Popularmente conhecido como REFIS II, o Parcelamento Especial – PAES – instituído pela Lei n° 0.684, de 30 de maio de 2003, disciplinou nova opção de parcelamento de débitos para com a União Federal (Secretaria da Receita Federal e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), bem como para com o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, introduzindo correlatamente, ao meu sentir, profundas repercussões na esfera penal.
Isto porque a Lei do PAES contém, a um só tempo, normas de política fiscal-tributária e normas de política penal, sem que, necessariamente, estas últimas estejam vinculadas às primeiras. Tal é o que se deduz da redação do artigo 9º da lei em comento. Neste artigo, que veicula norma eminentemente penal, o legislador alinhou, sem a vincular a qualquer regime de parcelamento específico, sem restrições temporais ou submissão à condição processual, a pretensão punitiva do Estado ao parcelamento das dívidas tributárias para com a União Federal e o INSS.
Diz a norma em estudo:
"Art. 9° . É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1° . A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2° . Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios."
Deflui, da simples dicção do texto, que os crimes contra a ordem tributária, tipificados nos artigos 1° e 2° , da Lei n° 8.137/1990 e os crimes de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária descritos nos artigos 168-A e 337-A, do Código Penal, respectivamente, passaram a ter nova hipótese normativa, segundo a qual o ingresso em regime de parcelamento, por parte da pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes, constitui condição para a suspensão da pretensão punitiva do Estado, e também, à suspensão da dilação temporal prescricional do direito de punir do Estado. Além disto, está previsto a extinção da punibilidade quando o parcelamento foi integralmente quitado.
Para que se tenha a exata compreensão das conseqüências práticas que o dispositivo em estudo ensejará aos acusados de tais ilícitos, cumpre, primeiramente, cotejar-se o conjunto normativo pretérito, relativo aos benefícios penais, decorrentes da inclusão em parcelamentos tributários por parte de acusados de crimes contra a ordem tributária, bem como a interpretação que o Superior Tribunal de Justiça - STJ foi construindo em torno do mesmo.
A política criminal comprometida com a redução da punibilidade para agentes dos crimes envolvendo a sonegação de tributos não é nova. O artigo 34 da Lei nº 9.249/1995 já contemplava hipótese de extinção da punibilidade, mediante pagamento do tributo não recolhido, desde que a quitação ocorresse antes do oferecimento da denúncia.
Instalou-se, então, acirrado debate, tanto na Doutrina quanto na Jurisprudência, mediante os quais pretendia-se definir se a lei exigia o pagamento integral do tributo não recolhido ou se admitia, também, como causa extintiva de punibilidade, o parcelamento da dívida, decorrente da novação operada com a concessão do parcelamento.
O STJ resolveu os impasses doutrinários e balizou o norte interpretativo em maio de 2002, no julgamento do RHC 11.598-SC, emitindo o seguinte enunciado:
"SONEGAÇÃO FISCAL. PUNIBILIDADE. ANTERIORIDADE. PARCELAMENTO.
A Seção, por maioria, decidiu que, nos crimes de sonegação fiscal, o parcelamento da dívida com o Estado antes do oferecimento da denúncia extingue a punibilidade, nos termos do art. 34 da Lei n. 9.249/1995, ainda que restando eventual discussão extrapenal dos valores. Precedentes citados: HC 9.909-PE, DJ 13/12/1999; REsp 197.365-MG, DJ 6/9/1999, e REsp 184.338-SC, DJ 31/5/1999. RHC 11.598-SC, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 8/5/2002".
(Informativo STJ nº 133 Período: 6 a 10 de abril de 2002)
A par desta disposição específica, na esteira da edição da Lei nº 9.964/2000 – REFIS I –, o legislador buscando a um só tempo incentivar a adesão por parte do empresariado e moralizar o benéfico da extinção da punibilidade antes do oferecimento da denúncia – que pela decisão dos tribunais já estava a contemplar até os casos de parcelamentos rescindidos e não pagos – introduziu os dispositivos constantes do artigo 15 da referida lei, nestes termos:
"Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1° e 2° da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal.
§ 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
§ 2o O disposto neste artigo aplica-se, também:
I - a programas de recuperação fiscal instituídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, que adotem, no que couber, normas estabelecidas nesta Lei;
II - aos parcelamentos referidos nos arts. 12 e 13.
§ 3o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal."
