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Primeiras impressões sobre a Reforma Tributária de 2003

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13/10/2003 às 00:00
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14 - Uma alteração difícil de entender foi a reserva à lei complementar da atribuição para definir os gêneros alimentícios de primeira necessidade (componentes da chamada cesta básica), prevista na alínea b, do inciso V, com exclusão do órgão de representantes do Estado, que já exerce esta atribuição há anos. Curioso que tenha sido reservada a itens essenciais a edição por norma de mais difícil aprovação, enquanto os demais podem ser especificados pelo regulamento administrativo aprovado pelos Secretários de Fazenda.


15 - Outra inovação que pode gerar discussão é a introdução da expressão a qualquer título, na alínea a, do inciso IX, também do § 2° do art. 155. Este dispositivo define, da forma mais ampla possível, o fato gerador do ICMS decorrente da importação de mercadoria ou serviço. A dúvida é se haverá ou não ampliação da hipótese de incidência. A expressão a qualquer título permite concluir estarem agora incluídas situações habitualmente excluídas, como os contratos de leasing (10), por exemplo ? Parece-nos ser este o objetivo, sob pena de tornar inútil a alteração redacional. Em princípio, nada há de inconstitucional na edição de emenda voltada a alterar jurisprudência, pois é normal que as necessidades sociais evoluam e as normas as acompanhem. A coisa julgada é imutável, não o entendimento que a gerou.


16 - A alteração do parágrafo único do art. 158, definindo a lei complementar como instrumento de veiculação da norma de partilha do ICMS entre os Municípios, ratifica o que já acontece, embora em razão de errônea leitura. Foram retirados seus dois incisos, que traziam critérios de repartição de receitas, típica matéria infra-constitucional, o que contribui para a valorização da Constituição. A alteração corrigirá o equívoco cometido quando da edição da LC n° 63/90, que, a pretexto de regular o disposto no art. 161, incisos I e III, da Constituição Federal, invadiu a competência dos Estados para decidirem quanto ao repasse aos Municípios da parcela do ICMS que lhes compete. No que concerne ao ICMS, os referidos incisos I e III, do art. 161, apenas determinam competir à LC federal conceituar "valor adicionado" e dispor sobre o acompanhamento pelos Municípios do cálculo das quotas e liberação das participações, o que, aliás, já decorre do princípio da publicidade, expresso no art. 37, da CF. Mais nada. A LC exaure estas funções no § 2°, do art. 3°, em relação à conceituação do valor adicionado. O acompanhamento da arrecadação pelos Municípios, é tratado nos parágrafos 5° a 10°, do art. 5° e no art. 6°, também suficientemente. Não satisfeito, o legislador complementar federal ainda determinou como e em que periodicidade deve ser feito o cálculo, matéria que hoje compete aos Estados legislarem, nos termos do inciso II, do parágrafo único, do art. 158.


17 - É lamentável a introdução de artigos contendo valores expressos em reais ou até alíquotas, como o 93, do ADCT, pois isso desmoraliza a Carta Magna e a equipara às leis ordinárias, o que em nada contribui para sua perenidade e respeitabilidade, duas características intimamente associadas. O sentimento constitucional de um povo é essencial à sedimentação da democracia e constrói-se aos poucos, o que é impossível se os governantes não tratam a Constituição como uma norma maior, estabelecedora de princípios. Tal indevida inclusão já havia ocorrido através dos arts. 13 e 14, da EC n° 20/98, bem como por meio do § 14, do art. 155 e § 5°, do art.153. A reforma de 2003 repete esta conduta através da fixação da alíquota da CPMF, que deixa de ser provisória. Acresça-se que não há necessidade de detalhar as contribuições sociais na Constituição Federal, pois o STF entende que podem ser instituídas até por lei ordinária. (11)


18 - A reforma acrescenta o art. 90, ao ADCT, que trata da transição dela decorrente. Seu inciso II permite que a lei complementar que vier a disciplinar o ICMS fixe novos prazos para incentivos fiscais em vigor, bem como revogue algumas das regras vigentes à época de sua concessão. Ou seja, afetará direitos adquiridos e atos jurídicos perfeitos. Caso isso efetivamente ocorra, sem adequada compensação aos interessados, talvez através dos fundos previstos no inciso III, será uma boa oportunidade para a jurisprudência nacional definir o exato significado da expressão lei, especificamente no que concerne ao disposto no inciso XXXVI, do art. 5°, da Constituição, pois até hoje não há consenso acerca do enquadramento de emenda constitucional no sentido de tal expressão.


