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Sociedade de cônjuges e NCC:

ato jurídico perfeito?

22/09/2003 às 00:00
Leia nesta página:

1.O Novo Código Civil

O Novo Código Civil (NCC) proíbe, em seu artigo 977, que sociedades sejam formadas por cônjuges casados em regime de comunhão universal de bens, assim como aqueles casados sob o regime de separação obrigatória.

Para sanar esta deficiência, o artigo 1.639, parágrafo 2º do NCC prevê a alteração do regime de bens sob o qual o casal encontra-se casado, anteriormente proibida. Assim, aqueles casados em comunhão universal ou separação universal de bens, podem alterar o regime para comunhão parcial, preenchendo, desta forma, os requisitos da lei.

Há que se examinar, porém, alguns dados antes de determinarmos a necessidade de tal mudança, que influencia muitos outros pontos da vida conjugal, e verificar se essa é a melhor (ou única) saída oferecida pelo legislador.

O NCC é diploma legal absolutamente recente (está em vigor há seis meses, tempo insuficiente para sabermos o rumo que as decisões dos tribunais, e as opiniões dos mais renomados juristas seguirão. Ressalte-se que o primeiro Código Civil de 1916 comentado foi elaborado por Clóvis Bevilacqua apenas cinco anos após sua entrada em vigor. Destarte, convém não nos precipitarmos, tampouco exagerarmos a tomada de decisões antes da comunidade explicitar o que pretende e como pretende seguir as alterações impostas pelo novo código.


2.A JUCESP

Isso é bem claro pelo posicionamento atual da Junta Comercial do Estado de São Paulo, a JUCESP, que diz que não serão examinados pontos como o atual regime de bens de uma sociedade, quando de seu registro, ou do registro de alterações de seu contrato social. Para a Junta, agora não lhes importa saber a modalidade do regime de bens. Segundo orientação do presidente Dr. Armando Rovai, a Junta examina apenas pontos formais, não requisitando que a sociedade esteja de acordo com esta previsão. O que pode acontecer, no entanto, é a Junta ter sua situação como irregular, (mas não ilícita), o que implicaria na ilimitação da responsabilidade entre os sócios de dita sociedade.

A Junta elaborou um enunciado, inclusive, para explicitar esta posição. Diz o enunciado 29 que "no preâmbulo do instrumento não será exigido o regime de bens na qualificação dos sócios". Desta forma, ao menos por ora, a alteração do código civil não traria qualquer implicação às sociedades pré-existentes, por terem sido criadas sob a ótica da lei anterior, quando não havia qualquer proibição ou restrição na ordem da escolha do regime de bens dos cônjuges.

Parece bastante singelo entender como devemos proceder, mas na verdade ainda temos várias dúvidas, quanto à interpretação das normas modificadas. Durante o estudo entre pessoas de renome, e a apresentação de diversos cursos, seminários e congressos a respeito do tema, não há qualquer pacifismo. Esbarramos, inclusive, em um dos corolários do direito nacional (e quem sabe talvez até internacional), qual seja o ato jurídico perfeito.


3.O ato jurídico perfeito e sua interpretação

Há diversas linhas de interpretação, e ressaltamos as duas mais importantes e contraditórias entre si.

De um lado temos a corrente que acredita e defende a retroatividade da lei civil, quando o interesse a ser tutelado é social, coletivo, em detrimento do interesse particular, individual. Assim disse o jurista Sílvio Rodrigues [1], e neste caso, "devem ser preservadas tão-somente as situações em que o interesse individual prevalece", formando-se, pois, o ato jurídico perfeito, instituição constitucional. De outro lado [2], há aqueles que afirmam que a lei civil é irretroativa, não podendo prejudicar o ato jurídico perfeito, ou seja, "as situações concluídas sob a égide de uma lei civil, mesmo que produzam efeitos futuros, constituem atos jurídicos perfeitos". As partes possuem, segundo esta teoria, direito adquirido à aplicação da norma vigente quando de sua formação, não podendo, nem mesmo o Estado, pretender retroagir of efeitos de uma nova lei para atingir situações definitivamente constituídas por lei anterior.

Portanto, há de ser encontrada uma resposta básica para a questão que pode determinar todo o procedimento a ser seguido em relação às alterações trazidas pelo Novo Código Civil: o que foi praticado em relações negociais anteriormente à entrada em vigor da nova lei civil deve ser regido por qual lei? A lei anterior protege atos dantes praticados, não os submetendo ao NCC?

Pela letra da lei, ou do Novo Código Civil, "as associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência; igual prazo é concedido aos empresários [3]". O artigo 2.035, parágrafo único diz que "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".

Faz-se mister interpretarmos os dois dispositivos acima mencionados (artigos 2.031 e 2.035, parágrafo único do NCC), para entender a letra da lei, a intenção do legislador, e sua praticidade no dia-a-dia das alterações contratuais de uma sociedade.

