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Débito conjugal: o corpo como dote

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02/09/2003 às 00:00
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5. Uma Releitura Crítica do Débito Conjugal

Percorrido este breve itinerário, alcançamos a avaliação presente do instituto jurídico observado. Para tanto, priorizamos entre tantas questões possíveis as seguintes: Que lastro legal autoriza a exigibilidade do Débito Conjugal? Como perquirir a culpa em casos de inadimplemento do Débito Conjugal? Cabe indenização por danos morais àquele que não contou com o prestação do débito conjugal? E, finalmente, em qual categoria jurídica poderíamos enquadrar a recusa à prestação do débito conjugal: erro essencial ou injúria grave? Haveríamos, aliáis, de poder enquadrá-lo em alguma? Como se vê, a análise crítica que se afigura permeia não só indagações de fundo, que cogitam da existência de fundamento legal para o Débito Conjugal, mas também questões, estas sim na ordem do dia das discussões jusfamiliares, acerca da aferibilidade da culpa na separação litigiosa e das sanções dela decorrente, bem como da natureza jurídica do instituto em tela.

A discussão sobre a existência ou não de fundamentos legais para a determinação de condutas é basilar para o Direito, conforme o hermetismo jurídico (discussão de lacunalidades à parte), galvanizado seja pela máxima kelseniana: "Tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente facultado", seja pelo princípio constitucional da legalidade (art. 5º, inc. II/CF-88). Se entendemos que todo dever é uma não-faculdade, rapidamente concluímos que o Direito enquanto determinante da convivência social é essencialmente Proibição. Esta discussão vem a termo porque o Débito Conjugal tem como principal característica jurídica a sua inescusabilidade. Ele é definido como uma conduta institucionalmente determinada que se apresenta antes como uma proibição de se recusar a um fazer do que como uma efetiva prestação. Da análise da doutrina mais festejada, é facilmente observável o caráter de proibição comissiva do Débito Conjugal. De acordo com Maria Helena Diniz: "Cada consorte é devedor da coabitação e credor da do outro. Daí sentir-se, mais, nesse direito-dever o caráter ético, extrapatrimonial e absoluto, sendo, assim, intransponível, irrenunciável e imprescritível." [20][grifos nossos]. Observa-se, portanto, clara construção doutrinária ao se pretender ver na obrigatoriedade textual dos cônjuges dividirem o mesmo lar, num entrelaçamento insofismável das suas vidas, que já não mais podem ser vividas sob a égide do individualismo, uma convivência sexual não textual, porém igualmente incontornável, que, se presumível, exime a explicitação normativa, e, se não presumível, desqualifica qualquer obrigatoriedade que não aquela advinda do cônjuge diretamente interessado, como ensinam doutrinadores italianos e alemães já trazidos à lume neste escrita.

Ao concluir a discussão acerca da existência ou não de um fundamento legal para a exigibilidade do débito conjugal, fica patente que tal fundamento não subsiste a uma análise mas acurada do que diz o dispositivo do art. 231, inc. II do CC-16, recepcionado que foi pelo CC-02. Este fato não passa desapercebido de autores que se entregam ao exame das questões jusfamiliares, talvez sem o peso de terem que arcar com um relicário de ensinamentos que, se já se mostraram fulgurantes, perdem o brilho quando colocados sob as luzes do novo tempo. Mais que procurar, pelas vias da arqueologia jurídica, a mens legislatoris contida na lei, cabe aos aplicadores do direito, como seu próprio nome abrevia, aplicar o Direito inscrito nos seus dispositivos legais ao substrato sócio-ideológico do qual este se alimenta. Se ao nosso tempo não mais se aprumam as exigibilidades no campo da esfera pessoal do índivíduo (e note-se que aqui não se fala em esfera privada, mas em esfera pessoal, no sentido psico-subjetivo do termo) face à principiologia de um direito que ascende a pessoa humana à primazia das suas disposições, há sem dúvida de se incluir no rol dos anacronismos rejeitáveis pela nova ordem, a menção ao débito conjugal.

