é obrigação do casal se prevenir contra gravidez indesejada – utilizando dos métodos anticonceptivos – e que, caso não se previnam, devem aceitar as consequências. Todos sabem que os métodos anticonceptivos falham – todo mundo conhece um casal que engravidou e alegou que a camisinha furou ou o anticoncepcional não funcionou, por exemplo, por ter tomado antibiótico. E mais: todos sabem que nem todos os casais usam métodos anticonceptivos. Ao invés de obrigá-los a mudar um comportamento que não se mudará, como o tempo já nos provou, deve-se mudar a regra, para se adequar a nova realidade (deve-se modificar a regra para se adequar aos fatos sociais, como bem leciona Miguel Reale).  

O aborto ocorre todos os dias, todos os anos, em clínicas clandestinas ou em casa, onde mulheres ficam com sequelas, deformações ou morrem. Todos os anos inúmeros casais despreparados, jovens – normalmente que transam uma ou duas vezes tão somente – engravidam, sem qualquer estrutura ou condição para manter o bebê que virá ao mundo. Todos os dias vemos casos na TV de pais que abandonam os filhos recém-nascidos por não quererem os mesmos. Sempre ouvimos falar de mães jovens que são discriminadas na sociedade por serem mães solteiras, por serem mais jovens; ou pior, são humilhadas e atacadas pela própria família, como “vergonha para a família”. O mundo mudou – não estamos mais em 1940, data da publicação do Código Penal – e as regras devem mudar junto, adequando-as às novas realidades. 


Nota

[1] Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

[2] O feto natimorto será registrado de forma diferenciada, à luz do art. 53, caput e § 1º da Lei 6015/73.


REFERÊNCIAS

BRASIL. (1940). Decreto-Lei 2848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 29 jun. 2015.

____________. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 jun. 2015.

____________. (2002). Lei 10406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 29 jun. 2015.

POMPEU, Ana. Clínicas clandestinas de aborto colocam em risco 2,3 mil mulheres. Disponível em:

<http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/brasil/2014/11/03/interna_brasil,540289/clinicas-clandestinas-de-aborto-colocam-em-risco-2-3-mil-mulheres.shtml>. Acesso em: 30 jun. 2015.

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Sobre o autor
Rodrigo Picon

Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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