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Por uma perspectiva constitucionalmente adequada da Jurisdição e do Processo Constitucional em um paradigma democrático de Direito

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11/11/2003 às 00:00
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3 – A Jurisdição e o Processo Constitucional diante dos direitos fundamentais da cidadania

A busca pela concretização dos denominados direitos fundamentais, em uma escala jurisdicional e processual, deve ser entendida como um pressuposto para a efetivação da cidadania, já que há uma interdependência entre o exercício pleno desses direitos com a própria idéia de uma democracia constitucional.

É a democracia vista como se fosse um "direito" consolidado no texto constitucional de modo positivo, tornando-se, em grande medida graças a uma dinâmica jurisdição constitucional, mais do que uma simples teoria política ou filosófica, afirmando-se, concretamente, através da realização dos direitos básicos à dignidade humana.

"El constitucionalismo actual no sería lo que es sin los derechos fundamentales. Las normas que sancionan el estatuto de los derechos fundamentales, junto a aquéllas que consagran la forma de Estado y las que establecen el sistema económico, son las decisivas para definir el modelo constitucional de sociedad." (PÉREZ LUÑO, 1995: 19)

Deve existir então, como já dito anteriormente, arenas públicas de debate e decisão, nas quais as decisões judiciais implementadas tenham de ser justificadas em uma estrutura que preserve e amplie os princípios centrais de um processo democrático, característica esta que determinará novos padrões de aprendizado institucional, evitando que o discurso do Estado Democrático de Direito se torne vazio de sentido.

Evidencia-se, então, que em época de uma crescente internacionalização do Processo e da Jurisprudência Constitucional, o sentido de cidadania necessita ser reconstruído a partir de uma base não assistencialista, a qual equipara o cidadão a um menor impúbere, como se este necessitasse de um "tutor", reconhecendo a igualdade dos indivíduos enquanto membros plenos, ativos e responsáveis de uma dada sociedade, e ao mesmo tempo reconhecendo e tematizando o pluralismo existente, em espaços locais mais próximos dos indivíduos e de suas relações intersubjetivas, valorizando os fundamentos de uma jurisdição constitucional em um Estado Democrático de Direito.

A cidadania impõe a concretização dos direitos fundamentais, demonstrando que a simples menção a estes pode nada significar, se junto com o reconhecimento textual, não forem asseguradas garantias potenciais e plausíveis de torná-los efetivos, ou seja, o ponto central, quando da interpretação e aplicação das normas legais, é a dignidade do ser humano, o que está explicitamente consagrado na Constituição brasileira de 1988. [6]

Vejamos, com José Alfredo de Oliveira Baracho, a importância que uma proteção jurisdicional efetiva tem na esfera dos direitos fundamentais, a citação é um pouco longa, mas ver-se-á logo o seu interesse:

"O reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais não é suficiente, desde que não vem acompanhado de garantias que assegurem a efetividade do livre exercício de tais direitos. As liberdades adquirem maior valor quando existem garantias que as tornam eficazes.

O sistema de proteção dos direitos fundamentais concretiza-se na sua viabilização em sede jurisdicional. O bloco garantista consagra mecanismos variados, alguns têm caráter abstrato. Certos instrumentos ou previsões constitucionais não estão vinculados a uma vulnerabilidade real e concreta de um direito fundamental, mas são condições e requisitos, de caráter geral, para atuação dos poderes públicos ou que limitam sua atuação.

Os direitos fundamentais vinculam o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e a própria jurisdição, como direitos diretamente aplicáveis. É neste sentido que a jurisdição em suas distintas instâncias, em razão das normas constitucionais, está obrigada à imediata aplicação dos direitos fundamentais." (BARACHO, 2000a: 100 – 101)

Seguindo essa linha de raciocínio, é importante lembrarmos que, não obstante a redemocratização ocorrida com a promulgação da atual Constituição e, com a presença no cenário político-jurídico de novas linguagens e atores, ainda se faz necessário um implemento verdadeiro dos princípios processuais democráticos inseridos no texto constitucional vigente, já que entendemos ser a consolidação desses um fator relevante para sairmos da "simples" proclamação dos direitos e liberdades fundamentais e passarmos para um plano de realizações plenas dos mesmos, configurando uma Justiça Constitucional que se revele, em tese, como um instrumento "pedagógico" contra idéias autoritárias do exercício do poder.

Sendo assim, mostra-se primordial na compreensão dos direitos da cidadania no Brasil o marco de que estes terão uma possibilidade maior de realização quando transformações profundas, em inúmeras dimensões, tornarem os procedimentos jurisdicionais e decisórios mais acessíveis a todas as camadas sociais, imperando uma gestão plural e democrática dos temas e interesses públicos.

Desse modo, a formação de uma Jurisdição Constitucional mais independente e atuante, assumindo posições mais firmes e críticas em relação aos atos da Administração Pública, é um dos elementos-chave na inserção da sociedade civil organizada brasileira em um contexto mais solidário e justo, permitindo uma inclusão social verdadeiramente democrática, já que a mesma se alicerçará na garantia de que os princípios mestres do processo serão empregados para reforçar a integridade, a coerência e a supremacia das disposições constitucionais.

