No âmbito do contencioso administrativo-previdenciário não são incomuns os questionamentos sobre conclusões periciais que motivam o indeferimento de benefícios. Porém, é de se indagar se conclusões alcançadas pelas perícias médicas administrativas realizadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS podem ou não ser infirmadas ou desconsideradas, mesmo na esfera administrativa, quando impugnadas em sede recursal. Em outros termos, podem os órgãos julgadores do Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS desconsiderar as perícias médicas oficiais?
Em regra, o julgador não está adstrito a meios de prova predeterminados, nem há hierarquia entre eles, dada a adoção do princípio do livre convencimento motivado (art. 131 do CPC). Todavia, determinados meios de prova podem ser obstados porque desautorizados, pela legislação, em casos específicos (v.g., art. 401 do CPC) ou porque ilícitos, isto é, vedados em qualquer caso (v.g., interceptação telefônica clandestina). Há, ainda, casos em que determinado meio de prova é impositivo, a chamada “prova legal”, situação em que, na falta de tal prova, o fato jamais poderá ser tido por comprovado.[1]
Pois bem, o §6º do art. 53 do Regimento Interno do CRPS, atualmente constante do anexo da Portaria MPS nº 548/2011, dispõe que “Em se tratando de matéria médica deverá ser ouvida a Assessoria Técnico-Médica Especializada, prestada por servidor lotado na instância julgadora que, na qualidade de perito do colegiado, se pronunciará, de forma fundamentada e conclusiva, no âmbito de sua competência, hipótese em que será utilizado encaminhamento interno por meio de despacho”.
O dispositivo em questão estabelece a obrigatoriedade da espécie (meio) de prova, qual seja, a perícia médica, a ser realizada pela Assessoria Técnico-Médica Especializada. Contudo, não há que se confundir a compulsoriedade da produção de determinada prova com a obrigatoriedade da comprovação de determinado fato por um tipo específico de prova (prova legal). Aplica-se, aqui, o mesmo entendimento preconizado pelos processualistas civis, de que:
“Embora se saiba que a prova técnica costuma se revestir de notável importância para o deslinde da causa, o art. 436 [do CPC] honrou o princípio do livre convencimento motivado, determinando que o juiz não está adstrito ao laudo. Meio de prova que é, a perícia não se sobrepõe a outras provas, podendo o juiz valorá-la em consonância com os outros elementos constantes dos autos.”[2]
De fato, o art. 436 do CPC[3] aplica-se subsidiariamente no processo e julgamento dos recursos administrativo-previdenciários, forte no art. 72 do Regimento Interno do CRPS, porque compatível com a sistemática recursal administrativa.
Note-se ainda que, no âmbito do CRPS, peritos são os médicos integrantes da Assessoria Técnico-Médica Especializada. Ainda que eles sejam oriundos do Quadro de Pessoal do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, as funções de médico-perito do INSS e de assessor técnico-médico especializado do CRPS não se confundem. Somente a Assessoria Técnico-Médica Especializada atuará verdadeiramente como um auxiliar técnico-científico (perito) dos órgãos colegiados do CRPS. Os laudos e pareceres médicos emitidos pelos médicos peritos do INSS, destarte, não ostentam a mesma natureza pericial no âmbito do CRPS. Embora ainda dotados de presunção de legitimidade, porquanto atos administrativos, os documentos médicos produzidos pelos peritos do INSS perdem, na fase recursal administrativo-previdenciária, a qualidade de “prova pericial”. Vale dizer, o laudo/parecer técnico do INSS e o atestado/parecer emitido pelo médico assistente do segurado têm a mesma natureza jurídico-probatória, ainda que se revistam de diferentes graus de certeza quanto ao conteúdo (o documento do INSS é dotado, como dito, de presunção de legitimidade).
A atual suspensão[4] do §6º do art. 53 do Regimento Interno do CRPS em função da interrupção temporária das cessões de médicos do Quadro de Pessoal do INSS para o Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS[5] não altera essa categorização jurídica. Tampouco eventual solicitação de diligência ao INSS, tendente a esclarecer possíveis dúvidas e incongruências verificadas do cotejo entre o atestado particular e o parecer médico oficial, transformaria o médico perito do INSS responsável pelos esclarecimentos em perito a serviço do CRPS. Constituindo um mero adendo à manifestação inicial, os esclarecimentos complementares mantêm a mesma natureza jurídica do documento (médico) inicialmente produzido.
