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A LEF derrogou o CTN?

16/11/2003 às 00:00
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Sumário: 1. Introdução 2. A Lei ordinária e a lei complementar no ordenamento brasileiro 3. Da provável antinomia 4. Da prescrição: fundamento e breve análise conceitual. 5. Novamente a lei complementar 6. A interrupção da prescrição não é uma norma geral. 7. A solução do problema 8. Referências


1 INTRODUÇÃO

Ab initio, a pergunta acima esposada apresenta-se acoimada de gritante absurdo, pois se responderia, caso se admite-se a hierarquia entre as espécies legislativas, que a lei nº 8630/80 (Lei de Execução Fiscal), tendo status de simples lei ordinária, não poderia prevalecer sobre o Código Tributário Nacional, esta de caráter reconhecidamente complementar. Ou se diria que se trata de âmbitos materiais distintos, não havendo sentido na questão. Entretanto, em uma análise menos apressada, o problema ganha outro contorno e mostra-se profícua a uma profunda analise sistêmica em torno do ordenamento jurídico pátrio.

Como é de conhecimento geral, derrogar é revogar parcialmente. Uma lei revoga parte de outra, tira de vigor um dispositivo específico de outra. Posto isto, vamos colocar o problema: como resolver a antinomia do art. 174, parágrafo único, inciso I do CTN com o art. 8º §2º da LEF? Mutatis mutandis, é a citação pessoal do devedor ou o simples despacho do juiz ordenando a citação que interrompe a prescrição da ação de cobrança do crédito tributário?

Antes de adentrarmos nesta difícil empresa que é a resolução desta aporia, necessário se faz algumas digressões de caráter eminentemente propedêutico.


2. A LEI ORDINÁRIA E LEI COMPLEMENTAR NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

A relação entre essas duas espécies legislativas, no que tange a existência de hierarquia ou não, gerou intermináveis controvérsias na doutrina. ALEXANDRE DE MORAES leciona que a lei complementar se diferencia da lei ordinária em dois aspectos: o material e o formal. [1]

Materialmente, "somente poderá ser objeto de lei complementar matéria taxativamente prevista na constituição, enquanto todas as demais matérias deveram ser objeto de lei ordinária." Formalmente, "enquanto o quorum de lei ordinária é de maioria simples(art.47 CF), o quorum para aprovação de lei complementar é de maioria absoluta( art. 69)" [2]

A lei complementar, no dizer REALE, é um "tertius genius de leis, que não ostenta rigidez dos preceitos constitucionais, nem tampouco devem comportar revogação(perda de vigência) por força de qualquer lei ordinária superveniente" [3]. Sendo assim, "...a lei ordinária, o decreto-lei, e a lei delegada estão sujeitos a lei complementar, em conseqüência disso não prevalecem contra elas, sendo inválidas as normas que o contradisserem" [4]. Por sua vez, esta tese é criticada por forte corrente doutrinária, pois para esta ultima, ambas retiram o seu fundamento de validade diretamente da constituição, bem como possuem âmbitos materiais de distintas competências. [5]


3. DA PROVÁVEL ANTINOMIA

A questão visceral é quanto à interrupção da prescrição da ação da fazenda para cobrar o seu crédito, decorrente de uma relação tributária. Vejamos o arcabouço normativo da questão.

Tomando o roteiro da pirâmide kelseniana, comecemos pela Constituição da República, que no seu art. 146, III, b, dispõe, in verbis:

"Art. 146. Cabe à lei complementar:

I e II- omissis

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) omissis

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;" (g.n.)

Por sua vez, o CTN dispõe no seu art. 174, parágrafo único, inciso I:

"Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.

Parágrafo único. A prescrição se interrompe:

I - pela citação pessoal feita ao devedor;".

Posteriormente, com o surgimento da Lei 6.830/80, os tribunais se depararam com uma inovação trazida por esta, a saber:

"Art. 8º - O executado será citado para, no prazo de 5 (cinco) dias, pagar a dívida com os juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, ou garantir a execução, observadas as seguintes normas:

§ 2º - O despacho do Juiz, que ordenar a citação, interrompe a prescrição." (g.n.)