Desta sorte, a pretendida concretização do exercício dos direitos e liberdades fundamentais do homem está, intrinsecamente, vinculada à exigência de que sejam edificados mecanismos jurídico-processuais que possibilitem, em princípio, que quaisquer violações ou abusos que venham a ocorrer no âmbito desses mesmos direitos sejam passíveis de controle e aferição por parte dos órgãos do Poder Judiciário, isto é, a garantia constitucional reconhecida aos direitos fundamentais implica, óbvia e logicamente, na existência de um instrumental de defesa e proteção, o que nos remete, novamente, para a importância de compreendermos os institutos processuais a partir da Constituição.

Como vislumbra o Professor Marcelo Cattoni:

"Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais processuais jurisdicionais, nos próprios processos de controle jurisdicional de constitucionalidade, em via incidental ou principal, a jurisdição em matéria constitucional também garantirá as condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos, pela aplicação a si mesma do princípio do devido processo legal, compreendido, aqui, como ‘modelo constitucional do processo.’" (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 155 – 156)

Em suma, a estruturação da Jurisdição e do Processo Constitucional, como meios democráticos que objetivam a efetiva aplicação dos direitos fundamentais, determina uma noção tautológica das garantias e dos direitos por elas assegurados, ou seja, direitos garantidos implicam na garantia dos direitos. Tem-se assim, caracterizada a circunstância de que os problemas e questionamentos que giram em torno da efetividade e aplicabilidade dos direitos fundamentais vinculam-se, direta e indiretamente, ao papel exercido pela referida Jurisdição e Processo Constitucional.

Eis aí, em rápidas pinceladas, os pressupostos que nos permitem verificar que:

"Torna-se cada vez mais importante o aperfeiçoamento dos institutos que completem o papel do processo constitucional na efetivação da cidadania plena. Como titulares de direito, os cidadãos, no exercício da cidadania plena, não podem ser impedidos do gozo de seus múltiplos direitos, reconhecidos e elencados na Constituição e na legislação infraconstitucional, mesmo daqueles cujas leis não foram promulgadas ou que se tornem menos efetivos e eficazes na ausência destas." (BARACHO, 1995: 55)(Grifos Nossos)

3.1 – Ação Declaratória de Constitucionalidade: uma abordagem constitucionalmente adequada

Pautando-nos pela linha de pensamento delineada no ponto anterior e em todos os posicionamentos desenvolvidos até esta parte, e assumindo o pressuposto fundamental de garantia democrática da supremacia constitucional, é que passaremos agora a analisar a Constituição de 1988, no que tange à aferição de compatibilidade e adequação das leis e atos normativos aos parâmetros e princípios inseridos no texto maior, vislumbrando que o mesmo texto constitucional adotou um sistema híbrido, misto, configurando uma estrutura complexa, onde convivem as formas concentrada/direta e difusa/incidental de controle de constitucionalidade.

Na espécie difusa de controle, a qual é resultado da influência de doutrina constitucional norte-americana, estando já presente durante a vigência da primeira Constituição Republicana (1891), determinada, claramente, desde a edição da Lei n° 221, de 20 de novembro de 1894 [7], qualquer órgão jurisdicional, juiz ou tribunal, é competente para averiguar a constitucionalidade de normas legais que tenham de ser aplicadas em casos concretos, ou seja, quando o julgador reconhece a inconstitucionalidade de determinada lei, deixa de aplicá-la naquela situação específica, sendo o efeito de tal procedimento restrito às partes em tela (eficácia inter partes). É a declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum. Para que ocorra o denominado efeito erga omnes a partir de tal decisão, faz-se mister que o Supremo Tribunal Federal julgue definitivamente a matéria e que, além disso, o Senado Federal se pronuncie sobre a suspensão de sua execução (CF/88, art.52, X).

Ora, uma análise, ainda que por demais brusca e sucinta, da nossa conformação constitucional, revelará, de plano, que o sistema difuso é um mecanismo de controle de constitucionalidade que já fixou firmes raízes na prática institucional brasileira, densificando-se, na atualidade, essencialmente através do Recurso Extraordinário (art.102, III), demonstrando ser um valioso instrumento processual de dinâmica constitucional, com o qual os cidadãos podem levantar as suas pretensões e seus questionamentos, contribuindo para a formação do que Häberle chamou de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. (HÄBERLE, 1997)

"Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade pode dar-se como preliminar de mérito em qualquer processo, cível ou penal, de tal forma que todo cidadão tem o direito de se opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e todo juiz ou tribunal, da primeira à última instância, não só pode mas deve, como atividade típica e função intrínseca à jurisdição brasileira, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo de qualquer espécie, negando a aplicação de ‘comando’ eivado de inconstitucionalidade." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002: 123)

