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Novas perspectivas de utilização da ação civil pública e da ação popular no controle concreto de constitucionalidade

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13/11/2003 às 00:00
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5 – Limites e possibilidades processuais à utilização da ação civil pública e da ação popular no controle difuso de constitucionalidade

Feita a exposição dos argumentos favoráveis e em contrário à utilização da ação civil pública e da ação popular no controle concreto de constitucionalidade, bem como mencionada a jurisprudência sobre assunto, cabe fixar o que parecem ser seus reais limites e possibilidades.

De início, percebe-se que, quando inviável a apreciação da controvérsia constitucional na sede do controle abstrato, nada impede a utilização da ACP ou da AP, v.g., para a declaração incidenter tantum de inconstitucionalidade de leis municipais frente à CF. [50] Esse é, aliás, o critério utilizado pelo Min. SEPULVEDA PERTENCE, como antes analisado.

De outro ângulo, nem mesmo assim – ou seja, quando inviável o controle abstrato – pode-se admitir que o objeto da ACP ou da AP seja a própria declaração de inconstitucionalidade de ato em tese, conforme já entendeu o STF:

EMENTA: - Agravo regimental. - Não se admite ação que se intitula ação civil pública, mas, como decorre do pedido, é, em realidade, verdadeira ação direta de inconstitucionalidade de atos normativos municipais em face da Constituição Federal, ação essa não admitida pela Carta Magna. Agravo a que se nega provimento. [51]

Porém, as grandes celeumas radicam no cabimento da ACP (e, por analogia, também da AP) para discutir constitucionalidade de ato normativo federal ou estadual em face da CF/88 ou para questionar ato normativo estadual ou municipal diante das respectivas Constituições estaduais.

Nesse prumo, afigura-se muito inteligente a distinção entre causa de pedir e pedido. Contudo, essa linha argumentativa desloca a controvérsia do verdadeiro cerne do problema, que continua a ser a potencial usurpação da competência do STF.

Certo, sabendo que a fundamentação utilizada na sentença não faz coisa julgada e que o efeito erga omnes apenas amplia a dimensão subjetiva da obrigatoriedade da sentença, poder-se-ia concluir que tal efeito atua tão-só em relação ao dispositivo da sentença.

No Brasil, porém, onde convivem tanto o controle abstrato quanto o concreto, argumentos baseados somente em distinções teórico-processuais não se afiguram decisivos, se, na prática, possa ser esvaziada a competência deferida pelo Constituinte somente ao STF.

Vale dizer: a competência para controlar a constitucionalidade concreta dos atos normativos não pode implicar a inutilidade prática da competência constitucional para exercer controle abstrato, ainda que o contrário possa suceder. [52] Se o Constituinte reservou ao STF o papel de guardião da Constituição, atribuindo-lhe poderes excepcionais para implementar a depuração objetiva do ordenamento jurídico, não soa admissível que o interesse em dar consecução a essa nobre tarefa possa ser inviabilizado por mecanismos da fiscalização difusa da constitucionalidade.

E se a questão acerca da legitimidade do controle judicial da constitucionalidade é das mais problemáticas, [53] pior ainda é deferir, indiretamente, a todo e qualquer juiz, competência que a Constituição só deu ao STF.

Daí, a simples transposição da disciplina que rege as class actions americanas não satisfaz o sistema brasileiro, porque nos Estados Unidos não há controle abstrato, ou seja, não existe a modalidade de controle em cuja defesa partem os opositores ao uso da ação civil pública.

De outro lado, ao contrário do que sustenta a corrente contrária à utilização da ACP no controle de constitucionalidade, o processo relativo à ACP parece não se qualificar pela forma objetiva. Embora amplos os efeitos inerentes à coisa julgada da sentença pela procedência do pedido da ACP e sem embargo da dimensão do interesse tutelado, há sempre um litígio concreto e uma situação subjetiva ao fundo. Existe, portanto, efetiva jurisdição de composição de conflito de interesses em que a questão constitucional é decidida tão-só incidentalmente, para que o objeto da ação seja deferido ou não. Instaura-se verdadeiro contraditório formal, sendo imprescindível o exercício do direito de defesa. Está ainda o órgão julgador sujeito às regras processuais ordinárias, adstringindo-se, por exemplo, às causae petendi invocadas pelo requerente. Outrossim, é possível a intervenção de terceiros e a execução do julgado, até porque o provimento geralmente não é meramente declaratório. É ampla a possibilidade de impugnação recursal, cabendo ainda o ajuizamento de ação rescisória. Ademais, nada impede a argüição de suspeição ou a oposição de impedimento do julgador. Permite-se, também, ainda que de maneira mitigada, a desistência da ação (art. 9º da Lei 7.717/65 e art. 5º, §3º, da Lei 7.347/85).

Enfim, o único instituto tipicamente ligado ao processo objetivo e que efetivamente pode configurar a aventada hipótese de usurpação da competência do STF é a previsão de concessão de efeitos erga omnes à sentença favorável ao requerente.