Se não bastasse esta confusão normativa, ainda há um dispositivo do digesto processual civil, a saber:

"Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição."

Diante deste variado plexo normativo, resta a pergunta: afinal, o que interrompe a prescrição da ação de cobrança de crédito tributário? Os tribunais têm se inclinados ora para o disposto na LEF, ora para a orientação do CTN, que nos parece ser a posição majoritária.

TRIBUTÁRIO PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. CITAÇÃO.INTERRUPÇÃO DE PRAZO PRESCRICIONAL. CTN, ART. 174. CPC, ART. 219, § 4º. LEI Nº 6.830/80 (ART. 8º, § 2º).

1. A primeira Seção assinlou que, " Em sede de execução fiscal, a mera prolação do despacho que ordena a citação do executado não produz, por si só, o efeito de interromper a prescrição, impondo-se a interpretação sistemática do art. 8º, § 2º, da Lei nº 6.830/80, em combinação com o art. 219, § 4º do Código de Processo Civil e com o art. 174 e seu parágrafo único do CódigoTributário Nacional" (Eresp. 36.855-1/SP - Rel. p/ acórdão Min. César Asfor Rocha) - Essa compreensão tem prevalecido.

2. Recurso improvido."

(Recurso Especial nº 950045686-9/RS, STJ, Rel. Min. Milton Luiz Pereira. Recorrente: Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Luiz Carlos Machado. Advogados Drs.: Alexandre Mariotti e outros e Olavo J. Steffen. j. 17.06.96, un., DJU 12.08.96, p. 27.456).

PROCESSUAL.TRIBUTÁRIO PRESCRIÇÃO. EXECUTIVO FISCAL.INTERRUPÇÃO. DESPACHO QUE DETERMINA A CITAÇÃO. LEI DE EXECUÇÕES FISCAIS. ART. 8º, § 2º DO CPC, ART. 219.

No executivo fiscal a prescrição é interrompida pelo despacho que determina a citação.

Precedente.

Recurso provido."

(Recurso Especial nº 111.282/DF, STJ, Rel. Min. José Delgado. Recorrente: Fazenda Pública do Distrito Federal. Recorrida: Maria Luiza Quintanilha R. Lorenzo Fernandes. j. 16.06.97, un., DJU 15.12.97, p. 66.223).


4. DA PRESCRIÇÃO: FUNDAMENTO E UMA BREVE ANÁLISE CONCEITUAL

O instituto da prescrição cumpre um papel de relevância impar no direito moderno, FRANCISCO ALVES DOS SANTOS JUNIOR, ao escrever sobre o fundamento da prescrição, assim dissertou:

"Mas, atualmente não há dúvida que a segurança das relações jurídicas, a fixação de certeza no mundo jurídico e a paz pública foram os principais fundamentos explicativos para o surgimento da prescrição e da decadência." [6]

Destarte, o conceito de prescrição nos é trazido pelo direito civil, através de uma construção doutrinária que veio desde os idos romanos. WASHIGTON DE BARROS MONTEIRO define a prescrição como "a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dela, durante determinado espaço de tempo." [7] Neste mesmo sentido, pronuncia-se ORLANDO GOMES "é o modo pelo qual um direito se extingue pela inércia do seu titular, durante certo lapso de tempo, que fica privado da ação própria para assegura-lo" [8]. Para PONTES DE MIRANDA decadência "é a exceção que alguém tem contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação" [9]

Do campo privatístico, o instituto da prescrição imigrou para o direito tributário. No Brasil, BERNARDO RIBEIRO DE MORAES nota que o CTN adotou essa concepção civilista da Prescrição, pois no art. 174 dispôs "A ação para cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data de sua constituição definitiva." Sendo que, em direito tributário, o instituto ganha mais amplitude, pois alem de extinguir a ação, "atinge também o próprio direito protegido pela ação, isto é, atinge o crédito tributário." [10]

O objeto deste estudo está relacionado com a interrupção do prazo prescricional, que segundo o art. 174, acima copiado, é de 5 anos, sendo que a interrupção "tem a força de interromper o fluxo temporal que termina com a prescrição. Interrompido o curso do tempo, cessa a contagem, começando tudo novamente, isto é, computando-se mais cinco anos." [11]


5. NOVAMENTE A LEI COMPLEMENTAR

Conforme posto acima, a constituição procurou estabelecer as funções da Lei Complementar em matéria tributária, dispondo no seu art. 196 o seguinte:

"Art. 146. Cabe à lei complementar:

I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas." (g.n.)

