Temos assistido a um debate jurídico através de artigos especializados e notícias jornalísticas sustentando-se ou rechaçando-se o enquadramento típico no artigo 249 do Código Penal, ao sabor das conseqüências desejadas ou indesejadas da possibilidade de ocorrência da prescrição da ação penal.
Diz-se: o menor fora "seqüestrado"há 16 anos atrás; logo o delito está prescrito,uma vez que regulando-se pelo máximo de pena cominada, o crime punível no máximo com dois anos de detenção, ‘ se o fato não não constitui elemento de outro crime, após quatro anos estaria prescrito (art. 109 V CP.
Vai daí que, ‘ no visível intuito de se evitar a extinção da ação penal pela prescrição, alvitra-se outro enquadramento típico, valendo-se das semelhanças que haveria com o crime de seqüestro. Assim, como a este é cominada a pena máxima de cinco anos de reclusão, na sua forma qualificada-duração por mais de quinze dias-(art. 148 § 1º III CP), o prazo prescricional seria automaticamente elevado para doze anos.. À objeção de que nesse caso, por se descobrir o crime somente após 16 anos não se conseguiria evitar o reconhecimento da prescrição, responder-se-ia que, tratando-se o seqüestro, sem discussão doutrinária, de um crime permanente, a contagem do prazo só se iniciaria "no dia em que cessou a permanência", ex vi do disposto no inciso III do art. 111 CP.
Desta forma, ‘ satisfeito estaria o clamor popular contra a impunidade dos autores de crimes que por pouco escapariam de receber o rótulo de hediondos.
A questão da prescrição, entretanto, solucionada que seja desta ou daquela maneira, não pode ter e não tem a relevância que se lhe atribui quando se trata de justificar a operação mental do enquadramento típico, interino ou definitivo, que se faz na denuncia e na sentença final.
Em minha opinião envereda-se por uma via falaciosa quando se sustenta que o mesmo fato que fora a um tempo subsumível à descrição típica do delito do art. 249 CP poderia sê-lo, ‘ sem distorsões, igualmente à descrição típica do delito do art. 148 CP.
A começar do bem jurídico ofendido, que, ‘ sendo este a liberdade pessoal, ‘ não se confunde com o ofendido naquele, à época o pátrio poder, tutela ou curatela, hoje, o poder familiar, conforme instituído no art. 1630 do novo Código Civil.
Não iremos ao ponto de negar a um bebê o seu direito à liberdade pessoal, mas todos hão de convir que o legislador penal criou dois tipos penais bem distintos, ‘ valendo-se tanto da diversidade de finalidade da ação ou omissão descrita no verbo do núcleo do tipo, ‘ quanto da ofensa ao bem jurídico tutelado, ‘ diferentes uma e outro, ‘ em cada um dos delitos já nominados. Assim é que no delito de seqüestro a finalidade é tirar a liberdade (de ir e vir, etc.) de alguém e no delito de subtração de incapaz é subtrair (portanto usurpar ) ao poder familiar, ‘ finalidades que não se confundem, ‘ pois não é indiferente ao Direito que o autor, num caso assuma, mesmo mentindo, o pátrio poder –e o exerça para todos os efeitos sociais- e noutro caso, mantenha-o oculto e constrangido em sua liberdade de ir e vir.
A confusão toda surge, em nossa opinião, ao considerar o ato inicial de execução do delito como a conduta apta a ofender o bem jurídico tutelado, sem nenhum outro desdobramento, ‘ como se a prática daquele ato exaurisse a figura delituosa, tornando toda ação ou omissão posterior um post factum impunível.
Como o bebê, desde o primeiro dia, passou ao domínio do agente, tudo o que se segue, ‘inclusive a omissão de devolvê-lo aos legítimos pais, não poderia ser penalmente indiferente, ou até mesmo, atípico, como se a figura delitiva se exaurisse após o ato inicial, invocando-se a classificação de instantâneo para o crime, o que não é, em minha opinião, facilmente sustentável., tanto que até o momento, não surgiu nenhum doutrinador ou exegeta que pusesse termo a um debate dessa natureza.
Pretende-se pois, equiparar, a subtração de incapazes à atividade de matar no tipo de homicídio simples, sob o aspecto temporal da conduta tipica. Não é assim, porém na subtração de incapazes : o ataque ao bem jurídico "vida" aperfeiçoa-se, ‘ comumente, com a prática de um único ato, ‘ comissivo ou omissivo.
Todos os atos que se lhe seguem são, para a avaliação do enquadramento típico, post factum impunível a título de homicídio. Já o ataque ao bem jurídico pátrio poder ou
poder familiar, ‘ embora (mas somente em principio) normalmente se consume com u’a mera "subtração à guarda", não torna juridicamente irrelevantes os atos ou omissões subseqüentes, até por que o poder familiar é um plexo de direitos e deveres que podem não vir a ser com um único ato atingidos.
