Nome social: propósito, definição, evolução histórica, problemas e particularidades.

As principais diferenças entre o nome social e o nome civil à luz das recentes inovações legislativas

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08/12/2015 às 19:31
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O artigo visa explanar os conceitos básicos para o entendimento do nome social. Enumera os pontos em comum presentes nas diversas legislações esparsas que tratam sobre o tema. São pontuadas as principais diferenças face o nome civil.

1. UMA DEMANDA CONSULTIVA INUSITADA

            O presente artigo narra uma situação nova, com a qual venho me deparando no trabalho como advogado público e que é fruto de uma nova geração de leis protetivas brasileiras, que tentam resolver a complexa e delicada questão dos conflitos relativos à sexualidade. Quem já ouviu falar da “Carteira de Identificação Social”?

            Recentemente, a Gerência de Recursos Financeiros (GRM) da fundação pública na qual estou lotado encaminhou à Procuradoria uma consulta indagando como operacionalizar o pagamento específico de uma estudante que deveria receber valores daquela instituição.

            A estudante apresentou, para seu cadastro, diversos documentos, dentre os quais RG, CPF, comprovante de residência e “Carteira de Identidade Social”. Nos primeiros documentos o prenome constante era JOÃO. No último documento, todavia, constava a denominação MARIA[1]. Em conversa com funcionários da instituição, a estudante deixou clara a sua preferência em ser tratada pela denominação feminina, solicitando, quando possível, que nos documentos emitidos pela Fundação, constasse o seu “nome social”.

            Perplexos, os operadores dos pagamentos tinham dúvidas sobre como emitir os documentos bancários.

            Afinal: O que é o “Nome Social”? Qual a sua origem? Como tratar a requerente no dia-a-dia (JOÃO ou MARIA)? Como nomear o estudante em documentos oficiais? Em que nome efetuam-se os pagamentos? Qual o sexo do requerente?

            Considerando a nova realidade e a tendência crescente de divulgação e utilização do instituto, traçamos abaixo o panorama geral sobre o tema.

 

2. TRANSGENDERISMO. DO RECONHECIMENTO DA DISFORIA DE GÊNERO COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA. A DIFERENÇA ENTRE O TRANSGÊNERO E O HOMOSSEXUAL.

            A ciência médica tem se utilizado do termo “transgenderismo” para se referir aos pacientes que possuem determinação física de um sexo mas identificam-se, psicologicamente, com outro. Em outras palavras, trata-se de “um homem em corpo de mulher” ou “uma mulher em corpo de homem”.

            O Dr. Norman Spack, professor de pediatria médica da Harvard Medical School, explica que:

Indivíduos transgêneros são pessoas que, de acordo com todos os indicativos biológicos, são masculinos ou femininos, mas ainda assim, sentem-se como membro do sexo oposto. O desconforto de que sofrem é chamado de disforia de gênero.

(...)

A disforia de gênero é listada como uma condição psiquiátrica no manual de códigos de diagnóstico psiquiátrico DSM-IV. Um indivíduo transgênero que não passou por terapia hormonal ou cirurgia pode necessitar de medicação psicofarmacológica, mas depois que um paciente recebe tratamento médico e/ou cirúrgico, os medicamentos psicotrópicos são muitas vezes desnecessários.

Quase todos os adultos transgêneros relatam a sensação de estar no corpo errado desde a infância. As histórias dos pacientes estão em sintonia com a prática comum de se vestir secretamente com roupas do sexo oposto durante a infância. No entanto, a idade em que um indivíduo transgênero reconhece plenamente a sua identidade de gênero varia, de meados da infância até a meia idade. Esse reconhecimento atrasado geralmente pode ser atribuído ao medo da estigmatização e rejeição pela família, amigos e empregadores.