Em uma interpretação estritamente literal, tendência dominante na doutrina, SACHA CALMON NAVARRO CÔELHO, atribuiu quatro funções a Lei Complementar:

"(a) editar normas gerais; (b) dirimir conflitos de competência; (c) regular as limitações ao poder de tributar; (d) fazer atua ditames constitucionais" [12] (g.n)

Interessa-nos, dessarte, para efeito deste trabalho, a Lei Complementar como veículo introdutor de normas gerais de direito tributário. Neste diapasão, dissertando sobre a natureza das normas gerais, o referido SACHA CALMON pontificou "o terceiro objeto genérico da Lei Complementar é editar as normas gerais de direito tributário, expressão de resto polêmica a falta de um conceito estreito de norma geral no direito tributário brasileiro, com a doutrina falhando por inteiro no encalço de conceituar o instituto de modo insofismável." [13](g.n.)

Esta perplexidade do professor mineiro tem uma explicação: este eminente doutrinador cai, neste particular, em um vício comum a grande parte da doutrina tradicional, esta corrente científica denominada por PAULO DE BARROS CARVALHO de "escola bem comportada do Direito Tributário brasileiro" [14] que seria "a linha tradicional de nossos tributaristas, de formação ortodoxa, apegada a leitura pura e simples do arranjo textual do preceptivo, erigiu seu entendimento procurando respeitar todas as cláusulas, à letra, sem vislumbrar o cabimento de quaisquer outras ponderações alheias a estrutura lingüística do comando." [15] Tal opção interpretativa, ao vislumbrar, em geral, três funções da lei complementar, cai no vazio no momento que busca conceituar as chamadas "normas gerais’, sendo assim, supondo estar essa via doutrinária correta, questiona-se: "E qual era o conteúdo das normas gerais de direito tributário para a interpretação singularmente literal? Ninguém chegou a anunciá-lo! Estudássemos os autores que adotam essa posição simplista, e debalde encontraríamos qualquer esforço voltado a demarcar o significado dessa espécie jurídica. Uma verificação objetiva e imparcial teria a virtude de comprovar, imediatamente, que nenhum simpatizante dessa corrente logrou a declarar os lindes da matéria, fixando-lhe a geografia normativa. Tal doutrina até hoje não foi elaborada." [16]

Por sua vez, ROQUE ANTONIO CARRAZA assevera que "ora, estabelecer normas gerais é apontar as diretrizes, os lineamentos básicos, é operar por sínteses, indicando e resumindo. Nunca descendo a assuntos de economia interna, do peculiar interesses das pessoas políticas" [17]. Mais a frente, prossegue na sua clarividência: "...Assim, proclamamos, desde agora, que tal Lei Complementar só pode explicitar o que está implícito na constituição. Não pode inovar, mas, apenas, declarar. " [18](g.n.) Este também é o entendimento do não menos douto SOUTO MAIOR BORGES, para quem " há dois grupos de Lei complementar em direito tributário: 1º) LC que fundamentam a validade de atos normativos (Lei Ordinária, Decreto Legislativo e convênios) e 2º) Lei Complementar que não fundamentam a validade de outros atos normativos, atuando diretamente." [19]

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Desta feita, o professor ROQUE CARRAZA, se auto-incluindo na denominada corrente dicotômica liderado por GERALDO ATALIBA [20], conclui que: " portanto, somos de opinião que a lei complementar em exame só poderá veicular normas gerais em matéria de legislação tributária, as quais, ou disporão sobre conflitos de competência em matéria tributária, ou regularam as limitações constitucionais ao poder de tributar" [21] (g.n.).