Relaciona-os o art. 1634 do Código Civil:
"Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I-dirigir-lhes a criação e educação;
II- tê-los em sua companhia e guarda;
III-conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem
IV- nomear-lhes tutor por testamento ou documento autentico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V- representa-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI- reclama-los de quem ilegalmente os detenha;
VII- exigir que lhes prestem obediencia, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição."
Por isso, não sendo exigível, embora, que todos esses direitos sejam efetivamente atingidos a um só tempo, (e certamente esse atingimento dependerá da omissão de reposição ao lar original ) a conduta punível se protrai no tempo, é inequivocamente permanente, seja em razão de ser paulatino o acrescentamento das necessidades do incapaz, seja em razão da manutenção do "statu quo" pluriofensivo pelo agente.
Não se pode negar que dentre os direitos que se enfeixam no instituto do pátrio poder, a guarda é sempre o primeiro a ser atingido. Mas, o que o legislador estabeleceu como finalidade na conduta punível não é a subtração à guarda e sim ao pátrio poder, que não se esgota na guarda.Na descrição típica esta é mencionada não como o bem jurídico a ser atingido, mas como o sinal exterior mais provável do bem jurídico tutelado.Enquanto não forem ofendidos todos os direitos que se enfeixam no pátrio poder a figura delitiva não se exauriu, ‘ embora já se tenha consumado com a ofensa ao direito mais acessível daquele feixe de direitos, a guarda. Enfim, ‘ o delito não é "subtrair a guarda", ‘ mas, subtrair ao pátrio poder (no caso de menor ).
"Subtrair menor de dezeoito anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial".(Art. 249 CP)
Se, por conseguinte, a subtração de incapaz,iniciada pela subtração à guarda exige tão somente um ato instantâneo, forçoso será admitir que não se caracterizando ainda uma subtração ao pátrio poder, ‘ estaremos apenas diante de uma tentativa de subtração de incapaz, posto que a finalidade da ação típica ainda não foi plenamente alcançada, mas, meramente tentada.
Por Bettiol, citado por Jimenez de Asua, Tratado de Derecho Penal, VII, pg. 970, nos é fornecido valioso critério para se distinguir um delito instantâneo de um outro, permanente:
"Com razón dice Bettiol, que la "consideracion meramente abstracta del tipo no nos puede dar siempre um criterio seguro para establecer el carácter instantáneo o permanente del delito: es necesario atender a la naturaleza del bien tutelado. En general son instantáneos aquellos delitos que tienen como su objeto jurídico bienes destruibles"
(D. p. 6ª edición, pg. 468)".
Ora, como é possível separar a guarda dos demais poderes familiares, o que na prática forense dos Juízos de Família é corriqueiro, determinando-o o próprio Juiz em benefício do menor, requerendo-o ou não os pais, também na subtração de incapaz de tenra idade não vemos destruídos, instantaneamente, os direitos que constituem o pátrio poder ou poder familiar, o que ocorrerá, eventualmente, até que cesse a incapacidade civil, ‘ se o próprio agente não tiver a iniciativa de "remover o estado antijurídico" (expressão de Bettiol, citado por Jimenez de Asua, ob. Cit. Pg. 971, nota de rodapé 16.).
Opina Jimenez de Asua, em prosseguimento, que "nem sempre coincide a cessação da atividade do agente com a consumação do delito, simultaneidade que ocorre nos delitos de atividade preponderante, ‘ mal chamados "formais", porém, não nos de resultado predominante, erroneamente intitulados "materiais". (V. ob. Cit. P. 972).
Salta, portanto, à vista que quem sustenta a instantaneidade do delito de subtração de incapazes o considera delito de atividade, ou formal. Já vimos que o delito não se reduz a um mero começo de sua própria execução, o ato de subtrair, que também pode realizar-se mediante a omissão de adicionar (devolvendo) o que já fora subtraído, prolongando-se eventualmente a conduta punível, com atos de ação e omissão na economia do mesmo delito sempre informados da mesma finalidade de destruir o pátrio poder ou poder familiar.
Por conseguinte, deve o Juiz que conhecer da ação penal com acusação de subtração considerar sempre todos os direitos efetivamente lesados no período consumativo.,pois, certamente, não é o mesmo subtrair à guarda por alguns dias e manter a subtração por período que abranja, além da criação, o direito à educação e à companhia dos pais, o que só eventualmente, sem nenhum recurso à analogia, pode ser enquadrado na mesma ação, vista como comportamento ou conduta sujeita a pena.
Na doutrina nacional, colhe-se dos comentários de Edgard Magalhães Noronha, Direito Penal, 3º vol., ‘ 1977, pg. 350, que,
"Tal qual como no rapto, também importa a subtração em regra, afastamento do incapaz dessa órbita (refere-se à de vigilância, ‘ etc). É a abductio de loco ad locum. É mister ponderar, entretanto, que a lei frisa que a ação consiste em subtrair ao poder de quem tem a guarda. Não se referiu mais a espaço, como fazia a Consolidação das Leis Penais: casa paterna, colégio, asilo, hospital e domicídio (art. 289). Conseqüentemente, a subtração pode ocorrer estando o incapaz na rua, em casa de alguém etc. A ação deve ser tal que crie um estado ou situação em que não mais seja possível a guarda ou vigilância do responsável. Daí pensarmos que a subtração, como no seqüestro e cárcere privado(nº 400), pode ocorrer per obsidionem (traduzimos:por cerco), isto é, retendo-se a pessoa onde ela se encontra, ‘ e assim subtraindo-a ao poder do sujeito passivo."