(...). Uma pequena percentagem de crianças que são enfáticas e consistente no seu desejo de ser do sexo oposto (menos de 20% dos acima) prefere ser chamada por um pronome e nome coerente com sua identidade de gênero. Seus amigos, roupas e atividades correspondem a essa identidade. Seu maior medo é a puberdade, devido a mudanças irreversíveis que ameaçam a forma como elas são percebidas (a sua “atribuição de gênero”). Durante a adolescência, quando características sexuais secundárias indesejadas e permanentes transformam o corpo do paciente em uma forma adulta que não condiz com o cérebro, depressão e ansiedade são reações típicas. Quando a menstruação se torna um lembrete mensal de feminilidade em uma adolescente com uma identidade masculina, o comportamento auto-destrutivo é comum. A incidência de suicídio entre os jovens transexuais é alta. Transgêneros adultos que consideram perigoso reconhecer publicamente a sua identidade de gênero podem acabar adotando um estilo de vida de casamento e paternidade que corresponda ao seu sexo genético. Inevitavelmente, a manutenção desta mentira cobra seu preço psíquico”[2]. (grifo nosso)

            A disforia de gênero (ou transtorno de identidade de gênero) é fenômeno médico há muito estudado. O paciente diagnosticado como transgênero[3] é a pessoa que possui sexo fisicamente definido, mas com ele não se identifica. Como consequência, esse indivíduo tenta modificar o seu sexo, agindo e se vestindo como alguém do sexo oposto (travestis) ou realizando intervenção cirúrgica para a mudança permanente de sexo (transexual). O Transgenderismo é o gênero da  condição psíquica, sendo o transexualismo e o travestismo suas manifestações mais comuns[4].

            Um ponto é muito importante para a compreensão do instituto do “Nome Social” é a distinção entre identificação sexual (questão dos transgêneros) e a opção sexual (questão dos homossexuais).

A divergência entre o sexo físico e a identificação sexual é uma patologia reconhecida pela ciência médica como transgenderismo[5]. Significa que determinada pessoa não se identifica com o seu sexo físico: é a recorrente descrição de uma mulher que está “presa” no corpo de um homem[6].

De outro lado, em questão independente da identificação sexual (como a pessoa se vê), a opção/orientação sexual indica a atração sexual de um indivíduo pelo outro, que pode ser de sexo diferente (para heterossexuais), do mesmo sexo (para homossexuais) ou ambos (para os bissexuais). Essa condição não guarda relação com a auto-identificação do indivíduo e seu sexo físico[7].

A presente diferenciação foi estabelecida de forma clara nos “Princípios de Yogyakarta”, que foram reproduzidos, no Brasil, pelas recentes resoluções do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT). A Resolução nº. 11 de 18 de dezembro de 2014 assim disciplina:

§ 1º. Para efeitos desta Resolução, considera-se, de acordo com os Princípios da Yogyakarta:
I - Orientação sexual "como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas: e

II - Identidade de gênero "a profundamente sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação
da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos".

§ 2º. Para efeitos desta Resolução, considera-se nome social aquele pelo qual travestis e transexuais se identificam e são identificadas pela sociedade

 

Atualmente, o transgênero sofre de condição classificada pela ciência médica como um patologia, o homossexual não. O homossexual homem (v.g.) prefere outros homens como parceiros, mas isso não significa que ele deseje ter nascido mulher ou que intente realizar uma cirurgia de mudança de sexo. Ele está satisfeito com o seu sexo físico. Consoante a ciência médica e psicológica moderna, sua opção nada mais é do que a manifestação das diferentes idiossincrasias humanas, pautadas pela pluralidade de comportamentos, frutos do complexo fenômeno da personalidade[8].

Em resumo, o homossexual (não transgênero) deseja continuar com o seu corpo, conforme sua morfologia de nascença, aceitando seu nome masculino, ao passo que o transgênero é pessoa que quer tornar-se de outro sexo, rejeitando seus apelidos de nascença e se identificando como se do sexo oposto fosse[9].

            Nesse diapasão, existem casos relatados e catalogados de crianças que, desde cedo, identificam-se com o sexo oposto e assumem instintivamente um “outro nome” pela qual preferem ser chamados. Esse “outro nome” (ou nome social) surge como fenômeno natural de defesa da personalidade sexual assumida pelo paciente, sendo um dos indicativos do trangenitalismo[10].