Outros raciocínios, no entanto, apresentam-se também para extrair da coabitação o mandamento de regular o regime copular intra-matrimonial. Orlando Gomes, fundado ainda na arcaica legitimidade exclusiva da família casametária (revista pela atual ordem constitucional) apresenta o dever de coabitação como fruto do objetivo maior do casamento: "O casamento é o modo legítimo de instaurar, entre os cônjuges, a vida em comum. Não se casam para outro fim". [21] Deste modo, o insigne jurista baiano, alicerçado que está na legitimidade que o casamento confere ao regime sexual intra-matrimonial, retroage os fundamentos do débito conjugal até a presunção de paternidade do Direito Romano. [22]Assim, a legitimidade da família gerada pelo casamento estava fundamentada na obrigatoriedade dos cônjuges realizarem entre si suas relações sexuais. É questionável se escapava aos defensores desta tese que a manutenção de relações sexuais domésticas pouco interfere na disposição daqueles que querem manter vida aerada após o casamento, o que não garantiria que o filho da mulher casada fosse obrigatoriamente do seu marido, inobstante este cumpra com rigor o débito conjugal de que a doutrina é tão ciosa.

Sobre esta presunção de paternidade cabem mais algumas palavras, uma vez que esta é muito suscitada nos dias atuais, o que pode ter sido uma das razões para se manter intocável o dever de coabitação no Código Civil de 2002, nem explicitando-lhe o conteúdo sexual, a fim de convalidar a posição doutrinária dominante, nem retirando do ordenamento a possibilidade de interpretação neste sentido, escudando entendimento vanguardista, como seria o mais aconselhável, uma vez que esta regra mostra-se claramente incompatível com o caráter subjetivo da vida conjugal. A civilista carioca Heloisa Helena Barboza, escrevendo sobre o reconhecimento de paternidade em caso de inseminação heretóloga, suscita o cumprimento dos deveres conjugais como um dos critérios de elucidação da paternidade da prole gerada dentro da entidade familiar:

"A presunção da paternidade, como efeito do casamento, é decorrência natural do dever de fidelidade e coabitação, como afirma DE PAGE. Todavia, há de se compreender esse efeito não mais no interesse da segurança das relações familiares, da estabilidade da ‘paz doméstica’, mas sim na probabilidade de ser o marido o autor da fertilização de sua mulher, visto manterem vida em comum, regida por deveres legalmente fixados". [23]

Esta presunção de paternidade realmente guarda relação com o aforismo medieval a que alude o mestre civilista baiano Orlando Gomes: "A coabitação representa mais que a simples convivência sob o mesmo teto. É, sobretudo, o ‘jus in corpus in ordine ad actus per se aptos ad prolis generationem". [24] Está isento de dúvida que a família tem entre seus efeitos o reconhecimento (e não legitimação, em face da CF/88) de todos aqueles que no seu seio nascem como sendo filhos daquela união conjugal. No entanto, é muito mais aconselhável, num mundo de casais sem filhos e num realidade como a nossa, que traz a chamada "adoção à brasileira" (prática de adotar, por razões sentimentais, filho de outrem como seu) como instituição consuetudinária, que a presunção de paternidade não se faça com base em deveres como o da coabitação, extorquindo forçosamente deste, para tanto, o débito conjugal.

Reputamos que a presunção de paternidade deve ser mantida por um outro paradigma, este sim de inegável dedução legal, inovação do CC-02: o dever recíproco de respeito e consideração mútuos.(art. 1566, inc. V/CC-02). Não é o fato de praticarem com regularidade o ato sexual, no cumprimento rigoroso do débito conjugal, que consubstanciaria a presunção de paternidade da prole havida no seio daquela entidade familiar, uma vez que a prática sexual doméstica não implica no completo celibato extra-domus. No entanto, o respeito e a consideração mútuos tem sim o condão de estabelecer a primazia da verdade dentro da unidade familiar. Verdade inclusive no que se refere a concepção da prole que venha a se originar, deixando ao cargo exclusivo dos principais interessados (insisto propositadamente nesta expressão) a questão de como lidar com esta verdade. Nada preceitua, portanto, que se mantenha o dever de coabitação e, mais inconsistentemente ainda, o débito conjugal dele deduzido, por ser este o fundamento da presunção de paternidade, tão comodamente suscitada entre nós.