O artigo 2.031 diz que os atos constitutivos e modificativos deverão ser adaptados aos dispositivos do novo código. Não há, porém, qualquer determinação de uma sanção pelo descumprimento do prazo, mas é certo que dificuldades para o funcionamento das sociedades ocorrerão, especialmente junto aos órgãos públicos, sejam eles da administração direta ou indireta. Aqui se encaixa a JUCESP, que a princípio disse não haver qualquer burocracia ou problema de ordem maior, caso as alterações não sigam exatamente os ditames da nova lei.

O artigo 2.035, parágrafo único, por sua vez, reafirma a necessidade de observância da legislação ora vigente. Miguel Reale disse certa vez que "o respeito aos atos praticados conforme estabelecido pela legislação então vigente é regra básica do ordenamento jurídico; seus efeitos devem seguir a nova ordem vigente; ressalva-se a prática que atenda à autonomia da vontade das partes, mas condicionada ao respeito à ‘ordem pública [4]’".

O artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal, por sua vez, afirma que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Como se vê, há aparente contrariedade entre uma lei federal e uma lei constitucional, prevalecendo, a princípio, a última em detrimento da primeira (em decorrência da hierarquia das leis). Sabe-se que uma lei federal não pode ser contrária a preceitos de ordem constitucional. Como proceder então?

Se considerarmos taxativamente que uma lei nova não pode revogar (ab-rogar ou derrogar) uma lei anterior, não haveria qualquer razão para o legislador avançar juntamente às mudanças sociais e criar novas normas. As leis novas são supostamente superiores e melhores (ou mais atuais) que as leis antigas e sua razão de ser é esta. Invariavelmente, uma lei mais recente tratará temas não antes mencionados, até por falta de previsão de que aconteçam na vida prática. Diante desse ponto de vista, não haveria como negar validade a normas mais recentes, desde que compatíveis com outras normas e não contrárias à moral e aos bons costumes (também preceitos da Constituição Federal), por sua inegável contribuição social.

O NCC, aliás, prima por ser o primeiro código do ocidente a explicitar a função social dos contratos. Outros países, como a Itália, a Alemanha, a França, implicitamente sugeriam o respeito à função social dos contratos, mas o nosso código estipula, expressamente [5], o respeito a este princípio. Assim, mais que verificar apenas a letra de um contrato, ou a manifestação de vontade das partes, ou ainda, a vontade do legislador, há que se verificar a real inserção social de um contrato na sociedade para qual ele foi criado [6] (aqui falamos em sociedade lato sensu, a comunidade, e a sociedade stricto sensu, as partes envolvidas no contrato).

Tanto a norma constitucional como a norma federal são cogentes, ou de ordem pública, o que lhes implica valor absoluto, devendo ser seguidas e cumpridas em sua integralidade por todos, salvo exceções previstas legalmente. O que deve ser feito aqui é sopesar o que é um ato jurídico perfeito e as implicações para o cumprimento do ato no futuro, ainda que decorrente de lei anterior.

Não se pode negar a modernidade e atualidade do novo código. [7] O que se pretende com sua utilização é esclarecer pontos anteriormente obscuros, ou mesmo omissos. Assim, não há que se falar em discordância entre as duas normas, a Constituição Federal e o NCC, posto que uma complementa a outra. O NCC não é, aparentemente, contraditório ou controverso às matérias de cunho geral tratadas na Constituição.

Parece-me, então, indiscutível o caráter de norma de ordem pública, ou seja, o NCC deve ser cumprido em sua integralidade, por todas as partes envolvidas, inclusive terceiros que possam ser beneficiados/prejudicados por atos/fatos jurídicos. Na prática, o que isso quer dizer? Que as sociedades devem sim se adequar às normas atuais, sem esquecer, e primando por, os princípios da boa-fé, probidade e, principalmente, a função social do contrato.

Não me parece possível que a sociedade adapte-se "um pouco" a "algumas normas" e simplesmente ignore outras. A segurança jurídica pode ser altamente comprometida, caso isso venha a ocorrer. Não pode uma sociedade registrar na Junta Comercial de seu Estado a alteração contratual para seguir à risca as determinações do NCC quanto às modificações necessárias (inclusão de termos como "administrador", "balanço patrimonial", "balanço de resultado" e necessidade de elaboração de "inventário"), e negar valor a outras (como a restrição de cônjuges casados sob o regime de comunhão universal ou separação obrigatória de bens serem sócios). Se andou bem ou mal o legislador, isso é outra questão, que não pode ser discutida ao mesmo tempo em que se pretende manter a segurança jurídica das relações contratuais. Ou uma norma é cogente, e mandatórias se fazem as alterações propostas, ou não é cogente, é dispositiva.