Nessa toada, o instituto do “nome social” não se trata de construção jurídica aleatória, é resultado de amadurecimento do ordenamento jurídico para dar amparo legal a fato social consolidado e relatado pela ciência médica.

 

3. HISTÓRICO NORMATIVO E PREVISÃO LEGAL

            Em todo o Brasil, o primeiro diploma normativo que temos notícia a regular a utilização do nome social foi editado pela Secretaria de Estado de Educação do Estado do Pará que, por meio da Portaria nº. 16/2008-GS, estabeleceu, de forma sucinta que: “a partir de 02 de janeiro de 2009, todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará passarão a registrar, no ato da matrícula dos alunos, o pré-nome social de travestis e transexuais”.   

O Estado do Pará, seguindo uma tendência de vanguarda nacional sobre o tema, editou posteriormente o Decreto nº. 1.675 de 21 de maio de 2009, que assim dispõe: “Art. 1º A Administração Pública Estadual Direta e Indireta, no atendimento de transexuais e travestis, deverá respeitar seu nome social, independentemente de registro civil”. Posteriormente, foi editado o Decreto nº. 726 de 29 de abril de 2013 que instituiu, no âmbito estadual, o respectivo documento de identificação, que agora é emitido pela Polícia Civil do Estado, como resultado do programa estadual “Pará sem Homofobia”. A expedição da carteira foi alvo de estudos por parte do Conselho Estadual de Segurança Pública – CONSEP, que editou a Resolução nº. 210/2012-CONSEP, com o fim declarado de realizar “mudança dos valores da sociedade”, impedindo o constrangimento de travestis e transexuais, além de proporcionar espaço para a superação de desigualdades de gênero.

No âmbito federal, a primeira regulamentação oficial do instituto do “Nome Social” ocorreu somente em 2010, com a edição da Portaria nº. 233 de 23 de maio de 2010 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.  Ela que garantiu aos servidores públicos federais travestis e transexuais o direito de se utilizar do nome social (assim entendido como o nome pelo qual o respectivo servidor é conhecido pelo seu meio social) nas comunicações internas e externas dos órgãos públicos federais, inclusive para criação de endereço eletrônico funcional, crachás e logins de informática.

            Surge então o instituto singular do “Nome Social” para evitar conflitos internos ao serviço público federal. Passou-se a autorizar, de forma oficial, que os servidores transexuais e travestis indicassem a forma pela qual preferiam ser tratados dentro de suas próprias repartições. Mitigam-se as situações de constrangimento dessa classe de servidores que, conforme sabido, enfrentam diversos problemas relacionados ao preconceito, dentro de seu próprio ambiente de trabalho[11].

No âmbito da União, o “Nome Social” só é admitido ao servidor público, não havendo previsão de tratamento dos usuários do serviço público conforme nome de sua preferência.

            Nos últimos 5 (cinco) anos, houve uma proliferação de diplomas normativos que instituem o “nome social” nos mais diversos entes  federativos.

O Estado do Rio Grande do Sul, editou o Decreto nº. 49.122, de 17 de maio de 2012, e instituiu a Carteira de “Nome Social” para travestis e transexuais, que servem para tratamento nominal em toda a administração pública estadual.

            O Distrito Federal publicou, em 09/05/2013, o Decreto nº. 34.350, regulamentando o instituto perante a administração distrital, contudo, no dia seguinte, o Diário Oficial publicou a revogação do respectivo decreto.

            Há também legislação instituindo o nome social para travestis e transexuais nos seguintes entes federativos: Piauí (Lei N.º 5.916/2009), Estado de São Paulo (Decreto nº 55.588/2010), Estado de Pernambuco (Decreto nº 35.051/2010), Estado do Rio de Janeiro (Decreto nº 43.065/2011), Estado do Mato Grosso do Sul (Decreto nº. 13.684/2013). De forma setorial, apenas para tratamento perante alguns órgãos públicos, podemos mencionar: na Bahia, a Portaria nº. 220/2009-SEDES; na Paraíba, a Portaria nº. 41/2009-GS; no Município de Manaus, a Portaria nº. 151/2010-GS/SEMASDH.