Já o controle concentrado, também conhecido como controle abstrato, de inspiração européia, kelseniana, que já pode ser vislumbrado, em princípio, na chamada representação interventiva da Constituição de 1934, passando depois por um longo processo de maior concretização, adquirindo contornos mais nítidos com a representação de inconstitucionalidade consagrada na Emenda Constitucional n°16/1965, consolidando-se plena e efetivamente naqueles legitimados da Constituição de 1988, é, em síntese, aquele realizado originária e diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, na função precípua de Guardião da Constituição, conforme determinação constitucional disposta no artigo 102, caput, da Lei Maior. Nessa forma de controle, quando declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo examinado, exame esse que independe de uma situação concreta, sucedendo uma aferição de compatibilidade em tese, a mesma é retirada do ordenamento pátrio, tendo a sua decisão eficácia erga omnes. [8]

É no âmbito desse controle concentrado de constitucionalidade que podemos verificar o implemento de substanciais transformações, as quais vão desde a ampliação do rol de legitimados para propor as ADIns (art.103, I a IX) até o surgimento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade, passando por propostas centralizadoras como a da Súmula Vinculante e pelas disposições normativas, de duvidosa constitucionalidade [9], encontradas em recentes legislações (Leis n°. 9868 e 9882, ambas de 1999), tendo um profundo impacto no que concerne ao nosso tradicional modelo de controle de constitucionalidade das leis, em uma acentuada tendência de forte reforço do modelo abstrato de controle.

Neste sentido, o atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, expoente máximo dessa vertente que pugna pela ampliação e predomínio do controle concentrado, empregando um sofisticado arsenal teórico para restringir o controle difuso, pretendendo demonstrar que o modelo concentrado propicia maior segurança jurídica, pois mais célere e uniforme em termos processuais, afirma que a Constituição Federal de 1988, ao aumentar o números dos que possuem legitimidade ativa para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, como acima exposto, reduziu sensivelmente o alcance do controle incidental/difuso, "permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas." (MENDES, 1997: 13)

Neste mesmo tom, Nagib Slaibi Filho afirma que com a adoção da ADC, o "poder constituinte albergou a pretensão de se fazer induvidosa a constitucionalidade do ato normativo federal e, em conseqüência, excluir a eficácia do controle incidental de constitucionalidade sobre ele." (SLAIBI FILHO, 2000: 114) [10]

É dentro e a partir desse contexto, e sempre tendo como pano de fundo os raciocínios em pontos anteriores elaborados, que devemos buscar compreender a Emenda Constitucional n°. 3, de 17 de março de 1993, que entre outras alterações constitucionais, introduziu a já mencionada Ação Declaratória de Constitucionalidade, sendo a mesma, além da Ação Direta de Inconstitucionalidade, regulada, posteriormente, em seu processo e julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, pelos dispositivos elencados na referida Lei nº 9.868, de 10 de Novembro 1999.

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Desse modo, a partir dessa Emenda Constitucional, o artigo 102 da vigente Constituição da República passou a ter a seguinte redação:

"Art.102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar originariamente:

a)a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

...................................................................................

§ 2°. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo."

Uma observação inicial acerca da problemática em torno das ADCs já pode ser aqui formulada, haja vista que em nossa estrutura e organização jurídica todas as leis e atos normativos devem ser, até decisão em contrário proferida por autoridade ou órgão competente, presumidos como constitucionais por aqueles que são seus destinatários, sendo a boa-fé do cidadão que age em consonância com essa noção preservada. [11]

Como doutrinava o mestre Lúcio Bittencourt:

"É princípio assente entre os autores, reproduzindo a orientação pacífica da jurisprudência, que milita sempre em favor dos atos do Congresso a presunção de constitucionalidade. É que ao Parlamento, tanto quanto ao Judiciário, cabe a interpretação do texto constitucional, de sorte que, quando uma lei é posta em vigor, já o problema de sua conformidade com o Estatuto Político foi objeto de exame e apreciação, devendo-se presumir boa e válida a resolução adotada." (BITTENCOURT, 1997: 91)(Grifos Nossos)

Nesse sentido, o também saudoso Celso Agrícola Barbi ensinou:

(...) "quando há dúvida quanto à constitucionalidade da lei, deve ela ser aplicada, pois presumem-se constitucionais as leis, presunção essa que só deve ceder quando em inequívoco vício." (BARBI, 1968:43)

Com efeito, a lógica presente nas Ações Declaratórias revela-se em aberta contradição não só com a idéia de presunção de constitucionalidade, mas com toda a nossa tradição de controle difuso, pois pode vir a possibilitar que uma lei se torne imune a argumentos de inconstitucionalidade, reduzindo de maneira drástica, o alcance desse controle em sede incidental, já que no caso de o Supremo Tribunal Federal decidir pela procedência do pedido contido em uma ADC, todo cidadão que já havia recorrido processualmente ao judiciário, pretendendo o reconhecimento de um direito que julgava estar sendo ofendido pelo instrumento normativo que teve sua constitucionalidade declarada, não mais terá meios jurídicos de fazer as suas pretensões serem ainda examinadas pelos órgãos executivos e judiciais, como pode ser depreendido do parágrafo segundo do artigo 102 do texto constitucional.

