Análise histórica da construção do devido processo legal no Brasil

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Breve análise da construção sociohistória da garantia ao Devido Processo Legal no ordenamento jurídico brasileiro.

 

 

1. Apresentação

 

Este trabalho objetiva refletir sobre a construção histórica do Devido Processo Legal e de seus fundamentos, considerando que este constitui elemento fundamental à existência do Estado de Direito, particularizando a sua expressão no âmbito da estrutura jurídico-institucional do Estado brasileiro.

Como premissa argumentativa inicial, nos detemos ao significado social e histórico da formação do Estado de Direito enquanto fenômeno civilizacional, predominantemente ocidental, que emerge na modernidade, e a sua expressão no Brasil.

Para tanto, a estruturação deste texto foi organizada de forma a contemplar reflexões em torno de doutrinas e dos princípios que fundamentam o Estado de Direito.

A respeito da República Federativa do Brasil, destacou-se o seu modelo de organização governamental, conceituando-se a república e o federalismo, porém enfatizando a singularidade nacional que designa um país composto por Estados-Membros, mas assentado em uma soberania extrema, personalizada na União. 

As garantias constitucionais são mencionadas no sentido de ser compreendida sua finalidade em se harmonizar a função dos poderes que compõem o Estado.

Como enfoque central deste texto, problematiza-se acerca da formação e sentido material e formal do Devido Processo Legal, o pressuposto da Ampla Defesa e do Contraditório, explicitando a sua positivação em alguns incisos do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, bem como uma incursão no feitio normativo que proporcionou as chamadas três ondas de acesso à Justiça.

           

2. Análise histórica da construção do Devido Processo Legal no Brasil

 

Para o entendimento da formação social brasileira e de seus procedimentos normativos, especialmente em relação aos que regulam as garantias individuais, requer que sejam consideradas noções como Estado de Direito, princípios e garantias constitucionais, modelo republicano e federado de país e, particularmente, a condição definida como legalmente passível de ser operada para acionar ou reagir impedimentos à liberdade individual, ou seja, o Devido Processo Legal.

O Estado de Direito é fruto da legalidade, e também da legitimidade, adquiridas na era moderna, sendo inerente normas de cunho constitucional para sua regulamentação. Nesse arcabouço jurídico-institucional estão abrigados os princípios e as leis que regem as práticas econômicas, políticas, sociais e as garantias individuais. A condição fundamental desse ordenamento legal está ancorada na perspectiva de que o sistema democrático de direito é constituído e constantemente afirmado, mesmo que de forma indireta, através da ação dos indivíduos, aptos para isso, dentro de cada espaço nacional, ou seja, é através da eleição direta do povo, com a escolha de seus representantes, que ocorre a elaboração das leis (BOBBIO, 1992).      

A base estrutural do Estado de Direito é, além da própria lei, a sujeição dessa forma de estado aos princípios fundamentais, gerando assim, garantias ao cidadão. E mais, esses princípios são imutáveis e representam o alicerce do ordenamento político-jurídico.

Canotilho (1999) entende que o Estado de Direito é a formação jurídica da esfera político-estatal, sendo ela determinada e regulada pelo próprio direito, ou seja, pelas leis e normas constitucionais. A partir desse entendimento, o autor afirma a possibilidade de uma convivência social mais justa e com menos arbitrariedade estatal, embora o Estado de Direito possa apresentar diversas facetas, ora focando mais a justiça, ora uma face mais social ou, ainda, mesclar as diversas formas, cada uma com suas particularidades e conceituação.

O referido autor também destaca que o Estado, apesar de regrar a vida em coletividade, a partir do seu poder de império fundamentado na Constituição, poderá ele mesmo sofrer danos e reparações, assim como qualquer outro indivíduo. Ou seja, o Estado também é regrado, fiscalizado e controlado, devido à supremacia da lei.

Os princípios constitucionais são, pois, normas presentes no ordenamento com o intuito de transmitir os valores e bens protegidos pela égide da Constituição. Entretanto, nem todo princípio será uma norma jurídica, ou seja, para tornar-se uma norma, precisa ser positivado, constituindo, assim, preceitos básicos que irão compor a estrutura constitucional, recebendo a denominação, consoante José Afonso da Silva (2004), de normas-princípios.

Ainda de acordo com Canotilho (1983) os princípios constitucionais compreendem duas categorias: os princípios político-constitucionais que constituem as decisões políticas fundamentais, e os princípios jurídico-constitucionais informadores da ordem jurídica do país. Eles importam, porquanto, em princípios constitucionais norteadores.

Nesse sentido, a República Federativa do Brasil é a denominação tanto utilizada para designar a forma de governo adotada, quanto para indicar que o país detém a formação de Estado Federal. Essa forma de organização político-social de uma nação baseada em entes federados tem a sua gênese na formação histórica da sociedade norte-americana. Assim, concretamente o federalismo surgiu com a constituição norte-americana de 1787, importando nos termos de José Afonso da Silva (2007) na união de coletividades políticas autônomas.

