A aprendizagem constitui instituto jurídico ímpar para o resguardo da dignidade da pessoa humana, sobretudo porque propicia o gozo do direito fundamental à profissionalização, indo ao encontro dos princípios constitucionais da prioridade absoluta e da proteção integral (artigo 1º, III, e 227 da CF/88).
Nessa senda, a doutrina da proteção integral de crianças, adolescentes e jovens visa o resguardo do ser humano, sendo a aprendizagem instituto que colabora com a erradicação do trabalho precoce, garantindo o preparo e o acesso ao mercado de trabalho de forma protegida.
Acerca do novo modelo de proteção à criança, ao adolescente e ao jovem na Constituição Federal de 1988, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca leciona que[i]:
A Constituição de 1988 revolucionou o tratamento dos brasileiros em idade infantil ou juvenil. Absorveu a doutrina internacional da proteção integral das crianças e adolescentes. O art. 227 da Carta de 1988 fixa como prioritária a ação conjunta do Estado e da sociedade, a fim de garantir cidadania às crianças e aos adolescentes.
A doutrina em análise os concebe como cidadãos plenos, sujeitos de direitos e obrigações a quem o Estado, a família e a sociedade devem atender prioritariamente. Criaram-se os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais, justamente para implementar a ação paritária entre o Estado e a sociedade na fixação das políticas de atendimento aos pequenos cidadãos.
Abandonou-se, portanto, a visão meramente assistencialista que orientava os Códigos de Menores de 1927 e de 1979. Essa legislação contemplava aspectos inerentes ao atendimento de crianças e adolescentes carentes ou infratores, estabelecendo política de assistência social ou de repressão em entidades correcionais. Mas o conceito de cidadania que se quer implementar é o de que esses brasileiros, em razão de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, devem ser atendidos, prioritariamente, em suas necessidades também peculiares de cidadãos.
Não se olvide, nesse contexto, que a aprendizagem é permitida pela Constituição Federal de 1988 a partir dos 14 anos, como exceção à proscrição do labor para menores de 16 anos (7º, XXXIII, da CF/88), previsão que está em consonância com o disposto nas Convenções nº138 e 182 e nas Recomendações nº146 e 190 da Organização Internacional do Trabalho, além das previsões da Convenção Sobre os Direitos da Criança de 1989 e da Declaração sobre os Direitos da Criança de 1959.
Jane Araújo dos Santos Vilani, nessa toada, esclarece que[ii]:
Foi apenas 10 anos após a promulgação da Carta Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 20, 15/12/1998, que a idade mínima para o trabalho comum fora elevada para 16 anos, com o patamar etário de 14 anos para o início da aprendizagem. Surgiu a Constituição Cidadã, prevendo a idade mínima de 14 anos para o início do labor. Assim, a norma constitucional proíbe qualquer emprego ou trabalho abaixo dos 16 anos, exceção feita apenas ao emprego sob o regime de aprendizagem, autorizado a partir dos 14 anos. Abaixo de 18 anos, o trabalho é proibido, sem exceção, se for perigoso, insalubre, penoso, noturno ou prejudicial ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social.
A aprendizagem, nesse contexto, consiste em contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado não superior a dois anos, em que o empregador se compromete a assegurar ao aprendiz maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz se compromete a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação, consoante dispõem o artigo 428 da Consolidação das Leis do Trabalho e o artigo 3º do Decreto nº 5.598/2005.
O artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho, por sua vez, regulamentando a previsão constitucional, obriga que os estabelecimentos de qualquer natureza empreguem e matriculem nos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes entre 5% e 15% dos trabalhadores existentes, cujas funções demandem formação profissional.
Nessa esteira, restam desobrigadas da mencionada contratação somente as microempresas e empresas de pequeno porte e as entidades sem fins lucrativos que tenham por objetivo a educação profissional.
Ressalta-se, ademais, que, em que pese a aprendizagem, como ponderado, ter importância nítida na busca pela erradicação do trabalho precoce, serve como instituto apto, igualmente, para concretização do direito à profissionalização do jovem e da pessoa com deficiência de qualquer idade, sobretudo porque a idade máxima da aprendizagem é de 24(vinte e quatro) anos, salvo no caso do aprendiz pessoa com deficiência, para o qual sequer há limite etário e nem mesmo da regra do prazo contratual máximo de 2(dois) anos.
Nessa senda, consoante disciplina o Decreto nº5598/2005, em seu artigo 11, as vagas de aprendizagem devem ser destinadas, prioritariamente, aos adolescentes entre quatorze dezoito anos, salvo, dentre outras exceções, quando envolvida atividades insalubre, penosas e perigosas, assim como para o exercício de determinada atividade seja exigida autorização, licença, ou seja ela vedada para menores de 18 anos (por exemplo, as elencadas na Lista TIP das Piores Formas de Trabalho Infantil), hipóteses em que serão destinadas aos maiores de idade, até o limite de idade permitido(24 anos ou nenhum no caso das pessoas com deficiência).