Esta conclusão também se impõe pela leitura do artigo 26 da Lei n° 9868/99, in verbis:

"Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória."

De fato, todas as recentes transformações ocorridas em nosso sistema de controle de constitucionalidade têm sido caracterizadas, ainda que sutilmente, por um discurso que objetiva negar o modelo difuso de aferição de compatibilidade das leis com o texto fundamental, pautando-se por uma contínua concentração no âmbito do Supremo Tribunal Federal das questões envolvendo o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, além de dar à nossa mais alta Corte poderes discricionários cada vez mais amplos no que diz respeito aos efeitos de suas decisões, o que pode ser verificado com o estudo dos dispositivos contidos nos artigos 27 e 28 da mesma Lei n° 9868/99, circunstâncias essas que, em nosso entendimento, são de flagrante inconstitucionalidade, pois como já doutrinava o saudoso Afonso Arinos, "lei que amplia jurisdição de tribunal é inconstitucional." (MELO FRANCO, apud FRANCO BAHIA, 2000: 51)

Corroborando ainda mais com essas tentativas crescentes de desprestigiar e desqualificar o controle difuso de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro, podemos citar alguns posicionamentos jurisprudenciais [12], nos quais afere-se a plausibilidade de impetração da ação rescisória, respeitado o prazo desta, para rescindir julgados que deixaram de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional diante da situação concreta de aplicação, se posterior declaração julga constitucional essa mesma lei, desconstituindo, em princípio, anterior decisão de inconstitucionalidade incidental, o que praticamente inviabilizaria, de maneira plena, qualquer efeito do controle difuso de constitucionalidade.

"Nesses casos, portanto, a sentença que deixa de aplicar uma lei ‘x’ em determinado caso concreto, sob o argumento de sua inconstitucionalidade, torna-se passível de demanda rescisória, uma vez a constitucionalidade da lei inaplicada venha a ser reconhecida pelo Supremo." (FIGUEIREDO GONÇALVES, 2002:535)

A nosso ver, tais abordagens jurídicas, como anteriormente afirmado, fortalecem demasiadamente o controle jurisdicional concentrado, em detrimento do tipo difuso ou incidental, o qual, em razão de sua maior abertura e proximidade com a coletividade, permite uma constante e salutar atualização interpretativa do texto constitucional, que em um paradigma democrático de direito, como o consubstanciado na Constituição de 1988, deve estar sempre apto a ser relido e tematizado por todos os interessados e destinatários do mesmo.

Assim, a partir da reflexão até aqui realizada acerca da conseqüências jurídico-institucionais de um instrumento como a Ação Declaratória de Constitucionalidade, percebemos que a mesma é fruto de uma interpretação no mínimo equivocada e imperfeita dos princípios basilares inclusos no texto maior de 1988, chegando tal instrumento a ter uma infeliz semelhança com a famigerada avocatória da Emenda Constitucional n°7, de 1977, ainda em tempos de autoritarismo, já que o mesmo instituto e a forma de seu processamento enfeixam competências extremamente amplas nas mãos de pouco legitimados (art.103, §4° da CF/88 e art.13 da Lei n° 9868/99).

Eis aí alguns pressupostos que nos permitem diagnosticar que tal mecanismo jurídico, que nasceu com a finalidade de dar mais celeridade, uniformidade e certeza às decisões do judiciário, afronta profundamente garantias fundamentais estabelecidas em nossa Constituição Federal, como aquelas em passagens anteriores abordadas, além de chocar-se com a presunção de constitucionalidade, revelando-se uma ação anômala e desconhecida em nosso ordenamento, pois na mesma não é possível identificar-se o requerido, demonstrando ser um grave obstáculo à dinâmica e evolução do ordenamento jurídico, desejando congelar a nossa identidade constitucional.

Todavia, aqueles [13] que defendem o emprego do instrumental em tela, afirmam que essas críticas não se justificam, pois as ADCs seriam um progresso natural do nosso controle concentrado de constitucionalidade, sendo um desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial inevitável da anterior representação de inconstitucionalidade (EC.16/65), a qual era de exclusiva iniciativa do Procurador-Geral da República. Na visão destes, a grosso modo, quando o Procurador-Geral, no uso de suas atribuições constitucionais, encaminhava ao STF representação de terceiros, com o parecer em contrário, estava a solicitar, em realidade, uma declaração de constitucionalidade, o que demonstraria que a mesma seria portadora de um caráter dúplice, além de permitir afirmar que as ADCs não são nenhuma novidade, mas tão-somente uma evolução, a qual começou a se delinear necessária a partir da decisão proferida na Representação n° 1349, em que essa condição de duplicidade foi em muito reduzida, pois entendeu o STF naquela oportunidade que a representação era prevista, em princípio, para a postulação de inconstitucionalidade, não podendo o seu titular discordar, desde o início e frontalmente, das inconstitucionalidades argüidas. [14]