Ao lado do professor CARRAZA, está o eminenente PAULO DE BARROS CARVALHO. Este, ao enveredar neste campo referente à função da lei complementar em direito tributário, divide, como foi acima antecipado, dois entendimentos doutrinários: 1) o tradicional, afeitos a uma interpretação gramatical; 2) e o posicionamento baseado em uma interpretação sistêmica. Ao explicar este segundo, CARVALHO começa por uma crítica a letra do art. 146 da constituição, ponderando que "preceituou o legislador constitucional que toda a matéria tributária está contida no âmbito de competência da lei complementar. Aquilo que não cair na vala explícita da sua ‘especialidade’ (dispor sobre ‘conflitos de competência’ e regular as ‘limitações constitucionais ao poder de tributar’) caberá, certamente, no domínio da implicitude de sua ‘generalidade’ (estabelecer normas gerais). Que assunto poderia escapar de poderes tão amplos?Eis aí o aplicador do direito novamente atônito! Pensará: como é excêntrico o legislador da constituição! Demora-se por delinear, pleno de cuidados, as faixas de competências da União, dos Estados, do Distrito-Federal,e dos Municípios e, de entremeio, torna tudo aquilo supérfluo, na medida em que põe nas mãos do legislador complementar a iniciativa de regrar os mesmos assuntos, fazendo-o pelo gênero ou por algumas espécies que lhe aprouve consignar, esquecendo-se de que as eleitas, como as demais espécies, estão contida no conjunto que representa o gênero." [22]

Por fim, objetivando evitar que as "normas gerais em direito tributário" continuem a ser um canal de livre interferência da União nos interesses jurídico-tributário dos demais entes federais, conclui CARVALHO que "a lei complementar do art. 18, § 1º da Constituição anterior, tinha uma única finalidade: veicular normas gerais de direito tributário. Estas, por seu turno, exerciam duas funções: dispor sobre conflitos de competência das entidades tributantes e regular as disposições constitucionais ao poder de tributar." [23] Tal hermenêutica do texto pretérito continua plenamente válida em relação a atual carta constitucional [24].


6. A INTERRUPÇAO DA PRESCRIÇÃO NÃO É UMA NORMA GERAL

Do exposto resta concluir que quando o CTN dispôs em seu art. 174, parágrafo único, inciso I, a cerca da interrupção da prescrição, não estava o digesto tributário utilizando-se de uma norma geral, e sim tratando de um tema de caráter eminentemente processual. Ora, como afirma ZELMO DENARI "pelo fato de veicularem normas regras de observância obrigatória, logo ficou assentado o entendimento que as leis complementares, apesar de lei editada pela união, ostentam caráter nacional, pois vinculam inclusive o legislador federal." [25] (g.n.) Acontece que lei de natureza processual é de competência da União, enquanto ente da federação, que disporá mediante lei ordinária.

Interessante, pois, o posicionamento de HUMBERTO THEODORO JUNIOR:

"se é certo que a prescrição, em si mesma, é mais uma figura de direito material do que processual, a forma de interrompê-la, na pendência do processo é questão que se comporta perfeitamente entre as regras ou normas do direito processual civil, cujo tratamento legislativo incumbe ao legislador federal ordinário. não se trata, portanto, de assunto privativo de lei complementar sobre normas gerais de direito tributário" (g.n.)

Pergunta-se: ao tratar de assunto de direito processual, o CTN ofende a constituição, ainda que a competência para legislar sobre processo civil seja da União, via congresso nacional, a teor do art. 22, I, da CR88? A resposta encontra-se no item seguinte.


7. A SOLUÇÃO DO PROBLEMA

Embora o CTN tenha ido além de seu mister, isso não implica invalidade ou nulidade, a priori, da regra contida no art. 174, embora não seja esta uma norma geral.