19 - Em relação à contribuição previdenciária, prevista no art. 195, da Constituição, a reforma traz um parâmetro aplicável à progressividade cuja possibilidade se extrai de seu § 9°, acrescentado pela Emenda Constitucional n° 20/98. Tal dispositivo trouxe importante inovação em prol da efetivação do princípio da dignidade humana, dispondo:

§ 9° - As contribuições sociais previstas no inciso I deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra." Grifamos

Foi a primeira solução normativa, consistente, de estímulo à produção de emprego associada à proteção do homem em face da automação, direito social fundamental previsto no art. 7°, inciso XXVII. A possibilidade de haver alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, tendo como critério extrafiscal o estímulo à utilização intensiva de mão-de-obra pelas empresas, demonstra estarem começando a ser plantadas as bases de uma democracia social no Brasil. Até o momento todos os esforços públicos eram no sentido de financiar a modernização das empresas, através de demissões e automações.

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Os benefícios de diferenciação contributiva, voltados às atividades econômicas que despendam um percentual significativo com mão-de-obra, deverão ser compensados por acréscimos, também em relação às contribuições previdenciárias, incidentes sobre atividades com características opostas às metas extrafiscais empregatícias, em razão da alta automação. Este equilíbrio decorre de imposição estabelecida no § 5°, do mesmo art. 195, que dispõe: "§ 5° Nenhum benefício ou serviço de seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total".

A expressão benefício, no Direito Tributário, tem o significado de vantagem financeira para o contribuinte, como as isenções e reduções de base de cálculo. O Direito Previdenciário também envolve tributação, o que permite afirmar que benefício não significa, apenas, a contrapartida recebida pelo trabalhador ou qualquer contribuinte em razão da ocorrência de um fato previsto em lei, como o decurso do prazo para aposentadoria ou algum acidente que impeça a continuação do trabalho. Também é adequado denominar benefício uma eventual diferenciação de custeio arcado pelo empregador, em razão de um critério extrafiscal como o acima referido. Sua instituição geraria a necessidade de obter fonte de custeio compensatória da perda. Se assim não fosse, estaria sendo transferido o custo do benefício a toda a sociedade, quando a meta extrafiscal permite fazer o necessário ajuste através do acréscimo na contribuição, desde que incidente sobre atividades com baixo percentual de despesa salarial sobre a receita.

A alíquota cobrada das instituições financeiras terá que ser sempre a maior, mesmo que eventualmente atuem com uso intensivo de mão-de-obra. Bonita mas irrelevante tal alteração, pois trata-se de um dos setores mais informatizados da economia, que certamente já seria mesmo enquadrado na maior alíquota. Quanto à possibilidade de haver mais uma contribuição sobre a receita ou faturamento, prevista no § 12°, parece-nos desnecessária, pois basta aumentar as alíquotas das existentes.


20 - Um dos mais vagos e programáticos dispositivos da reforma é o parágrafo único do art. 203, que expressamente introduz na Constituição o princípio da solidariedade, tão em voga na doutrina e jurisprudência (12). Trata-se de um programa de renda mínima, a ser financiado por toda a sociedade, o que parece decorrer da expressão solidariamente, mas apenas após a edição de lei complementar reguladora e da assinatura dos convênios. Ou seja, trata-se de uma manifestação sincera de boas intenções, de nada servindo sua inclusão na Carta Magna, já prenhe delas.