Na perspectiva de Gilmar Ferreira Mendes, uma análise restrita e superficial dos aspectos da representação de inconstitucionalidade e a supra citada decisão do Excelso Pretório, impuseram, em sede de controle abstrato de normas, "a positivação de um instituto específico no ordenamento constitucional." (MENDES, 1994:79)

Ainda nesta linha "meramente evolutiva", o então Ministro do STF, Paulo Brossard, quando do julgamento da ADC-1, proferiu voto a respeito da Ação Declaratória de Constitucionalidade no Brasil, do qual nós reproduzimos abaixo algumas passagens:

"De modo que vejo na atual criação legislativa um complemento, um enriquecimento, um aperfeiçoamento do nosso sistema tal como ele vinha evoluindo." (...) "A criação da ação direta de constitucionalidade vem completar, vem fazer companhia à ação direta de inconstitucionalidade e que representou avanço notável e extremamente útil ao aperfeiçoamento do nosso sistema jurídico." [15]

Ora, não obstante a sofisticação de alguns dos argumentos supra expostos, entendemos que a introdução da ADC entre nós resultou mais de uma opção político-ideológica, do que de uma evolução, no sentido positivo do termo, já que não há como trabalhar com conceitos sem considerar o contexto em que estão inseridos, no caso o paradigma do Estado Democrático de Direito encontrado na Constituição "cidadã" de 1988, o qual marca uma profunda ruptura com as concepções jurídicas anteriores, já que, à luz dos princípios consagrados constitucionalmente, tomam enorme vulto garantias processuais fundamentais e inafastáveis de participação dos cidadãos, seja tanto na esfera política como na jurisdicional, revelando que todos estamos autorizados a sermos intérpretes do texto constitucional, respaldando a nossa tradição de controle difuso, circunstância essa que um instituto como a Ação Declaratória de Constitucionalidade parece desconhecer, haja vista o reduzido rol de "esclarecidos" que são titulares do direito, quiçá privilégio, de propositura da mesma.

Em outros termos, como ensina Cattoni de Oliveira, "há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser tão-somente um problema de experts para se tornarem questões de cidadania." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000: 105)

Contudo, o que temos observado no Pretório Excelso é uma radical opção por mecanismos e interpretações que apostam na "qualidade" dos intérpretes, "desqualificando" o controle difuso, que a despeito de todas as recentes alterações, continua sendo aquele que se mostra o mais apto em uma perspectiva constitucionalmente adequada, pois não oculta a complexidade e o pluralismo constitutivos da nossa sociedade, permitindo que toda e qualquer pretensão a direito seja levantada, problematizada, em uma democrática abertura temática.

Essas assertivas são confirmadas, em certa medida, por um trecho do voto, quando da questão de ordem na já citada ADC-1, do também então Ministro Francisco Rezek, ao discorrer sobre o motivo que levou à necessidade da instituição da Ação Declaratória na EC/3 de 1993, que em sua perspectiva era o grande número de ações que haviam sido impetradas por todo o Brasil no caso dos 147% dos aposentados, desenhando, ousaríamos dizer, o que Marcelo Cattoni, parafraseando Häberle, denominou de uma "sociedade fechada de intérpretes da Constituição".(CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:124)

"Foi para evitar a reprodução de situações como aquelas que em passado recente o país enfrentou, foi para simplificar o procedimento, foi para fazer com que quem tem qualidade para isso, o mais cedo possível dissesse uma palavra final sobre a questão controvertida, que o legislador entendeu instituir a declaratória de constitucionalidade." (Grifos Nossos) [16]

Verifica-se na passagem acima, a dificuldade em se admitir que a sociedade civil, como um todo, seja co-intérprete necessária do texto maior, além de vislumbrarmos a crença iluminista em que um método ou racionalidade infalível, no caso em questão, a ADC, seria capaz de produzir, ontologicamente, certeza e segurança jurídica, na ilusão de que uma decisão, por si só, apenas por se fundamentar no argumento da "autoridade qualificada" [17], se impusesse, em uma inútil tentativa de se exorcizar o risco da divergência, não reconhecendo que a democracia requer esse potencial dissenso em um consenso.

Como diria o próprio Peter Häberle:

"Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição." (HÄBERLE, 1997: 15)

Além do refutado argumento de autoridade exposto acima, aqueles que advogam a favor da adoção da ADC no ordenamento jurídico brasileiro e dos parâmetros processuais estabelecidos para tal instrumento constitucional pela Lei n.º 9.868/99, também assinam as teses de que a Constituição de 1988, ao ampliar, como já citado, o rol dos legitimados para proposição de ADIns, teria feito uma opção pelo sistema concentrado, em detrimento do tradicional controle incidental ou difuso, e de que as ADCs seriam tão-somente uma ADIn de sinal invertido.