Para a segunda discussão, que entremeia esta releitura, trazemos à pauta uma das questões que comprovam a contradição de se manter a exigibilidade do débito conjugal frente às mudanças que se dão ao seu redor e o atingem diretamente. Trata-se da julgamento da culpa na separação litigiosa e das penalidades que se abatem sobre aquele considerado culpado do desenlace precoce. Antes de pronunciarmo-nos, é necessário um breviário sobre a separação litigiosa, o julgamento da culpa e as penalidades dela decorrentes, para que então possamos estreitar a análise da questão na sua atualidade. A separação judicial litigiosa, de acordo com o art. 5º da Lei nº 6.515/77 (Lei do Divórcio) é aquela "que se dá quando um dos consortes imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres matrimoniais." [25] Quando se procede a tal espécie de separação, é necessário se constatar justamente a culpa que tem um dos consortes ao imputar ao outro conduta desonrosa ou violação dos deveres matrimoniais. Constatado que este é culpado, a ele podem ser aplicados, ao entendimento do magistrado, várias penalidades, das quais salientamos quatro: a) perda do patronímico (punição típica para a mulher); b) prestação de pensão alimentícia (diferentemente da separação consensual, onde a regra é que o marido pague a pensão alimentícia, aqui pagará quem for considerado culpado pela separação); c) perda da guarda dos filhos, que devem ficar com o cônjuge inocente; d) pagamento de indenização por perdas e danos morais ou patrimoniais ao cônjuge inocente. Como se vê, a constatação da culpa é vista, nesta perspectiva, como uma verdadeira porta do suplício para um e janela da redenção para outro. Ainda que a translúcida antinomia de todo este raciocínio com a nossa ordem constitucional, e mais, com a própria compreensão ampliada que temos hoje do universo interior ao relacionamento humano, já exponha a sua negação, discorreremos sobre os pontos cardeais desta antinomia.

Para constatar o frescor da atual tese revisionista da culpa na separação litigiosa, lembraremos aqui os quatro argumentos apresentado pelo prof. Cristiano Chaves em palestra proferida no III Fórum Brasil de Direito, ocorrido em Salvador, entre 3 e 5 de abril de 2002. Depois de constatar que, hermético a algumas das novas idéias que oxigenam o Direito atual, o CC/02 mantém a necessidade de comprovação de culpa na separação judicial (art. 1694, §2º), o dileto promotor de justiça baiano observa que o julgamento da culpa na separação litigiosa é inobservável pelas seguintes razões: a) ferimento do princípio da dignidade da pessoa humana; b) impossibilidade de um terceiro estranho (juiz) avaliar o descumprimento de um contrato social como o casamento, cuja execução é total e permanentemente subjetiva; c) ferimento do princípio da privacidade, uma vez que para conseguir os dados de um possível descumprimento dos termos do casamento (em especial de um suposto inadimplemento do débito conjugal) seria necessário invadir a esfera de intimidade dos cônjuges, para comprovar ou desmentir alegações feitas; d) por fim, nas palavras do próprio jurista: "o juiz, em rápido julgamento, parece estar totalmente desabilitado para avaliar toda uma vida matrimonial e o que é pior: a partir desta superficial avaliação, imputar a uma das partes, na sua opinião, a culpada, diversas punições." [26] A permanência de tais punições está em plena desconformidade com as novas diretrizes do quadrante jusfamiliar do nosso direito. Ainda que o tratamento do culpado no CC-02 seja mais brando que aquele dispensado pelo CC-16, tendo neste sentido sopesado a olhos vistos a influência do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), que sempre defendeu na sua vanguarda esta tese, sequer haveria de ser cogitada qualquer punição, no mínimo pelas razões listadas pelo prof. Cristiano Chaves, e, sob nosso ponto de vista, pelo simples fato de que a culpa poderia ser transferida ad infinitum com base nas atitudes negativas do outro cônjuge, num ciclo vicioso e injurisdicionável.

Tratemos, agora reconhecendo que as coisas são como são e não como deveriam ser, de um dos apenamentos impostos ao considerado culpado na separação: a indenização por danos morais. Verificando que a indenização por dano moral é, em si, problemática., afastemo-nos das esdrúxulas tentativas de parametrizá-la (como a do tabelamento de danos morais) para centrar o foco na possibilidade de indenização por danos morais em caso de separação litigiosa originada da recusa de prestação de débito conjugal. Primeiramente, destaque-se que o entendimento no sentido de conferir esta indenização tem berço no direito francês. Reportando-se às primeiras decisões alienígenas sobre a recusa do débito conjugal, o mestre Eduardo Espinola assim historicia: "Os tribunais franceses tem decidido que a recusa de relações sexuais constitui uma injúria grave, capaz de justificar o divórcio ou a separação de corpos, concedendo, alem disso, indenização ao cônjuge ofendido." [27] Se a doutrina já entendeu cabível, como se viu, punir o cônjuge que deu causa a separação judicial com o pagamento de uma indenização por danos morais ao dito cônjuge inocente, no presente levantam-se vozes açoitando a ignomia desta idéia. É o caso da Desembargadora Maria Berenice Dias, do TJ/RS, que se pronuncia nos seguintes termos:

