Todos os institutos do Direito Civil vêm perdendo a estrutura abstrata e generalizante para, aos poucos, substituí-las por disciplinas legislativas cada vez mais concretas (1). Com o intervencionismo estatal consagrado pela Constituição de 1988, institucionaliza-se a interferência do Estado nas relações contratuais, "definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e informal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem" (2).
Nessa nova estrutura, o contrato, típico instituto do Direito Privado, vem sofrendo uma série de alterações conceituais e a antiga visão de autonomia plena da vontade perde espaço para uma elaboração mais voltada para a realidade social dos envolvidos na relação contratual. Aqui, segundo aponta a melhor doutrina italiana, percebe-se que não se pode mais falar em Princípio da Autonomia da Vontade mas em Autonomia Privada.
Como se sabe, e tal fato constitui uma realidade social, dificilmente a parte consegue manifestar de forma plena e inequívoca a sua vontade no momento negocial. Esse elemento tão raro e inerente à própria dignidade da pessoa humana perdeu o papel orientador que tinha no passado eis que vivemos sob a égide do "Impérios dos Contratos-Modelo".
Sob esta ótica, muito se fala, no âmbito do Direito Civil, na socialização dos velhos conceitos herdados do Direito Romano, o que leva a um conflito na mente dos estudiosos da ciência jurídica, levando à conclusões erradas quanto às transformações no seu âmbito privado (3).
O contrato, cerne principal da relações privadas, como destacam vários doutrinadores, não poderia ficar alheio à tal fenômeno de evolução. Como bem observa Caio Mário da Silva Pereira, sendo o contrato conceito intimamente relacionado à vontade humana e suscetível de influência pelas transformações pelas quais passam os interesses da sociedade, não poderia ficar alheio às modificações sociais.
O nobre doutrinador menciona que várias são as facetas de evolução social, podendo-se falar em evolução etimológica, em evolução biológica, em evolução lingüística, em evolução antropológica e, claro, em evolução do contrato, uma "transformação temporal ou espacial " pela qual passa o instituto. (4)
Lembramos a importância do instituto "contrato" para o Direito Privado. No nosso caso, interessante auferir que vários livros do Código Civil em vigor, senão todos, são de vital importância para o instituto em análise.
Sendo o contrato negócio jurídico, não se pode olvidar a importância da Parte Geral do Novo Código Civil para a existência e validade dos pactos celebrados. Vital o estudo dos elementos essenciais, acidentais e naturais do negócio jurídico, eis que também são os esses elementos formadores e orientadores do contrato. Os defeitos ou vícios do negócio jurídico são de grande valia à matéria contratual, já que geram a anulabilidade ou nulidade do pacto em diversas situações. As situações em que se tem a nulidade e anulabilidade do negócio jurídico são plenamente aplicáveis aos contratos, hipóteses em que se tem a extinção dos contratos por ineficácia contratual.
O capítulo do Código Civil que trata da Teoria Geral das Obrigações também é de grande importância para a concepção dos contratos, já que os mesmos constituem a principal fonte do direito obrigacional. No contrato se tem uma relação jurídica transitória entre credor e devedor, várias obrigações de dar, fazer ou não fazer, solidariedade, obrigações divisíveis e indivisíveis, obrigações singulares e plurais. Os contratos têm extinção normal pelo cumprimento, pelo pagamento direto, mas também por consignação em pagamento, imputação, sub-rogação, dação em pagamento, novação, compensação, confusão e remissão de dívidas.
Tem-se também no Código Civil um capítulo que trata da Teoria Geral dos Contratos, onde se propõe nova concepção do instituto, de acordo com o Princípio da Socialidade concebido pela nova codificação e muitas vezes mencionado pelo seu principal idealizador, que dispensa apresentações. Aqui, a função social do contrato e a boa-fé objetiva são concebidos como verdadeiros princípios orientadores da matéria contratual.
Na parte em que se estuda os contratos em espécie, o aplicador da norma terá à sua disposição os ditames naturais de cada instituto negocial. O Novo Código Civil inova trazendo outros contratos com institutos típicos, o que não é objeto central do nosso estudo, mas que merece realce. O jurista, desse modo, deve estar inteirado das regras previstas na codificação privada, aplicáveis a cada figura contratual, mas sem perder de vista também as leis especiais, caso, por exemplo, da Lei de Locação (Lei nº 8.245/91), da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), de grande valia para a figura jurídica em questão.
Sem prejuízo de outras leis especiais, percebe-se que quase todo o Código Civil está dedicado aos negócios jurídicos e aos contratos, lembrando também que mesmo os livros de Direito de Família e Direito das Sucessões também são relacionados com o instituto. Lembramos que muitos consideram o casamento como sendo um contrato "sui generis", e o testamento, verdadeiro negócio jurídico unilateral.
Na realidade, o Novo Código Civil, em vários dos seus artigos, concebe de forma plena a conscientização normativa da alteração dos velhos institutos do Direito Civil, exprimindo a função social do contrato como fonte necessária para a harmonização dos interesses privativos dos contratantes com os interesses de toda a coletividade.