O argumento de que a ampliação dos legitimados teria denotado uma redução da importância do sistema difuso é por demais frágil, já que o mesmo raciocínio pode ser entendido em sentido inverso, isto é, o fim do monopólio de propositura da ADIn por parte do Procurador-Geral da República pode significar uma escolha do constituinte de reforçar a "difusão" do próprio controle concentrado. Quando ao segundo argumento, cabe dizer que se a ADC se reduz a uma ADIn em sentido inverso, ou como preferem muitos que as duas são "ações gêmeas", idênticas, porque o tratamento diverso quanto aos legitimados para propositura dessas ações constitucionais? Porque a restrição quanto aos demais legitimados do art. 103 da Carta de 1988 no que toca à proposição de ADCs?

À primeira vista, parece-nos que a identidade constitucional é absorvida pelo governo federal, como se a questão constitucional fosse um problema apenas da alçada desta esfera governamental, ou ainda, como se o debate público fosse prejudicial à configuração do sujeito constitucional, impondo-se a supremacia da Lei Maior por uma autoridade que se entende não questionável. Ao contrário da consideração da divergência salutar a um Estado Democrático de Direito, prefere-se assumir posição que objetiva eliminar ou exorcizar a complexidade da modernidade e os riscos a ela inerentes, em uma clara privatização do público.

Ainda nessa linha de uma identificação do público com a dimensão estatal, devemos tratar da principal crítica produzida em relação à adoção do mecanismo jurídico em tela, ou seja, do provável desrespeito e afronta aos direitos e garantias constitucionais processuais fundamentais, os quais dão o norte a uma jurisdição inserida em um paradigma democrático de direito.

No que tange a essa hipótese de que o procedimento adotado nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade atinge direitos essenciais da cidadania, como os supra lembrados, seus apologistas rebatem com o argumento de que além das ADCs proporcionarem maior economia processual, celeridade e segurança jurídica às decisões do Poder Judiciário, a referida espécie de ação constitucional configuraria o que se denomina de um processo objetivo, isto é, sem partes nem contraditório, no qual há um requerente mas não a figura do requerido, haja vista que a mesma, assim como as ADIns, encontram-se no âmbito do controle concentrado, não objetivando, desta forma, a proteção de direitos subjetivos, mas sim a defesa direta da ordem constitucional, teses essas que se têm mostrado vencedoras no Pretório Excelso.

"O controle normativo abstrato, ou por via de ação, faz instaurar – consoante proclamado pela doutrina e pela própria jurisprudência deste Tribunal – um processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações jurídicas concretas ou individuais." (Reclamação n°. 354 – RS, Relator Ministro Celso de Mello, RTJ, 136: 469)

Nesse mesmo diapasão, doutrina o Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

"A ação declaratória de constitucionalidade configura típico processo objetivo, destinado a elidir a insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a legitimidade de lei ou ato normativo federal. Os eventuais requerentes atuam no interesse de preservação da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio." (MENDES, 1994: 53)

Tais argumentos não subsistem diante de uma concepção constitucionalmente adequada do que seja o princípio do contraditório, ou seja, a simétrica e potencial participação de todos os afetados pelas decisões judiciais, no plano processual, na conformação das mesmas, refletindo efetivamente a garantia do acesso à justiça e a cláusula do devido processo legal, em uma perspectiva democrática do processo, significando, em última instância, "la possibilità, cioè, per ciascuno dei destinatari del provvedimento giurisdizionale di partecipare al relativo procedimento formativo su un piano di reciproca e simmetrica parità..."(ANDOLINA e VIGNERA, 1990: 103)

Nesta mesma linha, Fazzalari, ao caracterizar a estrutura do contraditório, afirma que esta ocorre

"quando in una o più fasi dell’ iter di formazione di un atto è contemplata la partecipazione non solo – ed ovviamente – del suo autore, ma anche dei destinatari dei suoi effetti, in contraddittorio, in modo che costoro possano svolgere attività di cui l’autore dell’ato deve tener conto; i cui risultati, cioè, egli può disattendere, ma non ignorare." (FAZZALARI, 1994: 83)

Ora, como visualizar o princípio do contraditório na redação do parágrafo segundo do artigo 102 do texto constitucional após a EC 3/93, ou nas disposições do artigo 26 da Lei n° 9868/99, já que os mesmos não permitem que qualquer cidadão, caso seja destinatário, ainda que não diretamente, das decisões proferidas pela nossa Suprema Corte em sede de ADC, possa vir a aduzir e defender razões que qualifiquem de essenciais na tutela de seus direitos, isto é, todos os argumentos levantados na situações concretas de aplicação são desconsiderados em prol de uma pretensa segurança jurídica, sendo a mesma edificada em um "germânico" processo objetivo.