            O Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM do ano de 2015 passou a prever, em seu edital, a possibilidade de utilização do nome social para os estudantes travestis e transexuais que assim desejem.

            Recentemente, foram publicadas a Resolução nº. 11 de 18/12/2014 e a Resolução nº. 12 de 16/11/2015, ambas do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros, que traçam parâmetros federais para a utilização do nome social em boletins de ocorrência e dentro de estabelecimentos escolares.

            O instituto do “Nome Social”, como se percebe, é novíssimo, mas está a se difundir rapidamente entre os diversos entes federativos, pelo que merece ser melhor discutido sob o prisma jurídico, pois tende a se tornar uma regra de observância obrigatória em todas as esferas do serviço público.

 

4. O QUE É O NOME SOCIAL? CARACTERÍSTICAS JURÍDICAS.

            Sob o prisma sociológico, o nome social é aquele pelo qual as pessoas travestis e transexuais se  reconhecem, bem como  são  identificadas por sua comunidade e em meio comunitário. É, portanto, o nome usualmente empregado nas relações diárias do indivíduo, uma vez que a vida cotidiana não exige os rigorismos da exibição de documentos oficiais para interagir com outras pessoas[12].

            É comum que, em razão de alterações na sua compleição física, propositalmente modificada, travestis e transexuais masculinos identifiquem-se perante os outros com nomes femininos, e vice-e-versa. Tais pseudônimos acabam por se difundir perante terceiros e constituem, com o tempo, a forma usual de referenciação de seus respectivos usuários[13].

            Sob o prisma jurídico, ante a ausência diploma normativo federal a regular o tema de forma homogênea, utilizaremos, como paradigma analítico, a legislação do Estado do Pará, que é uma das primeiras sobre o assunto e disciplina a matéria de forma satisfatória e relativamente completa. Em cotejo analítico, podemos perceber que a legislação dos estados tendem a se repetir, com suaves nuances.

            Pela legislação paraense (que está em sintonia com a dos demais entes federativos), o nome social difere-se o nome civil nos seguintes aspectos legais: (a) só pode ser utilizado por travestis e transexuais (atenção, o nome social não é utilizado por homossexuais)[14]; (b) só pode ser adquirido posteriormente ao nome civil[15]; (c) é livremente escolhido, devendo ser fruto, também, do reconhecimento de uma alcunha notoriamente atribuída a um sujeito; (d) deve ser aceito pelo seu usuário[16]; (e) não pode ser alterado[17]; (f) goza de preferência sobre o nome civil, devendo ser utilizado sempre que o uso do nome civil não seja obrigatório nos termos de qualquer outra legislação (notadamente a bancária).

            Ao cabo, o nome social serve para a identificação nominal do cidadão por parte do poder executivo da Administração Pública. Os funcionários públicos da administração pública estadual, sob pena de falta funcional, deverão se dirigir ao cidadão pelo seu nome social[18].

Para ilustrar, um professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), v.g., passa a ser obrigado a se dirigir ao estudante transexual pelo nome social eventualmente registrado. É o nome social que deverá constar nas listas de chamadas e nos boletins. Limita-se, sempre que possível, a exposição vexatória do travesti ou transexual a um nome não corresponde à sua aparência física ou identificação sexual.

Somente nos casos de proteção de interesse de terceiros, expedição de documentos externos, ou em situações em que o interesse público exigir, é que se poderá utilizar o nome civil (que possui regras mais rigorosas de registro). É o que ocorre, por exemplo, na expedição de um comprovante de matrícula ou diploma, que servirá para fazer prova da situação de estudante perante terceiros, onde deve ser utilizado o nome civil. O mesmo ocorre com títulos que serão descontados em instituições financeiras.

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Nos termos da própria legislação, a carteira de nome social não tem validade para fora da administração pública estadual. A sociedade civil ou outros órgãos federativos não são obrigados, pela legislação paraense (e demais diplomas de outros entes), a respeitar o nome social. A solução é uma forma adotada, pelo Governo do Estado, de melhor prestar serviços públicos para a minoria do movimento LGBT[19].

