Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Certamente uma das questões mais polêmicas e centrais a respeito da legitimação do Direito Penal, especialmente da sua atividade punitiva, é aquela referente à capacidade humana de escolha, à liberdade e discernimento do ser humano em relação às suas condutas.
Em apertada síntese duas linhas principais de pensamento se apresentam na Criminologia e na Dogmática Penal: aquela que apregoa um determinismo e aquela que acata a existência de um livre arbítrio do homem. As correntes de pensamento deterministas se dividem em várias vertentes (biológicas, psicológicas, genéticas, sociológicas, morfológicas etc.). Para essa linha de pensamento o homem atua impulsionado por forças internas e/ou externas sobre as quais não tem controle algum, não havendo falar em responsabilidade por seus atos. Isso, concomitantemente a uma absolvição geral da delinquência, a qual se torna um mero fenômeno não imputável ao seu autor, também traz em seu bojo uma postura perante o infrator que não permite propriamente uma “punição”, mas tão somente uma medida de neutralização. Dessa forma o determinismo é um caminho curto para a legitimação da adoção da pena de morte e de prisões perpétuas.
Doutra banda, surge o livre arbítrio como uma doutrina que apregoa a transcendência do ser humano aos seus condicionamentos. O homem surge como um ser condicionado (física, psíquica e socialmente), mas não determinado, porque tem a liberdade ao seu dispor e pode perfeitamente exercer a escolha entre uma ou outra conduta. Isso obviamente leva ao reconhecimento de uma responsabilidade moral por seus atos, mas também à possibilidade de pensar o ser humano como “pessoa”, como “indivíduo”, como ser capaz de agir e de alterar seu agir. Nesse passo pode ser punido por seus atos e omissões. A punição é possível, mas não são reduzidas suas opções a medidas drásticas como a morte ou a prisão perpétua.
Viktor E. Frankl foi médico, professor e pesquisador especializado em neurologia e psiquiatria, integrante da famosa “Escola de Viena” e fundador da “Logoterapia e Análise Existencial”. Pode-se afirmar, em linhas gerais, que a teoria de Frankl se embasa na noção de que o ser humano é um ser em busca de sentido, um ser que se transcende em direção a algo fora de si, a um fim, um objetivo. Ora, um ser assim constituído não pode ser simplesmente determinado tal qual um animal, atuar tão somente movido por instintos ou reações. Um ser em busca de sentido é sempre um ser livre.
Reconhecer a liberdade humana implica inevitavelmente em reconhecer a respectiva responsabilidade. Isso não é algo cruel ou opressor, mas sim o único caminho capaz de apontar para um verdadeiro reconhecimento da humanidade do homem e assim poder tratá-lo de forma humana.
A visão do infrator criminal como um ser fadado à marginalidade, às condutas antissociais certamente é uma das fontes de alimentação para o descaso total para com a população prisional no que se refere à tentativa de algum tratamento das causas do crime, causas estas encontráveis, segundo Frankl, não somente fora do homem ou dentro dele, apenas em fatores biológicos. Causas que na realidade dizem com a vontade de sentido, com a liberdade humana. Seja o descaso total para com a população prisional (como se vê no Brasil), seja a implantação de tratamentos de vertente estritamente determinista, já demonstraram sua absoluta inapetência para a redução da reincidência. Por outro lado, expõe Frankl:
“Nesse contexto, cabe finalmente citar Black e Gregson, estudiosos da Nova Zelândia. Segundo eles, os criminosos apresentam um grau de frustração existencial substancialmente superior à média da população. Casa-se bem com isso o trabalho realizado por Barber entre jovens criminosos levados ao seu centro de reabilitação californiano e tratados com o método da Logoterapia: reduziu-se aí o índice de reincidência de 40% para 17%”. [1]
O autor em destaque propõe uma revisão do reducionismo promovido no estudo da agressividade humana, seja sob o aspecto meramente psicológico, conforme Sigmund Freud, seja com fulcro em um fundamento biológico no estilo de Konrad Lorenz. Para Frankl o que falta em ambas as orientações supra mencionadas é o enfoque na “intencionalidade que é o que caracteriza o impulso vital do homem enquanto tal, enquanto ser humano”. Nesse passo o homem não pode ser tomado como uma espécie de “vítima indefesa” de seus impulsos psíquicos e/ou biológicos. Isso não significa negar à agressividade um viés também biopsíquico, mas simplesmente reservar a esse aspecto sua posição coadjuvante ante à liberdade humana. [2]
Nas palavras de Frankl:
“Enquanto a investigação da paz restringir-se a interpretar a agressividade como um fenômeno sub – humano e não analisar o fenômeno humano do ‘ódio’, estará condenada à esterilidade. O homem não cessará de odiar se o levarmos a crer que é dominado por impulsos e mecanismos. Esse fatalismo ignora que, sempre que sou agressivo, não contam os mecanismos e os impulsos que existem em mim, que podem estar em meu ‘id’, senão que sou aquele que odeia e que para isso não há desculpas, e sim responsabilidade”. [3]
Como já foi dito, mas nunca é demais repetir, o homem é um ser condicionado, mas não determinado. Indicar sua liberdade como constitutiva de sua humanidade não significa ignorar a existência de condicionamentos biológicos e psicológicos, mas sim compreender que, inobstante esses condicionamentos, há no homem, no âmago de sua humanidade, uma capacidade de transcendência e superação. Por isso o homem é efetivamente responsável por seus atos e omissões. Conforme destaca o autor:
“É evidente que o homem está submetido a condicionamentos por assim dizer biológicos, psicológicos ou sociológicos. Nesse sentido, não é livre – ele não está livre de condicionamentos; não é de modo algum livre de algo, senão que é livre para algo. Quero dizer, livre para tomar posição perante todo e qualquer condicionamento”. [4]
E mais, essa liberdade humana implica necessariamente em uma ingente responsabilidade. Liberdade sem responsabilidade é algo extremamente perigoso porque pode facilmente degenerar-se em arbitrariedade. [5]
Não há como fugir a essa responsabilidade e suas consequências:
“O pecado está tecido firmemente na trama da virtude e o desenho do humano existe com os dois fios da virtude e do vício. Por detrás das duas escolhas (...), a liberdade humana, sua individualidade, o livre – arbítrio, o mistério da escolha e as consequências de cada ato”. [6]
Portanto, salvo raras exceções patológicas, é o próprio sujeito que se condena a uma repressão moral e/ou legal, suas escolhas traçam seu “destino” e procurar desculpas para sua conduta pode parecer algo piedoso, mas, na verdade, significa animalizar o homem e legitimar medidas muito mais drásticas a fim de obter sua neutralização com sustento em uma noção de periculosidade fatalista.
REFERÊNCIAS
FRANKL, Viktor E. O sofrimento de uma vida sem sentido. Trad. Karleno Bocarro. São Paulo: É Realizações, 2015.
KARNAL, Leandro. Pecar e Perdoar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
[1] FRANKL, Viktor E. O sofrimento de uma vida sem sentido. Trad. Karleno Bocarro. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 17.
[2] Op. Cit., p. 18.
[3] Op. Cit., p. 19.
[4] Op. Cit., p. 98.
[5] Op. Cit., p. 110.
[6] KARNAL, Leandro. Pecar e Perdoar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014, p. 41.