Por outro lado, a própria presunção de legitimidade[6] dos atos praticados pelos médicos peritos do INSS, característica dos atos administrativos em geral, não é absoluta. Tratando-se de mera presunção juris tantum de legitimidade, pode ser afastada à luz de outros elementos probatórios.
Assim, nada obsta que, no julgamento de um recurso administrativo-previdenciário, o CRPS não se atenha às conclusões dos laudos/pareceres emitidos pela sua Assessoria Técnico-Médica Especializada ou pelos Médicos Peritos do INSS e, eventualmente, até decida em sentido oposto ao de tais conclusões, valendo-se, para tanto, de outros elementos constantes dos autos, inclusive de atestado médico particular.
Obviamente que, seja para afastar as conclusões lançadas no laudo pericial da Assessoria Técnico-Médica Especializada, seja para infirmar o parecer médico produzido pelo INSS, o esforço argumentativo tende a ser maior, sendo mister a explicitação dos motivos para o afastamento. A fundamentação, como não poderia deixar de ser, constitui um requisito inafastável das decisões do CRPS (art. 52, §1º, IV, do RI/CRPS[7]).
É o que leciona Fábio Zambitte Ibrahim, verbis:
“No entanto, convém lembrar que o julgador administrativo não está sequer vinculado a laudo médico elaborado por assessor perito, desde que os Autos contenham outros elementos que formem sua convicção em sentido diverso. Neste sentido é expressa a Nota Técnica CGMBEN nº 177/06, afirmando, no item 8, que os médicos peritos não são os juízes da causa, mas, sim, os conselheiros, que, além dos laudos médicos, analisam todo o conteúdo processual e o acervo probante, para estabelecer o critério da instância no julgamento da questão.
Naturalmente, o princípio do livre convencimento motivado não significa arbítrio, devendo a decisão encontrar sólido fundamento do direito vigente, sob pena de nulidade. A decisão pode ser contrária ao apontado em parecer médico, mas o ônus argumentativo do julgador será muito maior. (...)”[8]
Porém, as revisões (administrativas) das decisões do CRPS, quando cabíveis, são realizadas pelo próprio CRPS, em suas diferentes instâncias.
Nesse passo, releva perquirir se cabe a interposição de recurso especial quando a decisão da Junta de Recursos estiver embasada em atestado médico particular, sendo este substancialmente divergente, no que importa para a aferição do direito à prestação previdenciária, dos laudos emitidos pela perícia médica do INSS e/ou pela Assessoria Técnico-Médica Especializada do CRPS.
O inciso V do parágrafo único do art. 16[9] e o inciso I do art. 18[10], ambos do Regimento Interno do CRPS, ao facultar e obstar, respectivamente, a interposição de recurso especial contra as decisões da Junta de Recursos, pressupõem que a decisão seja fundamentada no laudo/parecer médico emitido ou pelos Médicos Peritos do INSS, ou pela Assessoria Técnico-Médica da Junta de Recursos, ou em ambos. Ou seja, a divergência/convergência a que alude o Regimento Interno é aquela existente entre o documento médico oficial que embasa a decisão e outro documento médico oficial eventualmente constante dos autos. A menção a laudos do INSS e do CRPS parte do pressuposto que serão estes os únicos ou, quando menos, os principais documentos médicos confrontados, valendo-se a Junta de Recursos das conclusões extraídas desses documentos.
Ora, sendo a divergência entre laudos/pareceres médicos oficiais suficiente para viabilizar a interposição de recurso especial, com maior razão caberá o referido recurso quando a divergência se der entre o atestado médico particular e qualquer daqueles laudos/pareceres, desde que a decisão prestigie o documento particular.
Para que a matéria seja de alçada exclusiva das Juntas de Recursos, o alinhamento de que trata o inciso I do art. 18 do Regimento Interno do CRPS deve ser total, isto é, deve haver convergência entre os fundamentos da decisão e as conclusões lançadas nos pareceres/laudos emitidos tanto pela Assessoria Técnico-Médica da Junta de Recursos, caso existente, quanto pelos Médicos Peritos do INSS. Destoando os fundamentos da decisão destes documentos, ainda que parcialmente, não há que se falar em alçada exclusiva.