Em que pese não haver indicação nas normas que disciplinam o “nome social”, entendemos que existem outros 2 (dois) requisitos que devem ser considerados para a sua obtenção, quais sejam: (a) é escolha personalíssima de seu usuário[20]; (b) não deve ser adquirido antes da maioridade civil[21].

A análise desses dois requisitos (não expressos nas leis que disciplinam o tema) merece especial atenção e deve ser feita de forma conjunta.

A exigência da maioridade pode ser extraída do art. 4º do Código Civil, que declara legalmente incapazes os menores de 18 (dezoito). Não há de se reputar válida a gravíssima escolha de ser utilizar o nome social por parte de incapaz, eis que a escolha acompanhará o optante pelo resto da vida, sem previsão legal de alteração e com possibilidade de exposição de pessoas ao ridículo[22]. Caso, eventualmente, algum ente federativo facilite a mudança do nome social quando a pessoa atingir a maior idade, aí sim entendemos que a alcunha poderá ser escolhida pelo menor, pois mitigado está o risco de constrangimentos perenes com base em escolhas levadas à cabo por inimputáveis.

Da igual sorte, não há que se admitir que os pais ou tutores escolham o nome social do menor, na medida que isso importa em 3 (três) sérias decisões de foro íntimo do seu usuário: (a) declaração de que o menor é travesti ou transexual, resultando, na prática, em optar pela identidade sexual do menor; (b) declaração de que há um nome pelo qual ele é reconhecido em sociedade e que diverge do seu nome civil; (c) declarar que o menor aceita o respectivo nome como se seu fosse.

Entendemos que os pais não podem realizar nenhuma das respectivas escolhas em nome de seus filhos. Deve-se levar em conta que os pais já escolheram (e erraram) ao indicarem o nome civil do menor (que não o aceita). O nome social é, justamente, uma forma célere de se tentar substituir, para as relações cotidianas, o nome civil que foi escolhido pelos pais e se revelou incompatível com a identificação sexual do seu usuário.

Não se deve ignorar que, frequentemente, os pais são as pessoas que mais resistem a reconhecer a identificação sexual dos filhos que, pelos mais diversos motivos, sofrem todo tipo de rejeição, ainda no seio familiar.

Admitir que os pais escolham o nome social do filho pode ser um verdadeiro retrocesso ao instituto, eis que permitirá, de forma imutável, que os pais ratifiquem as suas próprias preferências, em detrimento das opções discrepantes e “reprovadas” do real destinatário da norma protetiva.

 

5. DA LEGALIDADE DA INSTITUIÇÃO DA CARTEIRA DE NOME SOCIAL POR PARTE DOS ENTES FEDERATIVOS E A MOTIVAÇÃO PRÁTICA PARA O SEU SURGIMENTO.

Nos termos do art. 22 da Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (grifo nosso)

O Código Civil disciplina que:

Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

A doutrina civilista é unânime em classificar o direito ao nome um instituto típico dos direitos de personalidade, a serem regulados de uniformemente por meio de legislação civil nacional[23].

Não há possibilidade do Estado-membro legislar sobre o nome civil. Todavia, a Carta Magna também enuncia que:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

(...)

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

 

Conforme aceito na doutrina e na ciência médica, a sexualidade física discrepante da identificação sexual do indivíduo é causa frequente de transtornos psicológicos, constituindo vetores para quadros depressivos e diversas outras patologias psíquicas, incluindo o aumento da tendência suicida, motivo pelo qual a questão toma relevo público[24].

Por fundamentos semelhantes, ganhou notoriedade a ACP nº. 2001.71.00.026279-9/RS, que visava obrigar o Sistema Único de Saúde a incluir a transgenitalização como tratamento terapêutico a ser obrigatoriamente custeado pelos serviços públicos de saúde. Atualmente, a questão está superada pela Portaria nº. 2.803/2013, na qual o SUS incluiu a transgenitalização como um dos tratamentos médicos a ser custeado com recursos públicos.

