1. Da Lei nº 10.684/2003
No último dia 30 de maio, o Governo Federal promulgou a Lei nº 10.684/2003, concedendo generosos prazos para o parcelamento de débitos junto à Fazenda Nacional e ao INSS. Os devedores do fisco Nacional e do INSS passaram a contar com a amortização de suas dívidas em até 180 meses e, ainda, com a anistia de 50% das respectivas multas.
Entretanto, para compensar a aparente "renúncia fiscal" decorrente do parcelamento e da anistia, o Governo majorou expressivamente o percentual da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de determinados contribuintes. Estes, que recolhiam o tributo à base de 12% sobre sua receita bruta, deverão recolher na proporção de 32%, conforme determina o art. 22 da Lei em questão:
"Art. 22. O art. 20 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação:
´´Art. 20. A base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido, devida pelas pessoas jurídicas que efetuarem o pagamento mensal a que se referem os arts. 27 e 29 a 34 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, e pelas pessoas jurídicas desobrigadas de escrituração contábil, correspondente a doze por cento da receita bruta, na forma definida na legislação vigente, auferida em cada mês do ano-calendário, exceto para as pessoas jurídicas que exerçam as atividades a que se refere o inciso III do § 1º do art. 15, cujo percentual corresponderá a trinta e dois por cento. [...]´´ "
Logo, a Lei nº 10.684/2003 impôs um aumento expressivo de 165% na carga tributária das pessoas jurídicas que exercem as atividades a que se refere o inciso III, do § 1º, do art. 15 da Lei nº 8.981/95, vale dizer, dos prestadores de serviços em geral (exceto de serviços hospitalares), dos intermediadores de negócios, dos administradores, locadores e cessionários de bens e direitos e dos prestadores de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring).
2. Das inconstitucionalidades
2.1. Violação ao Princípio da Isonomia
A isonomia é princípio fundamental de todo o Sistema Constitucional brasileiro e corolário básico de todo regime democrático de direito.
Com efeito, o princípio da igualdade - previsto expressamente em todas as nossas Cartas Republicanas anteriores (1) - recebeu especial relevância na Constituição Federal de 1988, sendo enumerado como "objetivo fundamental da República Federativa do Brasil" já em seu artigo 3º.
Ademais, foi o princípio da isonomia enfaticamente veiculado no Capítulo "Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos", cujo artigo 5º determina que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]". Portanto, a igualdade é direito incontestável, que não admite qualquer restrição ou ressalva.
Não obstante haver sido consagrado genericamente nos artigos 3º e 5º da Constituição de 1988, o princípio da isonomia mereceu previsão específica no artigo 150, II, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios "instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos".
A primeira vedação é clara ao afirmar ser defesa a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Não se trata, aí, da equivalência de fatos diante da hipótese legal. Isso seria igualdade perante a lei, já consagrada no caput do artigo 5º. Trata-se de igualdade em situações práticas, que não podem ter valoração diversa pelo legislador ao erigir tais fatos em hipóteses normativas (LACOMBE, 1996, p. 19).
De qualquer sorte, as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 17). Em outras palavras, é preciso que haja um critério jurídico/econômico para justificar o tratamento legislativo antiisonômico.
Em seguida, determina a cláusula pétrea que não poderá haver distinção em razão da ocupação profissional ou função exercida pelos contribuintes, impondo clara vedação a qualquer tipo de discriminação que não seja estritamente jurídica.
A Lei nº 10.684/03, ao impor à classe de pessoas jurídicas que menciona um aumento expressivo de 165% na carga tributária, nada mas fez senão desigualar contribuintes que se encontram em situação fática equivalente.
Com efeito, não há critério jurídico de discrimine que justifique a tributação mais onerosa dos prestadores de serviço em relação aos demais contribuintes. Conseqüentemente, a norma introduzida pela Lei nº 10.684/2003 encontra óbice de validade no artigo 150, II, da Constituição Federal.