Assim, ao contrário do que muitos pensam, o artigo 15 da lei do REFIS deve ser compreendido como lei penal mais gravosa, posto que, para os débitos tributários incluídos no programa especial de parcelamento então instituído, permitia, apenas, a suspensão da pretensão punitiva, desde que a adesão ao REFIS ocorresse antes do oferecimento da denúncia. A extinção da punibilidade só viria com o pagamento integral do débito parcelado.
Destaco, ainda, que o artigo 15, da Lei nº 9.964/2000 manteve incólume o art. 34 da Lei nº 9.249/1995, derrogando-o, tão somente, para os débitos incluídos no REFIS. Aqui, outro ponto importante, o artigo 15, teria aplicação exclusiva para os tributos parcelados nos termos da Lei 9.964/2000, não sendo aplicável a qualquer regime de parcelamento. Por outras palavras, para todos os outros regimes de parcelamento que não o REFIS I, permaneceu válido o artigo 34 da Lei n º 9.249/1995, com a interpretação que lhe deu o STJ.
Agora, com a edição da Lei nº 10.684/2003, esse quadro normativo foi completamente alterado. Em seu artigo 9º, o legislador não estabeleceu nenhuma condição ou distinção sobre o momento da opção do parcelamento. Deste modo, pouco importa se o parcelamento do débito tributário ocorra antes ou depois do recebimento da denúncia. Tampouco houve restrição à aplicação do benefício aos que ingressarem exclusivamente no novo programa de moratória, permitindo, conseqüentemente, que qualquer regime de parcelamento oportunize ao acusado o direito à suspensão da pretensão punitiva e, posteriormente, a extinção da punibilidade pelo pagamento integral da dívida.
O que se verifica então, é a opção do legislador em expandir, totalmente, o benefício da suspensão da pretensão punitiva. Estando ou não processado, o devedor, mesmo fraudador do bem jurídico "ordem tributária", poderá usufruir os efeitos da suspensão e extinção da pretensão punitiva desde que ingresse no PAES ou em qualquer outro regime de parcelamento.
Esta política penal bem caracteriza o interesse meramente coativo dos tipos penais tributários, voltados à garantia da arrecadação e não à punição dos agentes infratores. Uma vez que o agente promotor da evasão fiscal se comprometa a recolher o tributo sonegado – parcelamento – ou opte por seu pagamento integral, prontamente o Estado ameniza as conseqüências penais ou suspendendo ou extinguindo a pretensão punitiva, pois o bem jurídico, de fato, não é a "ordem tributária", mas sim a "arrecadação".
Ou seja, mesmo com o recebimento da denúncia, e ainda que o processo penal já esteja instalado, e até mesmo em grau de recurso, com a sentença pendente do trânsito em julgado, poderão os acusados ingressar no PAES ou em outro regime de parcelamento e, mediante a moratória, passarão a adquirir a condição estabelecida pelo privilégio conferido pelo legislador.
Assim, pode-se concluir que a efetiva extinção da punibilidade continua dependente do integral pagamento da dívida, nos termos em que regida pelo art. 34 da Lei 9.249/95. Entretanto, em função do artigo 9º da Lei 10.684/2003, a extinção passou a ser possível até mesmo durante o curso da persecução criminal, após o recebimento da denúncia.
Já a suspensão da pretensão punitiva passou a ser direito do acusado sempre que houver ingresso no programa de refinanciamento ou outro parcelamento, pouco importando o regime. É evidente, que em se tratando de norma tributária matizada de conteúdo penal, posto que trata de benefício penal, faz-se presente o princípio da retroação "in mellius", por meio do qual a lei deve retroagir para beneficiar, não se podendo supor que os atuais processados não tenham direito de também ingressarem no contingente de favorecidos.
Outra conseqüência lógica da norma penal inserta no artigo 9º da Lei do PAES, e que muitas vezes passa despercebida, é a extensão do benefício penal da suspensão/extinção da pretensão punitiva para todos os casos de não pagamento de tributos estaduais e municipais, subsumíveis aos tipos penais ali descritos. Dessa forma, a suspensão/extinção da punibilidade dos crimes relacionados com o inadimplemento de tributos estaduais e municipais não fica condicionada à iniciativa destes entes Federados fixarem novos programas de refinanciamento de suas dívidas. O benefício poderá ser aplicado mesmo que não haja legislação estadual e legislação municipal instituindo novos programas de refinanciamento das suas respectivas dívidas, a uma porque o artigo 9º não faz qualquer exceção, a duas porque a competência para legislar em matéria de Direito Penal é exclusiva da União Federal, a três porque é inadmissível e ofensivo à isonomia constitucionalmente garantida, limitar-se as benesses do artigo 9° , da Lei n° 10.684/2003, apenas aos privilegiados que puderam optar pelo PAES.