Percebendo que a questão sexual, se tratada de forma indevida, pode gerar ou agravar as condições psicológicas daquele que se auto identifica de forma divergente daquela anotada em registro civil, é perfeitamente adequado que os governos estaduais, na execução de serviços públicos, busquem conciliação com as práticas mais recomendadas pela medicina moderna, evitando tratar o usuário por apelido que ele não reconhece como seu e que, na grande maioria dos casos, lhe causa constrangimento[25].

O cidadão que se dirige ao órgão público competente e solicita a expedição de uma Carteira de Nome Social não só declara que o seu nome civil é incompatível com a forma pela qual é reconhecido na sociedade, como refuta o seu nome civil e opta, de forma irretratável, por um nome social de que aceitou como sendo seu. É uma indelével declaração de preferência pessoal que não pode ser ignorada.

Conforme indicado na legislação supracitada, não compete ao Estado-membro legislar sobre direito civil. Aquele que optou por um nome social continua a possuir a sua identificação civil, instituto jurídico inerente aos direitos irrenunciáveis e imprescritíveis de personalidade.

Ao legislar sobre nome social, o Estado-membro estaria, na verdade, implementando política pública de promoção dos direitos humanos, buscando o objetivo republicano de eliminação da discriminação por sexo e, derradeiramente, legislando de forma suplementar sobre saúde. Todas as referidas posturas são de competência desse ente federativo conforme arts. 3º, IV; 23, II e 24 XII da Carta Magna.

Também se pode entender que, ao limitar a abrangência do nome social às  repartições públicas, o Estado membro está, ao  fim, disciplinando normas internas de funcionamento do serviço público. Essa concepção, todavia, impede a expansão do instituto do nome social  para além das relações cidadão e estado. Ao editar os Decretos Estaduais 1.675/2009 e Nº 726/2013, o Governador do Estado do Pará não fez nada mais do que regulamentar o modus operandi da prestação de serviços públicos perante o usuários transexual e travesti, que passam a exigir atenção especial em razão da dicotomia na sua identificação.

Pelos fundamentos expostos, é completamente constitucional a opção tomada por diversos Estados-membros e municípios em legislar sobre o “nome social” de travestis e transexuais. O “nome social” é plenamente compatível com o arcabouço jurídico pátrio, surgindo como um passo inicial, mas relevante, na histórica luta contra a discriminação em razão da identificação sexual do indivíduo.

Na prática, o nome social serve como atalho aos tortuosos caminhos burocráticos que um travesti ou transexual deve enfrentar para alterar o seu registro civil. A alteração dos dados civis é excepcional, e nem poderia ser de outra forma.

A identificação civil é a referência legal do cidadão. É pelo nome civil que o ser humano, desde o nascimento, é identificado como portador de direitos e deveres. Na relação com terceiros, utiliza-se o nome civil para celebrar contratos e firmar compromissos. Admitir a livre alteração do nome civil causaria celeuma social, instabilizando relações jurídicas e permitindo confusão entre os diversos sujeitos de uma comunidade.

Por corolário, qualquer alteração no registro civil deve ser precedida de processo solene, na qual são explicitadas as razões da mudança perante um juiz, que autoriza somente as alterações minimamente necessárias para solucionar a controvérsia instaurada. Via de regra, aquele de seja alterar seu nome civil deve procurar atendimento jurídico especializado e esperar longos e demorados procedimentos judiciais para a solução de sua demanda.

Já o nome social é obtido por meio de preenchimento de formulários padronizados perante órgão oficial, que não realiza diligências ou exige minuciosas explicações por parte do requerente. Enquanto a alteração de nome civil pode demorar anos, o nome social pode ser obtido até mesmo em um único dia, sem o pagamento de qualquer valor para tanto.  O nome social ganha relevo ao ser uma solução jurídica que resolve, de forma célere, um problema da vida que em muito atordoa o grupo alvo de discriminação.

 

6. PROBLEMAS NO MODELO ADOTADO PARA O INSTITUTO DO NOME SOCIAL.

Da forma como foi efetivamente regulamentado, o “Nome Social” criado pelo Estado do Pará (e quase todos os outros entes federativos) possui abrangência modesta, que permite passar ao largo de questões jurídicas mais complexas sobre eventual suplantação das alcunhas civis.