O fato de a JUCESP informar que não examinará a questão dos cônjuges quando do registro de documentos, para dizê-la ilícita ou irregular, parece-me absolutamente perigoso, e um tanto quanto irreal. Essa pode ser a primeira direção a ser seguida, mas como combinar uma norma em parte cogente e outra dispositiva, na prática, na realidade das sociedades? Não me parece possível, muito menos recomendável. Não há como adivinhar o que vai acontecer com os documentos recebidos pela Junta em um mês, ou em seis meses, mas há que se esclarecer o que deve ser feito e, preferencialmente, que se faça apenas uma vez, e da maneira mais acertada.

Após toda a elucidação acerca do ato jurídico perfeito, sumarizo da seguinte forma: a constituição de uma sociedade cujos sócios são casados no regime de comunhão universal de bens (ou de separação obrigatória) trata-se de ato jurídico perfeito. Os efeitos de tal ato, por sua vez, ou melhor, os eventos futuros que dela decorram, não podem ser considerados perfeitos, justamente pelo fato de serem projetados no futuro. Não se pode argumentar que um ato que iniciou e terminou em determinado instante (o ato exclusivo da constituição da sociedade) seja considerado perfeito, se tantos outros decorrem dele, mas com execução e aperfeiçoamento tão imprevisíveis e tão "distantes".

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Pela lei, portanto, há que se cumprir todas as normas nela expostas, inclusive a alteração do regime de bens. Repito, se isso foi uma escolha sábia, prudente, necessária ou acertada, não vem ao caso; se uma ADIN vier a existir, confrontando o NCC e a CF, e vier a julgar a restrição quanto ao regime de bens dos sócios inconstitucional, tampouco vem ao caso; e mais, se isso facilita ou dificulta fraudes, não há que ser discutido aqui. O que importa é agir de acordo com a norma outrora em vigor. O tempo dirá se o legislador manifestou sua vontade como desejava (quem sabe se explicitou mal o que pretendia?), ou se a lei deve, novamente, ser alterada.

Ressalte-se, por fim, mas não com menor importância, a posição da Junta Comercial do Estado de São Paulo, qual seja a de aguardar-se uns meses mais, a fim de verificarmos as possíveis soluções encontradas na prática para cada questão, casuisticamente. A informação patente na JUCESP é no sentido de esperarmos mais uns meses e "ignorar" por completo a letra da lei, que requer modificações. Os assessores da Junta nos aconselham a sequer mencionar nos atos constitutivos ou de alteração das sociedades o regime de bens sobre o qual estão casados os cônjuges, informando, na qualificação dos mesmos, apenas o termo "casados".


Conclusão

:

Apesar da letra da lei ser clara, e nós aprofundarmos o estudo até analisar a questão do ato jurídico perfeito ou não, o órgão responsável, na prática, pelo arquivamento de atos de constituição e alteração de sociedades, dentre outros, nos aconselha aguardarmos um período maior para podermos, sabendo as diretrizes que vão tomar o governo, o Judiciário e a própria Junta Comercial, realizar as modificações outrora em questão.


Notas

01. Cf. Sílvio Rodrigues, Direito Civil, Volume 1, Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 26 e 27.

02. Cf. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Curso de Direito Civil, Volume I, Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 78 e 79.

03. Artigo 2.031 do Novo Código Civil.

04. Cf. João Augusto da Palma, Novo Código Civil e Comercial Anotado e Comparado (e o que se aplica ao trabalho), LTr, 2ª ed., p. 473.

05. Art. 421 do Novo Código Civil: "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

06. Outros princípios resguardados expressamente pelo Novo Código Civil envolvem a boa-fé e probidade (artigo 422). O ilustre jurista Miguel Reale vai ainda mais além. De acordo com suas inúmeras explicitações a respeito do NCC e dos reflexos causados por sua entrada em vigor, estão os princípios da socialidade, eticidade e operabilidade.

07. É claro que, como todas as normas de um ordenamento jurídico, devido às velozes mudanças dos comportamentos sociais, uma lei nova já é dita "velha", ou desatualizada quando de sua aprovação, devido aos demorados trâmites tanto no Senado como na Câmara dos Deputados, e mais ainda, quando de sua entrada em vigor. Diferente não é com o código em questão, mas não se pode negar o valor que atribuiu às nossas leis atuais, especialmente na parte do direito de empresa, criando, inclusive, distintas nomenclaturas e conceitos. Há, inclusive, três projetos de lei tramitando na Câmara dos Deputados para rever o tão recente código civil, que já entrou em vigor com alterações propostas. Uma dessas, que nos interessa aqui é, se não a eliminação da restrição quanto aos cônjuges serem sócios em uma sociedade, o esclarecimento de quando aplica-se tal restrição, e como lidar com ela (PL no. 6960/02, 7160/02 e 7321/02).

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Sobre a autora
Renata Mohriak

advogada no escritório Arochi, Marroquín & Lindner S/C na Cidade do México (México), mestre (LL.M. – Master of Laws) em Propriedade Intelectual e especializada em Management pela George Washington University (EUA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOHRIAK, Renata. Sociedade de cônjuges e NCC:: ato jurídico perfeito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 81, 22 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4391. Acesso em: 22 nov. 2024.

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