2.2. Violação ao Princípio da Capacidade Contributiva
A hipótese de incidência, como proposição hipotética de situação objetiva real, é construída pela vontade do legislador, que recolhe os dados de fato da realidade que deseja disciplinar (realidade social), qualificando-os, normativamente, como fatos jurídicos (VILANOVA, 1977, p. 46).
No enunciado hipotético, segundo a estrutura normativa desenvolvida e consagrada por Paulo de Barros Carvalho, encontra-se três critérios identificadores do fato: a) critério material; b) critério espacial; e c) critério temporal.
No critério material, há a referência a um comportamento de pessoas, físicas ou jurídicas, condicionadas por circunstâncias de espaço e tempo. Para localizar o Princípio da Capacidade Contributiva na norma, é preciso desligar o comportamento subjetivo dos seus condicionantes espaço-temporais, a fim de analisa-lo de modo particular, nos seus traços de essência.
Dessa abstração emerge o encontro de expressões genéricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerram um fazer, um dar ou, simplesmente um ser (BARROS CARVALHO, 1991, p. 167). É o chamado critério material da hipótese de incidência.
O núcleo do critério material da hipótese de incidência, entretanto, deve possuir uma peculiaridade juridicamente relevante para o Direito: constituir uma forma, um índice, um indício para a aferição da capacidade econômica ou contributiva dos sujeitos aos quais se atribui.
Como dito anteriormente, a Constituição Federal de 1988, ao enumerar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, encampou em seu artigo 3º a imperatividade de se construir uma sociedade livre, justa e solidária. A Justiça Social, fundada no princípio básico e fundamental da isonomia, é o alicerce de todo o nosso Sistema Constitucional sendo, portanto, cláusula pétrea por excelência.
Nesse sentido, a Justiça Tributária, como derivação direta do Princípio da Justiça Social, impõe a obrigação de pagar tributo somente aos sujeitos que exteriorizarem sinais de riqueza e renda e, evidentemente, na proporção destas.
José Marcos Domingues de Oliveira defende proficuamente que a capacidade contributiva é conceito que se compreende em dois sentidos, um objetivo ou absoluto e outro subjetivo ou relativo. No primeiro caso, capacidade contributiva significa a existência de uma riqueza apta a ser tributada (capacidade contributiva como pressuposto da tributação), enquanto que no segundo, a parcela dessa riqueza que será objeto da tributação em face de condições individuais (OLIVEIRA, 1988, p. 36).
O princípio da capacidade contributiva, portanto, alberga não só a idéia de que é preciso haver uma riqueza passível de tributação, mas também a de que mais deve pagar tributo aquele que mais riquezas possuir.
Em busca dessa Justiça Tributária, o artigo 154, § 1º da Constituição Federal de 1988 determinou que "sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte".
Ora, não é preciso muito esforço dialético para notar que o aumento de 165% na carga tributária dos prestadores de serviço constitui evidente violação ao princípio da capacidade contributiva. Não há, de certo, qualquer razão de natureza econômica para apenar tal classe de contribuintes com uma tributação superior, por exemplo, à das indústrias e empresas comerciais.
Portanto, o aumento na base de cálculo da CSLL perpetrado pela Lei nº 10.684/2003 não teve como parâmetros a capacidade contributiva subjetiva dos contribuintes, estabelecendo, portanto, evidente violação ao artigo 154, § 1º da Constituição Federal de 1988.
2.3. Tributo utilizado com efeito de Confisco
A vedação constitucional ao confisco é decorrência lógica do Princípio da Capacidade Contributiva. Prevê o artigo 150, IV que, "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco".
Entretanto, ainda que não houvesse disposição expressa nesse sentido, o próprio princípio da capacidade contributiva e a garantia constitucional ao direito à propriedade inserta no inciso XXII, do artigo 5º da Constituição vedariam, latu sensu, a voracidade confiscatória do Estado.