NOTAS

  1. STF, ADI n° 286/RO, julg. 22/05/2002, Rel. Min. Maurício Correia.
  2. Os Artigos Federalistas, trad. Maria Luíza Borges, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1993, p.147.
  3. Arts.53, da Constituição da Itália, 107, de Portugal, 31, da Espanha, 19, § 20, da Constituição do Chile, e 363, da Colombiana.
  4. À conclusão semelhante, embora com fundamentos distintos, chegam Ricardo Aziz Cretton, Um IVA à brasileira para a integração econômica, Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n° 53, e Mizabel Derzi, "A necessidade da instituição do IVA no sistema constitucional brasileiro", Seqüência, n° 31, in trabalho antecedente.Heron Arzua, em artigo denominado O Mercosul e a uniformização dos impostos sobre circulação de mercadorias, demonstra que o principal objetivo justificador do IVA, o fim da incidência em cascata, já é igualmente alcançado pelo ICMS. RTFP, v.31. p.75, São Paulo, 2000.
  5. Confaz – Conselho Nacional de Política Fazendária, previsto na Lei Complementar n° 24/75 e Decreto n° 3.366/2000.
  6. Nesse ponta a emenda traz uma curiosidade, pois facilita o estabelecimento de isenções, bastando aprovação a maioria absoluta do Congresso, quanto até o momento é necessária a unanimidade dos representantes dos Estados seguida a aprovação de lei local.
  7. Tal entendimento é fruto de uma confusão acerca do conceito do princípio da não-cumulatividade, questão mais detalhadamente tratada em nosso trabalho "A não-cumulatividade do ICMS e o estorno decorrente da atividade industrial", publicado na Revista Dialética de Direito Tributário n° 91, p.41/51, Ed. Dialética, São Paulo, 2003. STJ, RESP 343.800/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina, pub. 31/03/2003.
  8. STJ, RESP 418957/MT, pub.26/08/2002, 1ª T, Rel. Min. Garcia Vieira.
  9. Trata-se de técnica de administração tributária consistente na eleição do elo mais idôneo ou conveniente da cadeia econômica comercial, responsabilizando-o pela retenção e recolhimento do imposto relativo a mais de uma etapa de circulação da mercadoria ou serviço, antes ou depois de ocorrerem.
  10. São inúmeros os acórdãos que afirmam não incidir o ICMS sobre operações de leasing, uma vez que não importam em transferência de domínio, embora haja efetiva circulação de mercadoria. Tal entendimento chega a se mantido mesmo quando há antecipação do valor residual, apesar a clara redação da súmula n° 263, do STJ, em sentido contrário. Vide STJ, RESP 439.884/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, pub. 02/12/2002. Este acórdão também está respaldado no art. 3°, inciso VIII, da LC n° 87/96, que lista o arrendamento entre as hipóteses de não-incidência. Ressalte-se que esse dispositivo só pode ser aceito se meramente declaratório, pois se tivesse efetivamente operando uma exclusão seria inconstitucional, já que os meios adequados são os convênios e as leis estaduais.
  11. STF, RE n° 353.320/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª T., julg. 18/03/2003.
  12. Este princípio tem fundamento constitucional no inciso I, do art. 3°, da Constituição Federal, que estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária. Tais metas refletem uma atualização dos três ideais da revolução francesa, sendo que a igualdade tomada sob o enfoque substancial, o que a faz se justa e não apenas formal, típica leitura da chamada segunda geração de direitos do homem. Já solidariedade representa a positivação do ideal de fraternidade, concretizado tanto por meio de prestações pecuniárias, como os tributos, quanto através de condutas como a filantropia e assistência social.
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Sobre o autor
Fernando Lemme Weiss

procurador do Estado do Rio de Janeiro, professor da EMERJ e da Universidade Cândido Mendes, mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEISS, Fernando Lemme. Primeiras impressões sobre a Reforma Tributária de 2003. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 102, 13 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4438. Acesso em: 25 abr. 2024.

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