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"Essa injustificada tentativa de inserir na lei civil obrigação indenizatória por dano moral decorrente da ‘ausência de contato físico de natureza sexual’, se vingar, terá conseqüências funestas. Algumas, até imprevisíveis. Poderá dar ensejo a um verdadeiro terrorismo sexual. Até mesmo chegar a absurdos como - quem sabe? - desqualificar o estupro nas relações familiares, pelo reconhecimento do direito do estuprador ao exercício da sexualidade." [28]

Ressalte-se que, se concluímos inderrogavelmente pelo não-apenamento, em especial indenizatório, daquele que se recusa a prestar o débito conjugal, dando mera causa ao desfazimento da união conjugal, cabe algumas palavras sobre o terrorismo sexual a que alude a Desembargadora Maria Berenice Dias, face a ser esta uma das mais perversas distorções decorrentes da manutenção do entendimento de que ainda cabe entre nós o instituto do débito conjugal. O temor da ilustre jurista não se faz desacompanhado de justificativa. Afinal, até bem pouco tempo discutia-se a possibilidade de imputar ao marido o crime de estupro praticado contra sua esposa, uma vez que: "Autores há, como Chauveau e Hélie, que considerando dever, no estupro, a cópula ser ilícita, sustentam que a violência empregada pelo marido contra a mulher não constitui este delito.(...)." [29]

O ilustre penalista Magalhães Noronha assim condiciona a configuração do tipo do art. 213 do Código Penal em vigor: "A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo (...)" [30].[grifos nossos]. A pergunta que fica é: Caberia ao jurista, num foro tão importante quanto é o criminal, decidir se os motivos alegados por alguém para não se submeter ao sexo podem ser chamado de capricho ou futilidades femininas? Com a devida vênia aos que se aliam à assertiva pré-exposta, entendemos que é a futilidade destas questões em si que as excluem do mérito da avaliação jurisdicional. Afinal, é assustadoramente simples que a única aferição cabível ao exame do art. 213/CP remete a presença ou não de consentimento, fundamental para qualquer prática sexual digna da proteção da lei. O texto do art. 213/CP é taxativo: "constrangimento de mulher à prática sexual mediante violência ou grave ameaça". Estas condicionantes objetivas estando presentes, a despeito de variáveis subjetivas, devem dar causa ao apenamento por prática de estupro.

Uma última questão, referente à natureza jurídica do tema em apreço, serve bem para mostrar de que são feitas as polêmicas em torno do débito conjugal. Verifica-se certa controvérsia sobre o assento cabível à recusa de prestação do débito conjugal. Seria ele injúria grave ou erro essencial? Para o profº Álvaro Villaça Azevedo, o inadimplemento voluntário do dever de coabitação "tem sido incluído, na especificidade do art. 317 do nosso Código Civil, como causa de dissolução da sociedade conjugal, na categoria de injúria grave (...)". [31] Abrigam-se sob a mesma bandeira, Maria Helena Diniz (1998: 121) e Orlando Gomes (2000: 135), entre outros. Não obstante este entendimento, há autores que julgam ser a recusa do débito conjugal categoria de erro essencial. É a opinião do jurista Yussef Said Cahali, in verbis: "(...) não tendo o marido completado o casamento com a mulher (...), permite identificar nele uma pessoa com pouca noção de honra, indigno de qualquer boa fama, possibilitando-se a ação anulatória por erro essencial a benefício da esposa." [32] Os julgados que o jurista arregimenta segue nesta linha (TJ/SP, TJ/MG).

Constate-se que a distinção aqui é crucial uma vez que erro essencial e injúria grave, ainda que indistintamente usados para descrever a mesma conduta, reportam efeitos jurídicos distintos. Enquanto o erro essencial é causa de anulabilidade do casamento (art. 218/CC), a injúria grave é justificativa de separação litigiosa. Acontece que pelo nosso exame nenhuma das duas alcunhas servem de molde a esta recusa em prestar o débito conjugal. Pelo campo da injúria grave, não bastasse a opinião de quilate elevado do maior jurista alagoano de todos os tempos, Pontes de Miranda, "entendendo inadmissível que a violação do debitum coniugale, a incompatibilidade de temperamentos e outros fatos possam se constituir em causa motivadoras do desquite por serem totalmente estranhos ao direito brasileiro" [33], a injúria, como mostra Maria Helena Diniz, constitui um dos atos que caracterizam o descumprimento do dever de mútua assistência [34], não tendo relação, portanto, com o dever de coabitação, fonte, de acordo com a doutrina (inclusive a da própria autora), do débito conjugal, não obstante escreva a jurista: "A injúria grave é a mais freqüentemente invocada nas ações de separação, em virtude da grande extensão ou elasticidade de seu conceito (...). P. ex: expulsão do leito conjugal, transmissão de moléstia venérea, recusa das relações sexuais." [35] [grifos nossos].