Percebe-se, em todo o Direito Privado, a compatibilização do princípio da liberdade com o da igualdade, a busca da expansão da personalidade individual de forma igualitária. Há a busca do desenvolvimento da conjunto da sociedade, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade individual.
Em sua excelente obra traduzida para o português "Fundamentos do Direito Privado", o doutrinador Ricardo Luis Lorenzetti aponta todas as alterações pelas quais vêm passando os principais institutos do Direito Civil e Direito Privado. Critica o mesmo o chamado "big bang" legislativo demonstrando o surgimento de inúmeros microssistemas jurídicos. Procura Lorenzetti também afastar o pessimismo exagerado que circunda os institutos civis, principalmente o contrato: a concepção da chamada "crise dos contratos" (5)
Colocando a pessoa no centro do ordenamento jurídico, o mestre argentino procura uma nova concepção de contrato, de acordo com as principais alterações sociais sentidas nos últimos séculos. Lembra que "a ordem jurídica atual não deixa em mãos dos particulares a faculdade de criar ordenamentos contratuais, equiparáveis ao jurídico, sem um interventor". (6) Para tanto aponta a necessidade do intervencionismo estatal, do dirigismo estatal, com a concepção do princípio da autonomia privada. Chega a afirmar que "o Estado requer um Direito Privado, não um direito dos particulares. Trata-se de evitar que a autonomia privada imponha suas valorações particulares à sociedade; impedir-lhe que invada territórios socialmente sensíveis. Particularmente, trata-se de evitar a imposição a um grupo, de valores individuais que lhe são alheios. Aqui faz seu ingresso a ordem pública de coordenação, de direção." (7)
A necessidade da concepção de um direito social também em matéria contratual tornou-se crescente após a emergência dos Direitos da Personalidade, crescente principalmente após a Segunda Revolução Industrial e que trouxe uma nova maneira de negociar, novos elementos subjetivos, em posições díspares no momento contratual.
Sob o enfoque social, tal realidade tem origem, segundo as palavras Fernando Noronha, na relação entre direito e sociedade, que constitui uma "relação de interdependência, com dois atributos: é mútua e assimétrica. É interdependência, porque os acontecimentos registrados numa das esferas produzirão efeitos também na outra; é interdependência mútua, porque cada uma das esferas depende da outra, embora a dependência do direito em relação `a sociedade seja bem maior do que a desta em relação ao primeiro; é uma relação de interdependência assimétrica, porque as partes não dependem uma da outra em medida igual". (8)
Instituto também presente no Direito Romano (9), não resta dúvidas que poucos conceitos evoluíram tanto quanto o contrato. Tal evolução foi objeto de um estudo clássico de San Thiago Dantas, para quem a doutrina contratual representa o "termo de uma evolução, através da qual foram sendo eliminadas normas e restrições sem fundamento racional, ao mesmo tempo e que se criavam princípios flexíveis, capazes de veicular as imposições do interesse público, sem quebra do sistema" (10).
Como já foi dito, atualmente, está em voga no Direito Comparado, e mesmo entre nós, afirmar sobre a "crise dos contratos", chegando Savatier a profetizar que o contrato tende a desaparecer, surgindo outro instituto em seu lugar.
O Professor Titular de Direito Comercial da Universidade de São Paulo, Luiz Gastão Paes de Barros Leães, em prefácio da primeira edição de "Contratos Internacionais do Comércio", de Irineu Strenger, comenta tal crise, ao elucidar que: "há alguns anos, a decadência do Direito Contratual é apregoada num tom fúnebre, que anuncia iminente desenlace. Há inclusive quem já tenha lavrado a sua certidão de óbito. Grant Gilmore, em 1.974, publicou um livro com título provocador – The Death of Contract (Columbus, Ohio) – onde assinalou a ação demolidora dos novos tempos no edifício conceitual do contrato. O fenômeno da padronização das transações, decorrente de uma economia de mass production, teria subvertido inteiramente o princípio da liberdade contratual, transformando o ‘contrato’ numa norma unilateral imposta pela empresa situada numa posição dominante. Teria ocorrido assim um retorno ao status". (11)
Sobre tal profetização Fernando Noronha comenta que "para Gilmore, professor da Yale Law School, ‘contract is being reabsort into the mainstream of "tor"’: ‘A teoria clássica do contrato poderia bem ser descrita como uma tentativa para instituir um enclave dentro do domínio geral da responsabilidade civil (tort). Os diques foram erguidos para proteger o enclave, está bastante claro, têm vindo a derrocar a uma velocidade cada vez mais rápida". (12)
Na realidade, "crise" pode significar alteração na estrutura – e é realmente isto que entendemos estar ocorrendo quanto ao tema –, uma convulsiva transformação, uma renovação dos pressupostos e princípios da Teoria Geral dos Contratos, que tem por função redimensionar seus limites, e não extingui-los. Entendemos que o contrato não está em crise, mas sim em seu apogeu como instituto emergente e central do Direito Privado. Isso justifica porque o contrato é um dos primeiros temas a ser discutido na Parte Especial da Nova Codificação.