Portanto, embasando-se o acórdão em atestado médico particular, e havendo divergência entre este e quaisquer laudos ou pareceres emitidos pela Assessoria Técnico-Médica da Junta de Recursos ou pelos Médicos Peritos do INSS, caberá a interposição do recurso especial, a partir de uma interpretação teleológica do inciso V do parágrafo único do art. 16 e do inciso I do art. 18, ambos do RICRPS.
Portanto, conclui-se que é, sim, possível que, no julgamento de um recurso administrativo-previdenciário, o CRPS não se atenha às conclusões dos laudos/pareceres emitidos pela sua Assessoria Técnico-Médica Especializada ou pelos Médicos Peritos do INSS e, eventualmente, até decida em sentido oposto ao de tais conclusões, valendo-se, para tanto, de outros elementos constantes dos autos, inclusive de atestado médico particular. Todavia, deverão ser explicitados, na decisão, os motivos para o afastamento das conclusões lançadas no laudo pericial da Assessoria Técnico-Médica Especializada ou do parecer médico produzido pelo INSS. Nesse caso, estando o acórdão da Junta de Recursos embasado em atestado médico particular, e havendo divergência entre este e quaisquer laudos ou pareceres emitidos pela Assessoria Técnico-Médica ou pelos Médicos Peritos do INSS, caberá interposição do recurso especial.
Notas
[1] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. v. 1. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2003. p. 431-432.
[2] Idem, ibidem, p. 488.
[3] “Art. 436. O juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos.”
[4] PORTARIA MPS Nº 591, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2012 (DOU DE 14/12/2012):
“O MINISTRO DE ESTADO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 87 da Constituição, resolve:
Suspender o disposto no art. 53, § 6º da Portaria MPS/GM nº 548, de 13 de setembro de 2011, publicada na Seção 1 do DOU de 14/09/2011, que aprovou o Regimento Interno do Conselho de Recursos da Previdência Social, enquanto perdurar os efeitos da Portaria MPS/SE/Nº 1.474, de 7 de dezembro de 2012.”
[5] PORTARIA MPS/SE Nº 1.474, DE 07 DE DEZEMBRO DE 2012 (DOU de 10/12/2012):
“Art. 1º Ficam interrompidas, temporariamente, as cessões de Médicos do Quadro de Pessoal do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, efetivadas para o Conselho de Recursos da Previdência Social - CRPS, bem como aos demais órgãos da Previdência Social, até que se normalize a rotina das perícias médicas agendadas.”
[6] A presunção de legitimidade, como lembra Celso Antônio Bandeira de Mello, compreende a presunção de veracidade e de conformidade ao Direito (In: Curso de Direito Administrativo. 13. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 373).
[7] “Art. 52. As decisões das composições julgadoras serão lavradas pelo relator do processo, redigidas na forma de acórdão, deverão ser expressas em linguagem discursiva, simples, precisa e objetiva, evitando-se o uso de expressões vagas, de códigos, de siglas e de referências a instruções internas que dificultem a compreensão do julgamento.
§ 1º Deverão constar do acórdão:
(...)
IV - fundamentação, na qual serão avaliadas e resolvidas as questões de fato e de direito pertinentes à demanda, expondo-se as razões que formaram o convencimento do julgador, sendo vedada a exposição na forma de "considerandos";
(...)”
[8] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 523.
[9] “Art. 16. Compete às Câmaras de Julgamento julgar os Recursos Especiais interpostos contra as decisões proferidas pelas Juntas de Recursos.
Parágrafo único. O INSS poderá recorrer das decisões das Juntas de Recursos somente quando:
(...)
V - tiverem sido fundamentadas em laudos ou pareceres médicos divergentes emitidos pela Assessoria Técnico-Médica da Junta de Recursos e pelos Médicos peritos do INSS; e
(...)”
[10] “Art. 18. Constituem alçada exclusiva das Juntas de Recursos, não comportando recurso à instância superior, as seguintes decisões colegiadas:
I - fundamentada exclusivamente em matéria médica, quando os laudos ou pareceres emitidos pela Assessoria Técnico-Médica da Junta de Recursos e pelos Médicos Peritos do INSS apresentarem resultados convergentes; e
(...)”