SACHA CALMON, agora dissertando sobre as técnicas de reconhecimento, contempla três modalidades: a adaptação, a rejeição ou a recepção. E assim doutrina: "voltando à lei que, votada como complementar, trata de objeto reservado à lei ordinária federal, temos que ocorre o fenômeno da adaptação: o sistema adapta a pretensa lei a função que lhe determinou o ordenamento ratione materiae. No caso de lei complementar regulando a matéria de lei ordinária estadual e municipal, ocorre o fenômeno da rejeição. O sistema jurídico rejeita a norma, vedando o seu ingresso no ordenamento para evitar a invasão de competência fixada na CF. O mesmo fenômeno da recepção ocorrerá se a lei ordinária federal cuidar de matéria reservada à lei complementar. Já o fenômeno da recepção ocorre quando o sistema reconhece a existência da lei, sua validade formal, sua validade material e, portanto, se vigente a sua eficácia." [26](g.n.)

Logo, aparentemente o CTN deve ser adaptado ao caráter de lei ordinária, já que não se configura hipótese de rejeição, pois, in casu, ambas as leis (complementar e ordinária) se compreendem na competência do mesmo ente federal, a União, ou, ainda nas palavras de SACHA CALMON "se (a lei complementar) regula matéria de lei da competência da União reservada à lei ordinária, ao invés de inconstitucionalidade, incorre esta em queda de status, pois terá valência de simples lei ordinária federal. Abre-se ensanchas ao brocardo processual "nenhuma nulidade sem prejuízo". Estar-se-ia frente ao fenômeno da adaptação." [27]

Dissemos aparentemente, pois isto nem chega a ocorrer. Não há adaptação. Na verdade o art. 174, parágrafo único, inciso I, NUNCA FOI LEI COMPLEMENTAR! Volte-se, em uma ilação histórica, e ver-se-á que:

"O Código Tributário Nacional, na época de sua publicação ainda não denominado como tal, foi promulgado como lei ordinária, Lei n.º 5.172/66, sob a égide da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18/09/46, visto que não existia, perante este Diploma Constitucional, a figura da lei complementar.

Quando da promulgação da Carta Constitucional de 1967, foi criada a figura da lei complementar e reservada a esta, pelo art. 18, §1º, abaixo transcrito, a competência para estabelecer normas gerais de direito tributário.

‘art. 18, §1º Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sôbre conflitos de competência tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder tributário.’

Como a Lei n.º 5.172/66 já disciplinava normas gerais em matéria tributária, foi esta recepcionada pela Constituição de 1967 como lei complementar e, como se não bastasse a automática aplicabilidade do Princípio da Recepção, foi promulgado o Ato Complementar n.º 36, em 13/03/1967, que, em seu art. 7º, denominou esta lei de Código Tributário Nacional, conferindo-lhe status de lei complementar.

A Constituição Federal de 1969 manteve inalterado o §1º do art. 18 da Constituição Federal de 1967. Por conseguinte, tendo sido o Código Tributário Nacional recepcionado como lei complementar pela Carta Constitucional de 1967, e como a matéria por este tratada continuou, pelas Constituições posteriores, a de 1969 e a de 1988, reservada à lei complementar, manteve-se e mantém-se até hoje este código como lei complementar." [28]

Sendo assim, o dispositivo em comento, sempre se manteve como lei ordinária, não chegou sequer a galgar status de lei complementar. E não se diga que esta conclusão é desarrazoada, pois, ninguém menos que HUGO DE BRITO MACHADO vai mais além: "muitos afirmam que o CTN é hoje uma lei complementar, não obstante tenha sido aprovada como lei ordinária. A afirmação deve ser explicada. Na verdade o CTN continua sendo lei ordinária, ocorre que ela trata de matéria que, hoje, está reservada a lei complementar." [29]

Por fim, resta-nos as seguintes conclusões:

1.o art. 174, parágrafo único, inciso I do CTN é de dispositivo concernente a lei ordinária;

2.a sua matéria foi regulada pela Lei de Execução fiscal que, no seu artigo 8º, § 2°, dispôs que "O despacho do Juiz, que ordenar a citação, interrompe a prescrição";

3.a antinomia inicial é resolvida com fundamento na conhecida regra da lex posterior derrogat priore.