O princípio do contraditório, como ressaltado, em um paradigma democrático participativo como o da Carta de 1988, impõe a consideração e a prevalência dos argumentos levantados em casos concretos únicos, que não se repetem, onde todos os jurisdicionados envolvidos, em uma igualdade processual que não se confunde com o direito material pretendido, podem receber uma "sentença que é ato do Estado, mas que não é produzida isoladamente pelo Estado e sim resulta de toda uma atividade realizada com a participação, em garantia de simétrica paridade, dos interessados, ou seja, dos que irão suportar os seus efeitos." (GONÇALVES, 1992: 188)

Reforçando essa compreensão, podemos dizer com Habermas que:

(...) "numa aplicação de normas, sensível ao contexto, a imparcialidade do juízo não está garantida pelo simples fato de perguntarmos acerca daquilo que todos poderiam querer, e sim pelo fato de levarmos adequadamente em conta todos os aspectos relevantes de uma situação dada. Por isso, a fim de decidir quais normas podem ser aplicadas a determinado caso, é preciso esclarecer se a descrição da situação é completa e adequada, englobando todos os interesses afetados." (HABERMAS, 1997: II, 246)

Tais entendimentos conseguem demonstrar, não obstante uma grande sofisticação teórica, a fragilidade do argumento de que a ADC configuraria um processo objetivo, o qual não atingiria direitos subjetivos, já que inserido no controle de constitucionalidade abstrato, pois como acima demonstrado, o contraditório não se confunde com o direito material, realizando-se na esfera processual, não sendo mister a existência de interesses divergentes, mas que todos os interessados possam influir no livre convencimento dos magistrados, densificando o antigo adágio audi alteram partem, circunstâncias essas, que não podem ser encontradas no instrumento jurídico-constitucional em exame.

Além disso, o raciocínio de que existiria uma analogia entre o procedimento adotado nas ADIns e o das ADCs também não procede, haja vista que o "contraditório ressalta do artigo 103 e parágrafos, da Constituição da República de 05 de outubro de 1988, sendo que o § 3º. expressamente determina a prévia citação do Advogado-Geral da União..."(GONÇALVES, 1992: 118)

Alia-se ao até aqui exposto, demonstrando ainda mais o desrespeito ao princípio do contraditório, o fato de que se não bastasse a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, no que se refere aos órgãos do Judiciário e do Executivo, das decisões definitivas de mérito em sede de ADCs, conforme se depreende da redação dada pela polêmica EC 3/93, ao já citado parágrafo segundo, artigo 102, da atual Carta da República, temos ainda as disposições contidas no artigo 21 da Lei n° 9868/99, que ao tratar da medida cautelar no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade dispõe que:

"O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo."

Ora, como se pode verificar, o já duvidoso § 2º., do art.102, diz muito claramente que o efeito vinculante [18] e a eficácia contra todos só se produzirá após a decisão definitiva de mérito, todavia, com o texto do art. 21, acima reproduzido, o Supremo Tribunal poderá conceder, em relação ao Judiciário, a força vinculante em atos cautelares, em uma flagrante e inconstitucional absorção de competência dos demais órgãos judiciais, além de impossibilitar que os cidadãos afetados por essas medidas possam se fazer presentes, já que os seus processos serão suspensos até o julgamento final da ADC.

Afere-se que a tese de que a Ação Declaratória de Constitucionalidade, por se encontrar na esfera do processo objetivo, não atingiria o princípio do devido processo legal em toda a sua extensão, revela-se insustentável, pois com a suspensão dos processos já iniciados nas primeiras instâncias fica caracterizado que as conseqüências advindas de qualquer ADC atacam diretamente o exercício do direito de ampla defesa e participação consagrado constitucionalmente, colocando "em xeque os supostos básicos do controle difuso de constitucionalidade, que constituem nossa herança de mais de cem anos." (CARVALHO NETTO, 2003: 163)

Como bem vislumbrou o Ministro Marco Aurélio, em voto vencido, quando da ADC-1:

"Ou seja, o que decidirmos aqui em uma ação direta de constitucionalidade repercutirá, necessária e obrigatoriamente, nas demandas que estejam em andamento; repercutirá, sem que se ouçam os interessados nessas demandas; repercutirá afastando, até mesmo, a livre discrição dos órgãos investidos do ofício judicante." [19]

Ora, a análise até este momento feita, ainda que singela, de tais disposições normativas, revela, de maneira insofismável, a tentativa governamental de reduzir a amplitude do controle difuso no ordenamento jurídico brasileiro, diminuindo sensivelmente a possibilidade de novas configurações da identidade do sujeito constitucional, parecendo querer mesmo imobilizar todas as discussões acerca do que seja a Constituição, além da utilização de expressões por demais subjetivas, as quais dão ao Supremo Tribunal Federal uma proeminência discricionária impressionante em nossa história constitucional moderna, facultando ao mesmo determinar quando e, até mesmo, de que modo os conteúdos e efeitos de suas decisões passarão a valer, fatos esses que, em nosso entendimento, são de flagrante inconstitucionalidade.