Se esta contradição instala-se na consideração do inadimplemento do débito conjugal como injúria grave, não se apresenta mais consistente a sua classificação como erro essencial. Senão vejamos. Como bem assevera Maria Helena Diniz, o erro essencial deve incidir sobre uma causa determinante do ato nupcial. Para tanto, é necessário que, se conhecido, tivesse o condão de desmotivá-lo. Ocorre que traz Yussef Said Cahali um julgado que, como a corrente jurisprudencial majoritária, considera o descumprimento do débito conjugal como erro essencial, porém em desacordo com o que determina, a nível doutrinário, a profª Maria Helena Diniz. Eis o julgado:

"1ª Câmara do TJ/SP: Segundo narra o autor do pedido inicial, embora tivesse sido avisado pela ré que esta ‘não desejava ser tocada’, não levou em conta a advertência, tributando-a ao natural recato da jovem adolescente. Assim, acabou contraindo núpcias na certeza de que o casamento seria a seu tempo consumado, fato que, todavia, não ocorreu. (ap. 103.28-1, 12.09.1989)." [36]

Como se vê, não se há de considerar erro essencial aquela informação que era previamente conhecida por aquele que se diz ofendido. Não importa para o afastamento da hipótese de erro essencial o fato do ofendido não ter auferido a convicção com que a recusa ao débito conjugal era oposta, cabendo-lhe, no mínimo, levantar a irremovibilidade desta recusa antes de se casar. Cahali traz também posicionamentos jurisprudenciais que, apesar de serem minoritários, consolidam esta equivocidade da identificação de erro essencial na recusa de prestação do débito conjugal:

"3ª Câmara do TJ/SP: ‘A recusa do coabitação – amplexo marital ou debitum conjugale – não basta, por si, para caracterizar o erro sobre a pessoa do cônjuge; é da essência da doutrina do erro que as circunstâncias que o constituem preexistam ao ato e só sejam conhecidas depois dele. (07.12.1976, RT 501/57)." [37]

Novamente aqui, portanto, a facilidade de julgamento não se faz presente. Conforme a nossa opinião já demonstra desde o início deste artigo, a recusa do débito conjugal dará causa a separação desde que implique em insatisfação com a vida conjugal. Com isto, queremos deixar claro que podem haver outras compensações com o casamento que, na concepção do casal, sublimem a falta de um regime dito "normal" (outro critério eivado de subjetividade) de conluio genital.

Com estas discussões, encerramos o que aqui denominamos de releitura crítica do débito conjugal. Observamos que se trata de uma construção doutrinária que, não estando explicitada na lei, ganhou destaque no território jurisprudencial. Pudemos experimentar algumas novas perspectivas diante de posicionamentos entalhados no tempo, contraditórios (como o da natureza jurídica do inadimplemento do débito conjugal) ou simplesmente infundados (como o apenamento indenizatório àquele que dá causa à separação litigiosa pela recusa à prática sexual). Coube ainda discutir esta candente questão, que a todos dotados de um mínimo senso de dignidade humana repugna, do chamado, de forma igualmente repugnante, "estupro conjugal". No entanto, se neste tópico nos colocamos mais a disposição das próprias questões para, sobre matrizes discussivas preexistentes, tracejarmos algumas breves observações, na conclusão que se segue, observaremos a questão da existência do débito conjugal numa perspectiva mais ampla, qual seja, a da dialética do íntimo e do político.

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Sobre o autor
Fagner Cordeiro Dantas

Bacharel em Urbanismo (UNEB/2001); Bacharel em Direito (UFBA/2007) e Mestrando em Administração Pública (UFBA/2010)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Fagner Cordeiro. Débito conjugal: o corpo como dote. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 68, 2 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4303. Acesso em: 14 nov. 2024.

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