O Brasil possui a formação política de Estado Federal desde a proclamação da Constituição de 1889, estrutura reproduzida em todas as Constituições que posteriormente foram proclamadas. Contudo, historicamente, essa condição apresenta dificuldades em se consolidar efetivamente, com a União assumindo enorme poder decisório sobre os outros entes federados, notadamente em períodos de forte autoritarismo ou de exceção política, situação que a Constituição de 1988 tentou superar com o seu forte viés descentralizador.

A federação brasileira é composta pelos Estados-Membros, Territórios Federais, Distrito Federal e pelos Municípios. A União é a denominação do Estado Federal brasileiro, que irá exercer prerrogativas de soberania, sendo, assim, dotada de personalidade jurídica de Direito Público Internacional.

Os princípios constitucionais que orientam a estrutura do Estado Brasileiro são: soberania estatal, cidadania, dignidade humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e pluralismo político, presentes no artigo 1º da Constituição Federal de 1988. No artigo 3º estão presentes seus objetivos fundamentais, que são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades tanto sociais quanto regionais; e a promoção do bem de todos sem preconceitos (SILVA, 2007).

Consoante Ferreira Filho (2004), a Constituição, com base na doutrina clássica, representa a limitação do Poder Estatal. Analisa o autor que por se tratar de uma limitação ao poder representa, então, uma garantia de liberdade aos cidadãos, tendo em vista que estarão sempre asseguradas às ações seja do próprio Estado, seja dos demais indivíduos, por um regramento constitucional, que tem a finalidade de preservar bens e interesses públicos.

Assim, se as garantias constitucionais podem ser entendidas como medidas que visam a harmonia na função dos poderes, ao exercerem suas prerrogativas (BARBOSA, 1934), são elas, também, concernentes a todas as relações jurídicas, públicas ou privadas (DIDIER JR, 2007).

O princípio da legalidade, norteador do Estado Democrático de Direito, adotado pelo Estado brasileiro, está, portanto, inserido na Constituição. Tem a função de regulamentar, como premissa fundamental, que o Estado será sujeito à lei, sendo essa, sua essência principal (SILVA, 2007). Sendo assim, é correto afirmar que o Estado está sujeito ao império da lei, também denominado de supremacia legal. Esse princípio, entretanto, não deve ser entendido separadamente, mas sim, em conjunto com os demais inseridos no escopo da constituição. É, pois, a sujeição e respeito à norma. Já o princípio da reserva legal será a de determinadas matérias que só poderão ser aludidas mediante a elaboração de lei formal.

O entendimento de Alexandre Freitas Câmara (2004) acerca dos princípios indica que eles têm o propósito de orientar na interpretação da norma, estando os mais importantes positivados na Constituição Federal de 1988.

A Constituição, ao dizer que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, em seu artigo 5º, inciso II, está afiançando o império da norma na organização da vida social. Sendo assim, a passagem em virtude de lei, não engloba somente as normas constitucionais, mas também as leis infraconstitucionais, as medidas provisórias convertidas em lei, e as leis delegadas. Ou seja, em virtude de lei corresponde a todo o ato que possa ser equiparado a uma lei formal (SILVA, 2007).

Esse disposto garante aos indivíduos proteções especiais contra o arbítrio ou a violência pelo Poder Público. Essa proteção da condição de cidadão livre dos indivíduos não só impõem limitações às instâncias políticas, jurídicas e administrativas, como requisita que ações impetradas contra as liberdades individuais só ocorram mediante determinadas condições legais, ou seja, somente sob o severo cumprimento do que determinam as leis em vigor. A esse procedimento dá-se o nome de Devido Processo Legal. Ele garante que o indivíduo só poderá ter tolhida sua liberdade ou ter seus direitos e bens restringidos mediante a formalização de processo legal, cujo desempenho é restrito ao Poder Judiciário, através do juiz natural, sendo ainda assegurados o contraditório e a ampla defesa. Tal preceito está positivado no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal de 1988.

 Esse contexto legal de proteção propagado pelo postulado do contraditório pressupõe e garante, para o seu exercício, a mais ampla defesa dos indivíduos perante procedimentos legais que poderão tolher a sua liberdade e a efetiva posse e usufruto de seus bens. Essa ampla defesa compreende a defesa técnica ou processual, onde é exigida do defensor, a capacidade postulatória; e a defesa material ou genérica, exercitada no percorrer do processo pelo acusado, também denominada de autodefesa.

Assim sendo, o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 pode ser entendido como um verdadeiro rol de preceitos baseados no princípio do Devido Processo Legal, bem como no da legalidade. O Devido Processo Legal é a fonte da maioria dos princípios constitucionais, sendo esse seu corolário (CÂMARA, 2004).