Assim, o legislador federal, em um único diploma legislativo, tratou de instituir uma espécie de moratória fiscal para com os devedores da União, adicionando estímulos por meio de efeitos penais. Tais efeitos são extensíveis às demais entidades tributantes, mesmo que elas não promovam novos e respectivos "PAES". Daí a produção de efeitos penais aos processados penalmente na justiça estadual, por crimes contra a ordem tributária municipal e estadual, que se decidam e consigam parcelamentos, mesmo após o recebimento da denúncia.
Do contrário, poder-se-ia falar em manicômio processual penal supor-se possível a suspensão/extinção da punibilidade para um "sonegador" do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, por exemplo, que faça a adesão a programa de parcelamento ou realize o pagamento integral do tributo na data em que é submetido ao interrogatório – conseqüência do disposto no § 2.º do artigo 9.º da lei analisada – e a mera aplicação da circunstância atenuante prevista no artigo 65, III, "b", do Código Penal, caso este mesmo "sonegador" em questão estivesse relacionado com o não recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de competência dos Estados-Membros e também optasse pelo parcelamento ou pagamento integral do tributo sonegado.
Importa observar-se, nesse passo, que ao tempo em que à pessoa física é assegurado o direito ao parcelamento dos débitos tributários, não se lhe assegurou o direito à suspensão da pretensão punitiva previsto no artigo 9.º, pois a lei referiu-se, apenas, às pessoas jurídicas, não estendendo os seus efeitos para as pessoas físicas. É evidente que aqui também o princípio da interpretação "in mellius", além do princípio constitucional da isonomia, alinham-se no sentido de respaldar a aplicação do benefício às pessoas físicas.
Não se pode deixar de realçar, ainda, que não há muito fôlego para respaldar a inconstitucionalidade da Lei 10.684/03, posto que seu principal argumento de ataque - ser produto da conversão da Medida Provisória nº 107/2003, ferindo o preceito insculpido no artigo 62, § 1° , I, "b", da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32/2001 - não lhe é aplicável.
A MP nº 107, de 10 de fevereiro de 2003 não dispunha de qualquer dispositivo penal, ou mesmo relacionado ao parcelamento de débitos fiscais. Todos os dispositivos legais relacionados a estas questões foram introduzidos pelo Congresso Nacional, no regular exercício de suas prerrogativas legislativas, não sendo, portanto, produto de mera conversão de medida provisória.
Deste modo, por se constituir em norma não originada da medida provisória, nos termos em que adotada pelo Poder Executivo, não é possível atribuir-lhe vício de origem.
Há, de outra parte, evidências de violação do princípio isonômico consagrado na Lei Maior (art. 5,º caput e inciso LIV), diante do fato da concessão do benefício dirigir-se aos tributos devidos por pessoas jurídicas, omitindo sua aplicabilidade para as pessoas físicas inadimplentes dos mesmos tributos. Entretanto, tal "inconstitucionalidade" resolve-se pela extensão do benefício, e nunca pela sua supressão, vez que a inconstitucionalidade reside na omissão em relação às pessoas físicas e não na menção feita às pessoas jurídicas.
Por decorrência do texto legal restou implícito, também, que o termo máximo para se efetuar o parcelamento ou pagamento dos débitos tributários é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, já que o caput do artigo 9.º adotou a expressão "suspensão da pretensão punitiva", sendo que depois do trânsito em julgado da decisão judicial surge para o Estado nova espécie de pretensão, qual seja, a de executar a pena imposta pelo julgador, não se falando mais em pretensão punitiva, e sim de pretensão executória.
Em contrapartida, tem-se que atentar para a conseqüência da derrogação parcial dos artigos 34 da Lei 9.249/95, 168-A, § 2º e 337-A, § 1º, do Código Penal, pois a aplicabilidade destes, nos limites em que é interpretada pelo STJ, restou reduzida. Agora, apenas o pagamento integral dos débitos tributários dará ensejo à extinção da punibilidade, não obstante este pagamento possa se dar em qualquer fase do processo penal, mas antes do trânsito em julgado da sentença.
Cumpre ressaltar, ainda, a revogação tácita do inciso I, do § 3.º do artigo 168-A do Código Penal e a continuidade da vigência do inciso II, § 3º, do mesmo artigo 168-A e §§ 2º 3º do artigo 337-A, do mesmo diploma legal.