Com efeito, a tributação pode revestir-se anormalmente de um caráter confiscatório, implicando a transferência compulsória da propriedade particular ao Estado por meio da desproporção entre a capacidade contributiva e a quantificação da obrigação tributária (alíquota/base de cálculo).
No caso, a Lei nº 10.684/2003 elevou para 32% a base de cálculo da CSLL para os prestadores de serviço, representando um aumento de 165% na carga tributária dessas empresas.
Desta forma e tendo em vista o desequilíbrio entre a capacidade contributiva dos prestadores de serviço e o aumento excessivo da CSLL, a Lei nº 10.684/2003 feriu, igualmente, a norma constitucional que veda a instituição de tributo com efeitos confiscatórios.
3. Do § 9º, do art. 195, da Constituição Federal
O § 9º, do art. 195, da Carta Magna, prevê que as contribuições sociais incidentes sobre o lucro das pessoas jurídicas poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra.
À primeira vista, parece, realmente, que o Poder Constituinte derivado pretendeu criar uma exceção ao princípio da isonomia tributária, facultando à União Federal instituir tratamento desigual a contribuintes que se encontram em situação equivalente. Tal excepcionalidade permitiria, supostamente, o aumento da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro, tão-somente, para as prestadoras de serviço em geral.
Entretanto e refletindo melhor sobre o assunto, extraio norma diferente desse artigo.
As contribuições, como se sabe, são espécies tributárias com finalidade constitucionalmente prevista, vale dizer, elas podem e devem ser criadas para atingir determinado fim específico (nivelar desigualdades econômicas, agir no interesse de categorias profissionais ou financiar a seguridade social).
O art. 195 da Constituição, nesse sentido, outorgou competência para a União Federal instituir contribuições destinadas ao financiamento da Seguridade Social e determinou, como sujeitos passivos da correspondente obrigação tributária, os empregadores, os trabalhadores e os administradores de concursos de prognósticos.
Note-se, portanto, que as contribuições do art. 195, por finalizarem a manutenção da Seguridade Social (conjunto integrado de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social), são cobradas das pessoas cuja situação jurídica tenha relação, direta ou indireta, com tal despesa especial.
Geraldo Ataliba, no consagrado livro "Hipótese de Incidência Tributária" (pg.178), resume bem as razões que levaram os constituintes a elegerem determinados contribuintes diretos da Seguridade Social. Segundo ele, "o sujeito passivo [da Contribuição] será (a) o beneficiário de algum efeito da ação estatal ou (b) seu provocador, porque a solicita, ou porque, de algum modo, desenvolve atividade que a exige ou requer".
Esse raciocínio é confirmado por A. D. Gianinni, parafraseado por Ataliba (in op. cit. p. 161), segundo quem "o tributo especial se vincula a uma atividade administrativa que, além de redundar em vantagem indistintamente para toda a coletividade, ao mesmo tempo proporciona uma utilidade específica àqueles que se encontram numa situação particular".
Portanto, se a Seguridade Social deve ser financiada pelas pessoas, direta ou indiretamente, relacionadas com tal despesa, é justo que se exija maior contribuição daqueles que demandem mais ou que obtenham vantagens maiores desse serviço público.
Aliás, essa é a explicação que encontro para a inclusão do § 9º, do art. 195, da Constituição (que, a meu ver, seria até mesmo desnecessária).
Determina o artigo que "as contribuições sociais previstas no inciso I deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculos diferenciadas, em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva da mão-de-obra". Essa previsão constitucional permite, pois, que a União estabeleça níveis de contribuição diferenciados para aqueles que exigem mais e para aqueles que exigem menos da Seguridade Social. Isso se confirma, na minha opinião, pela parte final do próprio § 9º, já que a "utilização intensiva de mão de obra" (exigência maior da Seguridade) é condição para o estabelecimento de critério quantitativo da obrigação tributária diferenciado.
Desta forma, caso a atividade econômica desempenhada pela pessoa jurídica ou o nível de utilização de mão-de-obra exija mais da Seguridade Social, devem essas empresas contribuir mais para o seu financiamento. Essa é a chamada Justiça Tributária, derivação própria da Justiça Social encampada no art. 3º da Constituição Federal.