O mesmo Ricardo Tadeu Marques da Fonseca elucida que[iii]:
Assinale-se que as pequenas e microempresas não necessitam cumprir a cota de aprendizes, seja porque a Lei do Simples as exclui desse mister, seja porque o art. 14 do Decreto nº 5.598/05 prevê expressamente. Os aprendizes adultos também, segundo parece, não estão obrigados a frequentar escola de nível médio ou superior para pactuarem Contrato de Aprendizagem. Isso se dá porque a Constituição apenas torna obrigatório o ensino fundamental e propugna pela progressiva obrigatoriedade do ensino médio, mas a lei ainda não a impõe.
Logo, os aprendizes adultos, aqueles de 18 a 24 anos, podem ser contratados para reciclagem profissional, em atividades insalubres, perigosas, penosas e noturnas. Haverá, porém, de ser priorizada a contratação de adolescentes, tanto no aspecto da precedência como no numérico, nos termos do que preconiza o art. 11 do Decreto Regulamentar.
Nesse sentido, por exemplo, a mesma exegese deve ser aplicada aos casos de serviço de vigilância, atividade elencada na Classificação Brasileira de Ocupações com uma das que demandam formação profissional, visto que, para seu exercício, é exigida a formação específica em curso de vigilante, bem como, dentre outros requisitos, possuir no mínimo 21(vinte e um) anos (Lei nº7102/83).
Frise-se, nesse passo, que o fato de ser atividade proibida para menores de 18(dezoito) anos, ou mesmo de 21(vinte e um) anos, não constitui, portanto, justificativa para sua exclusão do cálculo da cota, pois não pode ser afastada aprioristicamente da possibilidade de contratação para maiores de 21(vinte e um) anos e menores de 24(vinte e quatro) anos, ou mesmo de pessoa com deficiência maior de 21(vinte e um) anos.
Não fosse só isso, o Decreto nº 5598/2005 excepciona, no §1º do artigo 10, somente as funções que demandem habilitação profissional de nível técnico ou superior, ou as que caracterizem cargos de direção, gerência ou confiança, sendo que a regra geral de implementação da cota não deve suportar, nos casos de exceções ao seu cumprimento, interpretação ampliativa, sob pena de violação de direito fundamental.
Não se esqueça, ainda, que a implementação da aprendizagem constitui medida de responsabilidade social, tudo em homenagem à função social da empresa e à valorização do trabalho humano, o que contempla o preparo do ser humano para o labor.
A interpretação aqui defendida rende homenagem, também, ao disposto na Recomendação nº117 da OIT, na Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, no Pacto Mundial Sobre Emprego de 2009, também da OIT e na cláusula de solidariedade exposta no inciso I do artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
Portanto, o cumprimento da cota de contratação de aprendizes não pode ser descartado em atividades insalubres, penosas, perigosas, noturnas, ou, de qualquer forma, as vedadas aos menores de 18(dezoito) anos, visto que, embora exista a preferência para contratação de adolescentes, a própria ordem jurídica possibilita que a observância do percentual legal contemple os maiores de 18 anos até o limite de 24 anos, o qual inexiste para os aprendizes com deficiência.
Não é outro o escopo da Lei nº12852/2013(Estatuto da Juventude), a qual preceitua em seu artigo 14 que “o jovem tem direito à profissionalização, ao trabalho e à renda, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, adequadamente remunerado e com proteção social”, sendo que, consoante dispõem o caput do artigo 15 c/c o inciso V, a ação do poder público na efetivação do direito do jovem à profissionalização, ao trabalho e à renda contempla a “adoção de políticas públicas voltadas para a promoção do estágio, aprendizagem e trabalho para a juventude”.
Destarte, falaciosas as alegações de empresas que, mediante o suposto pretexto de proteção do adolescente ao não submetê-lo à aprendizagem em atividades proscritas pelo ordenamento, pretendem deixar de cumprir a ação afirmativa, visto que possível, nesses casos, a contratação de jovens até 24(vinte quatro) anos ou pessoas com deficiência de qualquer idade, garantindo-se o direito à profissionalização e a formação técnico-profissional metódica compatível.
REFERÊNCIAS
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. As formas de aprendizagem no brasil: questões emergentes. Revista do TST, Brasília, vol. 79, nº 1, p.97-114, jan/mar 2013
VILANI, Jane Araújo dos Santos. A questão do trabalho infantil: mitos e verdades. Inclusão Social, Brasília, v. 2, n. 1, p. 83-92, out. 2006/mar. 2007
NOTAS
[i] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. As formas de aprendizagem no brasil: questões emergentes. Revista do TST, Brasília, vol. 79, nº 1, jan/mar 2013, p. 98.
[ii] VILANI, Jane Araújo dos Santos. A questão do trabalho infantil: mitos e verdades. Inclusão Social, Brasília, v. 2, n. 1, p. 83-92, out. 2006/mar. 2007
[iii] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. As formas de aprendizagem no brasil: questões emergentes. Revista do TST, Brasília, vol. 79, nº 1, jan/mar 2013, p. 108.