Conforme já defendemos, uma das principais alterações em matéria contratual se refere à autonomia da vontade das partes na avença. Discute-se muito atualmente, a possibilidade da revisão do contrato, a liberdade de extinguir o pacto e de se decidir a conclusão da relação entre as partes.
Não se pode mais aceitar o contrato com sua estrutura clássica, concebido sob a égide do "pacta sunt servanda" puro e simples, com a impossibilidade da revisão das cláusulas. O Direito do Consumidor trouxe inovações nesta matéria, inovações que constam agora no Novo Código Civil, como a proteção do aderente prevista nos artigos 423 e 434 da nova codificação, o que pode gerar a nulidade absoluta de cláusulas abusivas, diminuindo a amplitude da Força Obrigatória das Convenções.
Aqui, lembramos as palavras de Atílio Aníbal Alterini, emergente autor argentino que alerta ao fato de não estarmos vivenciando a chamada "crise dos contrato", mas uma modificação nas suas estruturas principais:
"Ahora bien. ¿Está en crisis el contrato?. Se dice: ‘El contrato desaparece. Perece. Outra cosa se coloca en su lugar. (Savatier). Se agrega: El contrato está en crise.
Crisis puede significar cambio. En realidad, ‘lo que a veces se denomina crisis del contrato – afrima Larroumet – no es nada más que una crisis de la autonomia de la voluntad’, o sea, del "derecho de los contratantes de determinar como lo entendian su relacion contractual" (Weill- Terré). No se trata de declinatión o de crepúsculo del contrato, sino ‘de transformación y de renovación’ (Josserand)" (13)
Também repudiamos o conceito de "crise de contratos", conforme construído pelo Direito Comparado, acreditando em um novo conceito emergente, dentro da nova realidade do Direito Social. Acreditamos nas antigas palavras de Manual Inácio Carvalho de Mendonça, para quem "os contratos hão se ser sempre a fonte mais fecunda, mais comum e mais natural dos direitos de crédito". (14)
Não se pode falar em extinção do contrato, mas no renascimento de um novo instituto, como uma verdadeira "Fênix" que surge das cinzas. Importante revolução atingiu também os direitos pessoais puros e as relações privadas, devendo tais institutos ser interpretados de acordo com o sistemática lógica do meio social.
Somos adeptos de uma posição otimista na análise do Direito Privado, acreditando na emergência de novos institutos, renovando todo o Direito, afastando-nos dos cientistas que afirmam estar ocorrendo uma verdadeira crise do Direito Privado.
NOTAS
- Nesse sentido, Tepedino, Gustavo. "As relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual". Rio de Janeiro: Renovar, 2001, In: Temas de Direito Civil.
- Tepedino, ob cit., p. 204.
- Sobre o tema, interessante notar os comentários do Professor Caio Mário da Silva Pereira, na introdução da sua recente obra Direito Civil – Alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, entre as páginas 1 e 15.
- Direito Civil. Alguns Aspectos da sua Evolução. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, p. 226.
- Hoje se fala em "crise" de todos os institutos do Direito Privado: "crise da Parte Geral do Direito Civil" (cf. Lorenzetti. Ob. cit. p. 60 a 63), "crise da família" ou "crise do Direito de Família", "crise do contrato", conforme veremos, e assim suscessivamente.
- Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 540.
- Ob. cit. p. 540.
- O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, , p. 26.
- "Sentiu-se, entretanto, na sociedade romana, cuja vida se tornou cada vez mais complexa com o surgimento de maior pluralidade de negócios, a necessidade de dar uma certa materialidade aoso contratos. E surgiram, então, as quatro modalidades mencionadas por Gaius. Primeiro, os contratos r, como uma espécie de contrato real, que se perfazia mediante a entrega de uma coisa; contrato litteris, que se completavam pela inscrição no codex do devedor; contrato verbis, que se realizavam mediante a troca de palavras sacramentais, dos quais o mais importante era a stipulatio. Somente mais tarde veio o contrato consensu, cujo nascimento foi lento e complexo, a que me referirei no segmento seguinte. Nem por isto perdeu sentido a afirmativa de Gaius: as obrigações ora nascem de um contrato ora do delito (vel ex contractu nascitur, vel ex delicto – Institutiones Commentarius, Vol. III, nº 88)" (Silva Pereira, Caio Mário Da,. Direito Civil – Alguns aspectos de sua evolução, Editora Forense, 2.001, Rio de Janeiro, p. 228)
- Evolução contemporânea do Direito Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais. RT, vol 199, pág. 144.
- Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: Editora LTR, 3ª ed., p. 17.
- O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p. 1.
- Vallespinos, Carlos Gustavo (Org.). Contratos. Presupuestos. Córdoba: Editora Advocatus, Sala de Derecho Civil, Colégio de Abogados de Córdoba,, p. 12 .
- "Contratos no Direito Brasileiro". Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 4ª Edição, 1957, p. 7.