Como se verifica, a conceituação oferecida por Noronha tem a amplitude suficiente para abranger também a retenção, que se dá após a subtração, na acepção estrita de retirada.A razão é obviamente a evidencia de que para se alcançar o sujeito passivo o conceito de subtração meramente física é insuficiente, posto que objetiva-se à lesão de direitos de que é titular pessoa diversa da subtraída.
Outro doutrinador de nomeada, Heleno Cláudio Fragoso, in Lições de Direito Penal, Parte Especial, 3º vol., 1959, pg. 617, aborda a duração na subtração como segue:
"Afirma-se também a necessidade de certa duração (gewisse Dauer) na subtração (SCHÖNKE-SCHRÖDER, Kommentar, p. 660) a fim de que possa configurar-se o crime. É a mesma questão já anteriormente estudada, a propósito da retenção. (refere-se à forma de deixar de entregar contemplada no art. 248 CP, que nitidamente contém tipos delitivos fungíveis e permutáveis –Mischgesetze- de que não cuida o tipo de delito em exame, pois o legislador penal serviu-se do conceito civil de pátrio poder, sendo este portanto integrativo como na tipicidade do furto de coisa alheia móvel. Prossegue HELENO seu comentário:) Parece-nos que se trata de matéria de fato, a ser resolvida em cada caso c oncreto, pelo prudente arbítrio do juiz, constatando-se a ofensa ao bem jurídico que a lei penal tutela, ‘ e que é o pátrio poder, a tutela ou a curatela. Nesse sentido, vale reproduzir a lição de MAGGIORE (Diritto Penale, p. 699) :" A duração da subtração não conta; pelo menos, não se pode estabelecer a priori; pode ser longa ou breve, e constituir violação do direito ao pátrio poder, segundo os critérios do juiz. O qual só tem uma obrigação: de acertar, independentemente da duração da subtração, se o menor esteve efetivamente subtraído à esfera de influência do genitor".
E conclue Heleno:" O crime é permanente, e admite tentativa." (HELENO, ob. Cit. Pg. 617).
Destaquemos a vexata quaestio "duração da subtração".
O tópico de Schönke-Schröder, ‘ referido por Heleno, é o seguinte, extraído e por nós traduzido, ‘ de sua obra Strafgesetzbuch- Kommentar-1978, pg. 1538: "6 A subtração não pressupõe, que uma nova relação de dependência seja estabelecida (RGSt. 18 275 e opinião dominante). Apesar disso deve ser exigida para a circunstância da subtração uma certa duração temporal (BGHSt. 1 200, OLG Bremen JR 1961, 107, OLG Hamm JMBlNRW 1966, 237, Maurach BT S.126); uma ruptura transitória na relação de poder e guarda (p. ex. para uma ida ao cinema) não basta 9RG JW 1935, 3108, 1938, 1388); isto se aplica também em caso de criança pequena (contra BGHSt. 16 61). Questionável é entretanto, por qual duração temporal da subtração o direito de educação dos pais é essencialmente prejudicado. Para tanto pode também com efeito o grau da necessidade de assistência à criança (idade diminuta, doença e assim por diante) ser importante (cf. BGHSt. 16 61), mas a subtração por uma duração de 10 minutos também dificilmente, segundo o já visto, poderia bastar. "
Por tudo isso deve-se ter por evidenciado que a pretensa instantaneidade da subtração jamais poderia comparar-se à do homicídio em certas e numerosas hipóteses, com a conseqüência de tornar irrelevante, para a consumação do homicídio, tudo o que se seguir à morte da vítima.
Em suma, o ataque a direitos, colocados como bem jurídico especificamente protegido por uma norma penal incriminadora, só se realiza por um único ato, se com esse ato foram eles todos destruídos, vedada a presunção júris et de jure de um tal resultado.
E se assim é, o delito em epígrafe não é instantâneo, como se assoalha através da imprensa e debates jurídicos. É permanente e por isso o lapso prescricional só se conta a partir do dia em que cessou essa permanência pela extinção do pátrio poder pelo atingimento da plena capacidade civil ou a partir do dia do restabelecimento do vínculo familiar.
Bibliografia:
LUIS JIMENEZ DE ASÚA, ‘ Tratado de Derecho Penal, vol. VII, Editorial Losada,3ª edição.
HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, Lições de Direito Penal, Parte Especial, 3º vol., José Bushatsky, editor, Sãoi Paulo,1959.
EDGARD MAGALHÃES NORONHA, Direito Penal, 3º vol., edição Saraiva, 1977.
SCHÖNKE-SCHRÖDER, Strafgesetzbuch, ‘ Kommentar, Verlag C. H. Beck, München, 1978.