No entanto, esse obstáculo pode ser plenamente contornado, como destacou o STF, pela avaliação em favor de quais interesses está sendo patrocinada a ACP.

Neste ponto, cabe breve conceituação embasada na obra de HUGO NIGRO MAZZILLI. [54] Primeiramente, por interesse público lato sensu entende-se todo aquele que, mesmo reflexamente, atinja a sociedade como um todo. Desse gênero surgem dois outros. O interesse público primário, que abrange aqueles que visam ao bem-estar geral, como o interesse social e da coletividade (ex.: interesses difusos, coletivos e mesmo os individuais indisponíveis), e o interesse público secundário, a saber, o modo pelo qual a Administração Pública vê o interesse público (ex.: quando decide construir uma usina hidrelétrica, um aeroporto, ou quando declara guerra). Então, surgem mais três divisões. A uma, os interesses difusos, traduzidos como interesses transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares grupos indeterminados e dispersos de pessoas, ligadas por circunstâncias de fato (ex.: direito a respirar ar puro, ao meio ambiente equilibrado, direito do consumidor de não ser alvo de propaganda enganosa etc.) – art. 81, par. único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei 8.078/90. A duas, os interesses coletivos, ou seja, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe determinada, ou pelo menos determinável, de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (ex.: interesse dos taxistas à regulamentação de suas concessões, dos advogados dativos em serem remunerados pelo Estado, dos consumidores de certa instituição bancária em virtude de aumento abusivo e generalizado de tarifas) – art. 81, par. único, inciso II, do CDC. E a três, os interesses individuais homogêneos, que são aqueles interesses individuais de natureza divisível, decorrentes de origem comum, cujos titulares são plenamente identificáveis (ex.: interesses dos consumidores de certo produto cuja série industrial tenha um mesmo defeito técnico, interesses dos alunos que tiveram negada a matrícula escolar por atraso no pagamento das mensalidades) – art. 81, par. único, inciso III, do CDC.

Pelo visto, dentro da tríplice classificação dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, ressalvados os primeiros, os verdadeiros titulares dos demais interesses são, pelo menos, identificáveis. Então, quando plenamente identificados os titulares de interesses coletivos e individuais homogêneos, não há dizer que os efeitos erga omnes irão atingir a todos os destinatários originais da norma taxada de inconstitucional.

Aliás, em se tratando de interesses coletivos ou individuais homogêneos, é equivocado falar-se em efeitos erga omnes. De fato, a terminologia erga omnes é exclusiva de interesses difusos, como bem ressalvado no art. 103, I, do Código de Defesa do Consumidor, atingindo "toda uma coletividade de pessoas indefinidas, que somente seriam atingidas desde que guardada alguma relação com aqueles direitos pleiteados e obtidos através do processo coletivo." [55] Assim, com melhor técnica, o CDC "adotou a expressão ultra partes para caracterizar que o interesse defendido na ação coletiva é restrito ao grupo, não se confundindo com o interesse difuso, que se espalha por toda a coletividade." [56]

Aqui, portanto, amplia-se a viabilidade da ACP para servir de instrumento de controle concreto de constitucionalidade, incluindo-se também os interesses coletivos – e não só os individuais homogêneos –, desde que possam ser identificados os eventuais beneficiários da decisão. Nesses casos, então, descabe dizer esteja sendo usurpada a competência exclusiva do STF ou dos tribunais de justiça para o julgamento das ações diretas.

Por último, cabe dizer que as hipótese de cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), recentemente regulamentadas, não servem para agravar esse problema da usurpação de competência. Muito embora a Lei 9.882/99 haja possibilitado o alargamento do controle abstrato de constitucionalidade aos atos normativos pré-constitucionais e municipais, não há dizer que isso sirva para restringir o uso das ACPs e APs.

Isso porque, como se tentou demonstrar em dissertação de mestrado, [57] as duas espécies de argüição, tanto a autônoma como a incidental, convivem normalmente com a fiscalização concreta de constitucionalidade. De fato, a ADPF incidental carece da propositura de ação judicial anterior; [58] e a ADPF autônoma, como pressupõe a comprovação de lesão concreta, [59] só pode ser proposta subsidiariamente, nos termos do §1º do art. 4º da Lei 9.882/99, [60] após esgotados os meios judiciais eficazes existentes no controle concreto. [61]


6 – Dos efeitos das inovações normativas sobre a matéria

Recentemente, a Lei 9.494/97 deu nova redação ao artigo 16 da Lei 7.437/85, que passou a vigorar com o seguinte texto:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Atualmente, encontra-se também em vigor a MP 2.180-35, de 24/08/2001, cujo artigo 4º impõe, entre outras, as seguintes alterações à Lei 9.494/97:

Art. 4º A Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

...........

"Art. 2º-A. A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.

Parágrafo único. Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços." (NR)

Diante dessas inovações legislativas, portanto, surgem mais razões para alargar a utilização das ACPs no controle concreto de constitucionalidade.