A expressão não há devido processo legal sem o contraditório, alude à ideia de que para toda ação haja uma correspondente reação, gerando, assim, a paridade de oportunidades ou armas processuais. Ou seja, ainda segundo o referido autor, garante o acesso a uma ordem jurídica justa. Essa garantia deverá ser entendida em sua forma substancial, sendo assim assegurado aos que ingressem como titulares de uma pretensão jurídica ver seu processo julgado pela tutela jurisdicional de forma justa e imparcial. Dessa forma, todos podem ingressar em juízo em busca da defesa e amparo de seus interesses.

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O princípio do Devido Processo Legal é dividido em dois sentidos: o material e o formal. Por substantive due process of law entende-se que apenas a regularidade formal do processo não é suficiente, sendo assim necessário que a decisão seja tida como substancialmente razoável (DIDIER JR., 2007). A materialização do Devido Processo Legal, consoante Carlos Augusto de Assis (2001), está interligada ao princípio da proporcionalidade da decisão judicial, devendo essa ser compatível com o caso em concreto, gerando um equilíbrio entre o processo e o princípio da segurança jurídica.

O sentido formal atribuído ao devido processo legal consiste no direito de processar e de ser processado, consoante as normas previstas nos códigos e Constituição vigentes. É o direito positivo propriamente dito. Desse modo, o sentido atribuído ao Devido Processo Legal é que este constitui uma cláusula geral, que pode e deve ser exercido por todos, quer Estado, quer indivíduos (DIDIER JR., 2007).

Cabe destacar ainda a posição brasileira com relação aos interesses metaindividuais, coletivos ou difusos, que não podem ser tutelados pelos mesmos instrumentos utilizados para os interesses individuais. Nesse aspecto, com relação às ondas de acesso à justiça, em linhas gerais: a primeira trata do acesso à assistência judiciária gratuita aos que dela necessitarem; a segunda decorre de dispositivos complexos e democráticos que ampliam a instrumentalização dos direitos, como a ação popular, a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo; e, a terceira confirma a reforma do Poder Judiciário, para que se torne capaz de garantir meios eficazes prestação jurisdicional apta a satisfazer o titular do direito. Como exemplo dessa reforma, citamos a flexibilização das formas instrumentais, partindo do princípio da instrumentalidade dessas (CÂMARA, 2004).

 

3. Considerações Finais

 

As reflexões aqui produzidas constituíram um esforço interpretativo acerca da lógica histórica, legal e teórica sobre o Devido Processo Legal, particularmente as garantias desse parâmetro liberal-democrático na sociedade brasileira.

Entende-se que a realização das liberdades individuais e do princípio de justiça estão ancorados no ordenamento jurídico que prevê ao indivíduo e ao Estado exercerem as suas ações e defesas em condições que, ao primeiro fica garantida a proteção contra o arbítrio da instância estatal, e ao segundo a faculdade de acionar aqueles que infringirem as normas legais, compreendendo, ainda, que esse processo ocorre sob um contexto ordenado, onde se expressam o contraditório e a ampla defesa.  

Colocando tal ordenamento sob uma perspectiva histórica, infere-se que os princípios formadores do Estado de Direito constituem conquistas fundamentais à vida em sociedade. Conquistas essas que resultam de longos processos de lutas e disputas por direitos, mas que terminaram por moldar a sociedade ocidental contemporânea.

Tais reflexões nos levam a dimensionar ainda mais a importância do Estado de Direito no contexto brasileiro, um espaço nacional ainda recente de garantias constitucionais, devido aos longos períodos de exceção que suprimiram os direitos mais elementares, e cujas desigualdades sociais profundas concorrem para dificultar e constranger que tais garantias sejam plenamente acessíveis a todos.

Nesse sentido e inspirando-se em Bobbio (1992), entende-se que os postulados que garantem o contraditório e a isenção da lei, imprescindíveis à consolidação de uma cultura democrática, devem ser permanentemente defendidos, a começar pelo entendimento teórico e político desse processo.

 

Referências bibliográficas

             

ASSIS, Carlos Augusto de. Antecipação da tutela. São Paulo: Malheiros, 2001.

BERARDI, Luciana Andrea Accorsi. Devido Processo Legal: do Processo devido à garantia constitucional. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/textos/x/13/21/1321/>. São Paulo, 2005.

BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus Ed., 1992.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. I. 11ª. ed. ver. e atual. Editora Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2004

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1983.

______. Estado de Direito. 1ª. ed. Lisboa: Tipografia Guerra – Viseu, 1999.

DIDIER Junior, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 8ª. ed. rev., amp. e atual. Salvador: Edições Podivm, 2007.

FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 3ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

 


 

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Sobre a autora
Camila Rodrigues Neves de Almeida Lima

Doutoranda em Direito Público e Mestre em Direito Laboral pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Pós Graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Escola da Magistratura Trabalhista da Paraíba (ESMAT 13) e em Processo Civil pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Advogada. E-mail: «[email protected]». Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5477629799162848>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado ao Professor da disciplina de História do Direito Português, do Curso de Mestrado com Menção em Direito Laboral, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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