O princípio da isonomia tributária, por sua vez, atuará, no caso, como um obstáculo ao despotismo estatal, sendo instrumento garantidor dos direitos individuais e coletivos.
Segundo esse primado constitucional, as pessoas jurídicas de direito público interno não podem "instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos". Logo, não pode o Estado onerar determinadas pessoas com obrigações tributárias diferentes às de seus iguais.
Por outro lado, é importante lembrar que o princípio da isonomia não significa a impossibilidade de discriminação. Entretanto, para que isto seja feito, deve o legislador levar em consideração, exclusivamente, critérios jurídicos e econômicos. Assim, por exemplo, as empresas que exercem atividades mais arriscadas - e que, por isso, exigem mais da Seguridade Social (ainda que potencialmente) - pagam mais Contribuição ao SAT do que aquelas que proporcionam menos riscos de acidente a seus funcionários. Ou seja, há critério coerente e jurídico de discriminação.
A Lei nº 10.684/03 aumentou a base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro, apenas e tão-somente, para os prestadores de serviços em geral. Os industriais e comerciantes - que, efetiva ou potencialmente - valem-se muito mais da Seguridade Social, livraram-se incólumes dessa alteração legislativa.
Ora, se não houve um critério jurídico de discrimine, não vejo como sustentar a ação do Governo.
Os limites ao poder de tributar, em especial aqueles que pregam o respeito por direitos e garantias individuais e coletivos, como a legalidade, a irretroatividade e a isonomia, são normas gerais e de estrutura, devendo ser aplicadas a todos os tributos, sem distinção.
O § 9º, do artigo 195, da Constituição (inserido, frise-se, pelo Poder Constituinte derivado - Emenda Constitucional nº 20) deve ser interpretado sistematicamente com o inciso II, do art. 150 e, ainda, com os artigos 3º e 5º da Carta de 1988 . Pode a União Federal instituir alíquotas e bases de cálculo diferenciadas conforme a atividade econômica do contribuinte? Sim, desde que estabeleça um critério jurídico de discriminação.
Não tenho o § 9º em questão como uma exceção ao princípio da igualdade tributária. Este não tolera limitações, não admite restrições, seja qual for o motivo invocado. Ademais, não há, no meu ponto de vista, qualquer antinomia entre as normas veiculadas pelo § 9º do art. 195 e o inciso II, do artigo 150 da Constituição Federal, já que se pode (ou melhor, se deve) interpretá-los sistematicamente.
Notas
(1) A Constituição de 24.2.1891 dispunha, no § 2º do artigo 72, que "todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como títulos nobiliárquicos e de conselho".
A Carta de 1934 realçou o princípio da isonomia, dispondo, no item 1 do art. 113, que "Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.
Já a Constituição de 1937, previu a igualdade perante a lei no Capítulo "Dos Direitos e Garantias Individuais", especificamente no item 1 do artigo 122. Da mesma forma, o § 1º, do artigo 141, da Carta de 1946 garantiu o princípio da isonomia.
Sob o mesmo título "Dos Direitos e Garantias Individuais", o § 1º do artigo 150 da Constituição de 1967 previu que "todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei."
Referências Bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, C. A. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., 3ª tir., Malheiros Editores, 1996.
BARROS CARVALHO, P. Curso de Direito Tributário. 5ª ed. Ed. Saraiva, São Paulo: 1991.
BUJANDA. F. S. Hacienda y Derecho. Ed. Instituto de Estudios Politicos. Madrid, vol. IV, 1966.
LACOMBE. A. L. M. Princípios Constitucionais Tributários. Malheiros Editores, 1996.
OLIVEIRA. J. M. D. Capacidade Contributiva - Conteúdo e Eficácia do Princípio. Renovar, 1988
VILANOVA, L. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. Revista dos Tribunais, 1977.