4.se confrontado com o disposto no CPC, art. 219, o dispositivo análogo da lei 6.830/80, art. § 2°, deve prevalecer sobre aquela, pois esta é norma de caráter especial que rege as execuções fiscais, aplicando o CPC em caráter subsidiário.

5.respondemos afirmativamente a questão em epígrafe. A lei 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal) derrogou, in casu, a lei nº 5.172/66 ( Código Tributário Nacional). Ou seja, basta a o despacho do juiz ordenando a citação para que a prescrição quede interrompida.

Desta conclusão o leitor poderá estar se perguntando: e como fica o art. 146 da CF que determinar ser a prescrição matéria de lei complementar? Quem responde é PAULO DE BARROS CARVALHO: "...e como fica a dicção constitucional que despendeu tanto verbo para dizer algo bem mais amplo? Perde-se no âmbito da rotunda formulação pleonástica, que nada acrescenta. Vejamos pode o legislador complementar, invocando a disposição no do art. 146, III, a, definir um tributo e suas espécies? Sim, desde que seja para dispor conflitos de competência...e quanto à obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários? Igualmente, naquela condição de satisfazer àquela finalidade primordial." [30]


8. REFERÊNCIAS

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

DENARI, Zelmo. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Forense, 2000.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 20.ed São Paulo: Malheiros, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário.v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

SANTOS JUNIOR, Francisco Alves dos. Decadência e Prescrição no Direito Tributário brasileiro: análise das principais teorias existentes e proposta para alteração da respectiva legislação. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.


9.NOTAS

01. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p.548

02. MORAES, Alexandre de. Op. Cit. p.548

03. REALE, Miguel. Parlamentarismo Brasileiro. São Paulo: 1962. p.110. apud MORAES, Alexandre de. op. cit, p.547.

04. FERREIRA FILHO, Do Processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p.236-237. apud MORAES, Alexandre de. op. cit, p.547.

05. Nesta corrente estão, entre outros, CELSO BASTOS e MICHEL TEMER.

06. SANTOS JUNIOR, Francisco Alves dos. Decadência e Prescrição no Direito Tributário brasileiro: análise das principais teorias existentes e proposta para alteração da respectiva legislação. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.31.

07. BARROS MONTEIRO, Washigton. Curso de Direito Civil: parte geral. Vol1. p.310. apud MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário.v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

08. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. apud MORAES, Bernardo Ribeiro. op. cit, p.470.

09. MIRANDA, PONTES. Tratado de Direito Privado. p. 100. apud MORAES, Bernardo Ribeiro de. op. cit, p.470.

10. MORAES, Bernardo Ribeiro de. op. cit, p.472.

11. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.464.

12. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.100.

13 CÔELHO, Sacha Calmon Navarro. op. cit, p.107.

14. CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit, p.196.

15. CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit, p.195.

16. CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit, p.198.

17. CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.792.

18. CARRAZA, Roque Antonio. op. cit, p.793

19. BORGES, José Souto Maior. Lei complementar Tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. apud CÔELHO, Sacha Calmon Navarro. op. cit, p.101.

20. CARRAZA, Roque Antonio. op. cit, p.794.

21. CARRAZA, Roque Antonio. op. cit, p. 794.

22. CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit, p. 201.

23. CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit. p.196.

24. CARVALHO, Paulo de Barros. op. cit. p.209.

25. DENARI, Zelmo. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Forense, 2000. p.135.

26. CÔELHO, Sacha Calmon Navarro. op. cit, p.100.

27. CÔELHO, Sacha Calmon Navarro. op. cit, p.100.

28. Cf. Dênerson Dias Rosa. Da impossibilidade de suspensão do prazo prescricional nas execuções de débitos tributários. colhido em www.direitonet.com.br/doutrina/artigos/x/10/05/1005/

29. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2002. p.73.

30. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit. p. 208-209.

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Sobre o autor
Eduardo Francisco de Souza

acadêmico da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Eduardo Francisco. A LEF derrogou o CTN?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 133, 16 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4491. Acesso em: 28 mar. 2024.

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