Isso porque, a partir da nova redação conferida pela Lei 9.494/97 ao artigo 16 da Lei 7.437/85, é possível afastar o argumento de usurpação da competência para o controle abstrato, tendo em vista que os efeitos gerados pela sentença da ACP, mesmo que oponíveis a todos (erga omnes), possuem agora limitação espacial relativa à competência territorial do órgão prolator.

Aqui, todavia, é preciso dizer que este trabalho, ao contrário de freqüentes posicionamentos doutrinários, não irá sustentar a inconstitucionalidade dessa nova redação conferida ao caput do art. 16 da Lei 7.437/85. A uma, porque os argumentos lançados contra tal inovação legislativa, [62] embora pertinentes do ponto de vista de uma retórica processualística, parecem não encontrar ressonância no conjunto de normas que servem de parâmetro do controle de constitucionalidade. [63] Daí, como o legislador pode dispor sobre a matéria, caberia à doutrina se ajustar aos eventuais equívocos técnicos contidos na legislação, em vez de pretender que teorias processuais sejam alçadas à condição de parâmetro no controle de constitucionalidade das leis. A duas, porque a jurisprudência do STF se inclina pela constitucionalidade da criação da aludida limitação territorial. [64] E a três, pois se afigura importante a pesquisa sobre o tema a partir de novas perspectivas dogmáticas.

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Pois bem. Uma vez singularizados a determinada porção territorial os respectivos potenciais beneficiários, há clara distinção dos efeitos decorrentes da procedência do pedido formulado na APC frente àqueles gerados pelas sentenças de mérito preferidas nas ADIns, pois tais sentenças não conhecem limitação territorial, confundindo-se com o próprio âmbito de validade da norma. [65]

Assim, a menos que o ato impugnado na ACP tenha âmbito de validade territorial equivalente ou inferior ao da competência do órgão judicial – o que esvaziaria o interesse prático na eventual instauração do processo de controle abstrato de constitucionalidade, nas hipóteses em que fosse possível instaurá-lo –, não há risco de violação da competência do STF. Rompeu-se, portanto, com o dogma segundo o qual os efeitos erga omnes dos julgados das ACPs representam violência à competência constitucional destinada à Suprema Corte.

E mais: fixada a erronia da expressão erga omnes para qualificá-la, a sentença dada em ACP, tendo por objeto interesses coletivos e individuais homogêneos cujos beneficiários estejam ou devam ser identificados na fase de execução, não encontra nenhum obstáculo, mesmo se considerada a situação descrita no parágrafo acima.

Restaria, pois, somente o segundo obstáculo levantado pela corrente restritiva, a saber, aquele calcado na pretensa criação de um direito regionalizado.

De início, porém, conforme ensina a escola kelseniana, ressalte-se que toda sentença transitada em julgado, constituindo norma individual que se destaca da regra hipotética, acaba por criar direito particularizado em relação às partes que litigaram ou que devam se curvar aos efeitos de tal sentença. Isso tudo, circunscrito aos efeitos da coisa julgada, nunca foi objeto de grandes discussões.

E se atualmente ganham espaço as causas de dimensão coletiva ajuizadas por órgãos e entidades representativas do pluralismo político apregoado pela Constituição (art. 1º, V), surgem outros motivos para superar velhos conceitos limitadores da eficácia meramente individualista dos efeitos da coisa julgada.

Nesse prumo, cabendo ao legislador ordinário disciplinar os contornos da processuais da coisa julgada, às sentenças finais da AP e da ACP foram acrescidos efeitos erga omnes. Mas inconstitucionalidade alguma há nisso.

Pois bem. Fruto da válida vontade do legislador, o alargamento do conjunto dos beneficiados da decisão dotada de efeitos erga omnes (sempre que a mesma providência não puder ser alcançada pela via abstrata) não deve ser considerado inconstitucional, nem diante do obtuso ângulo da regionalização do direito.

Ora, se bem-sucedidos todos os membros de uma certa localidade que resolveram questionar a validade de uma lei que impôs aumento exagerado de tarifas bancárias, enquanto na comarca vizinha ninguém se dispôs a fazê-lo, estar-se-ia, do mesmo modo, diante de uma particularização da aplicação de lei em tese. Só que decorrente de uma indesejável multiplicação de demandas.

Invertendo então a conclusão daqueles que temem a disseminação dos efeitos de um único julgado, percebe-se que tal providência somente traz vantagens: diminui o número de demandas, trazendo assim maior celeridade; evita julgamentos divergentes e o conseqüente desprestígio da Justiça; além de impedir a aplicação desigual, numa mesma comunidade, do ato normativo questionado.

De resto, sempre estará aberta a via recursal. Ademais, enfraquecendo também a argumentação contrária à utilização da ACP e da AP no controle concreto, há ainda a possibilidade de a questão constitucional concreta ser rapidamente alçada ao conhecimento do STF, por via da argüição incidental de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do inciso I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/99.

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Sobre o autor
Juliano Taveira Bernardes

juiz federal em Goiás, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), ex-membro da magistratura e do Ministério Público do Estado de Goiás, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas de utilização da ação civil pública e da ação popular no controle concreto de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 130, 13 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4484. Acesso em: 5 nov. 2024.

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