Esse possível congelamento e vinculação de decisões e interpretações oriundas da nossa Suprema Corte, que pode ser aferido dos supra citados mecanismos normativos é, em nosso entendimento, uma circunstância que em nada contribui para o fortalecimento de um sentimento de democracia, de hábitos democráticos, haja vista que as mesmas podem vir a permitir que pretensos direitos configurem, na realidade, abusos, ou que interpretações não-sistemáticas, não-principiológicas, de caráter ideológico, diríamos, até mesmo, deturpadas do texto constitucional vigente, transformem-se em elementos imutáveis, não passíveis de questionamento, possibilitando que arbitrariedades sejam cometidas com base no próprio ordenamento jurídico, ao tentar impor um discurso único, não levando em conta a diversidade existente em nosso Estado Democrático de Direito, dificultando, assim, a imprescindível porosidade da nossa identidade constitucional, podendo edificar, a longo prazo, uma jurisdição e um processo que ousamos comparar com aquele vislumbrado por Kafka.

Eis-nos, por conseguinte, diante de um instrumental jurídico que parece ter como finalidade precípua estabelecer quem é o intérprete e como devem ser as interpretações constitucionais realizadas, independentemente das situações fáticas ou daqueles nelas envolvidos, negando a circunstância que "a tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação.(GADAMER, 1999:489)

Como bem lembra Marcelo Cattoni de Oliveira:

"A reconstrução do caso concreto, argumentativamente realizada através e nos limites do processo jurisdicional, deve ser tomada como parte integrante do próprio processo de reconstrução ou determinação da norma a aplicar." (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001:59)

O cidadão, portanto, é nada mais do que o intérprete fundamental e permanente da Constituição, uma Constituição que, por ser democrática, é reconhecida como aberta a todos, podendo, assim, trabalhar com as enormes diversidades presentes na sociedade, sem subordinar-se a um único modo de ser e de viver, onde as garantias processuais revelam-se, sem necessidade de apelo a um idealismo simplificador ou a um formalismo ontologizador, fundamentais na configuração de uma estrutura sócio-institucional mais equilibrada.

Daí, que a possibilidade de uma participação/interpretação o mais difusa possível é considerada requisito essencial para se ter um sujeito constitucional democrático, e os instrumentos processuais, abrindo espaço de discussão e argumentação a todos, são mecanismos centrais para o direito moderno, permitindo que sejam aplicadas, através de um efetivo procedimento contraditório, as normas aos casos concretos, assegurando a plenitude ao devido processo legal, reconhecendo que só nas situações de aplicação devem-se fundamentar as decisões judiciais, em uma noção processual de justiça, isto é, "tomado sob esse ângulo, o processo é um segmento de uma atividade comunicativa de uma sociedade, o confronto de argumentos diante de um tribunal constituindo um caso admirável do uso dialógico da linguagem." (RICOUER, 1995: I,107) [20]

Salienta-se que todas essas afirmações possuem como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual deve-se buscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro, aferindo que a democracia é um projeto em contínua construção, onde a sociedade civil organizada é compreendida, em si mesma, como esfera pública, possuindo, desta maneira, a tarefa de estar em vigília contra essa reiterada possibilidade de privatização.

Em outras palavras, em um Estado Democrático de Direito plural, no qual convivem projetos de vida os mais diversos possíveis, uma saída possível para lidarmos com a complexidade que a modernidade impõe é ampliarmos e reforçarmos o nosso modelo de controle de constitucionalidade difuso, tornando plausível que quaisquer temas ou interesses sejam nele levantados e discutidos, visualizando a democracia como um processo interminável, sem exigir uma segurança definitiva, onde os membros desse mesmo Estado Democrático de Direito consigam reconhecerem-se como autores do ordenamento jurídico ao qual se submetem, em uma efetiva autolegislação.

Por isso, a questão que se impõe, nas palavras de Menelick de Carvalho Netto, é o fato de que:

"A autoridade encarregada de aplicar a Constituição não pode fazer o que bem quiser do texto constitucional, há limites, esses limites são intersubjetivamente compartilhados, e a maior garantia de qualquer constituição chama-se cidadania, uma cidadania viva e atuante, zelosa de seus direitos." (CARVALHO NETTO, 2003: 163)

Para ficarmos na brevidade de uma fórmula, podemos dizer que as atuais transformações produzidas em nosso sistema de controle de constitucionalidade são inconstitucionais, sendo a Ação Declaratória de Constitucionalidade sua face mais absurda, afrontado princípios jurídico-processuais tão caros ao Estado Democrático de Direito, negando nossa centenária tradição de controle incidental, não reconhecendo a riqueza de um modelo de controle que moldou-se, em certo momento histórico, a partir dos dois padrões existentes, mas indo além dos mesmos, em uma caminhada lenta e com grandes obstáculos, porém contínua, rumo ao estabelecimento de um processo e jurisdição constitucional mais abertos, participativos e democráticos, revelando, nas palavras do Ministro Marco Aurélio, que a ADC pode vir a "abolir o direito e a garantia individuais do cidadão de somente ter a liberdade ou bem que lhe pertença alcançados mediante o devido processo legal, ensejando, assim, julgamento sob o pálio do livre convencimento." [21]

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Sobre o autor
Francisco de Castilho Prates

acadêmico de Direito na UFMG, Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRATES, Francisco Castilho. Por uma perspectiva constitucionalmente adequada da Jurisdição e do Processo Constitucional em um paradigma democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4320. Acesso em: 25 abr. 2024.

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