Listamos alguns dos problemas que já vislumbramos neste novo instituto.

6.1. Abrangência limitada ao poder público.

            Atualmente, parte dos diplomas normativos limitam o uso do nome social somente  perante o serviço público.

            Nos moldes vigentes, com suporte jurídico fulcrado em decreto, o nome social nada mais é do que uma regulamentação do Governador do Estado sobre a forma de prestação de serviços públicos.

            Nesse diapasão, ainda não existe mecanismo legal que torne cogente o uso do nome social em relações privadas.

           Uma das poucas exceções encontradas foi a Resolução nº. 12 de 16/01/2015 do CNCD/LGBT, que obriga aos estabelecimentos de ensino (inclusive privados), a utilizar o nome social de preferência dos estudantes no seu tratamento diário.

6.2. Possibilidade de pluralidade de nomes sociais.           

            Pelas regras modernas, não existe qualquer óbice legal para que, nos mesmos moldes dos Estados, os municípios instituam cadastro próprio de nome social, a vincular o tratamento perante executivo municipal. Os municípios sequer são obrigados a denominar de “nome social” a opção do usuário. Podem os municípios instituir mecanismo semelhante sob a denominação de “nome de preferência”, “nome de opção” ou “nome prioritário para tratamento”, dentre outros que a criatividade municipal conceber.

            Nesse cenário, surge a possibilidade de um mesmo cidadão possuir dois nomes sociais, um perante o Estado-membro e outro perante um dos municípios que o integra. Os nomes poderão, inclusive, ser divergentes.

            A implantação de nome social deveria ser alvo de regulamentação uniforme entre os entes federativos, sendo todos obrigados a se utilizar de um mesmo cadastro, sob pena de se criar uma situação confusa, com a existência, para um mesmo indivíduo, de um “nome civil” nacional (Maria), um “nome social” no Estado do Pará (Juliana), um “nome de preferência” para município de Manaus (Simone), um “nome de opção” para a cidade gaúcha de Gramado (Fabiana), e assim por diante.

Considerando que os nomes sequer precisariam ser idênticos, é interessante que o legislador crie cadastro nacional e regulamentação uniforme ao novo instituto, com o fito de dar segurança mínima as relações jurídicas constituídas sob o manto do novo instituto.

6.3. Existência do nome civil na carteira social

            No modelo de carteira aprovado pelo Governo do Estado do Pará consta, em sua face, o “Nome Social” do seu portador. No verso do documento, consta o Nome Civil do mesmo cidadão. Esse é o padrão utilizado pela maioria dos entes federados.

            Ora, se o intuito da carteira é, justamente, difundir o “Nome Social”, entendemos indevido que conste, no mesmo documento, o Nome Civil do usuário de serviço público.

            Como sabido, diversos transexuais e travestis procuram a justiça para alterar, de forma permanente, o seu registro civil no que tange ao nome e ao sexo. A intenção do nome social é deixar para trás, de forma definitiva, os problemas de preconceito e insatisfação pessoal do passado, possibilitando que, salvo nas situações excepcionais onde o nome civil seja insubstituível, o tratamento do usuário de serviço público se dê sempre pelo nome de escolha.

            Levando em consideração que, na carteira social, constam os números de RG e CPF do portador, entendemos haver a devida identificação do usuário no corpo do documento. O nome civil é informação que nada acrescenta à carteira e que atenta contra os seus próprios objetivos, eis que difunde dado que não se quer divulgar e que é o epicentro de toda a celeuma criadora do instituto.

            No caso de necessidade de se realizar, por exemplo, um pagamento em nome do seu portador, onde na guia deve constar o CPF e nome civil registrados na receita federal, aí sim deverá o setor competente para tanto solicitar a identificação civil, que poderá ser cruzada com os dados de RG e CPF, constantes em ambos os documentos[26].

            É perfeitamente viável a retirada do nome civil do verso da carteira de identidade social. Acreditamos que nome civil só consta na carteira de identidade social em razão da novidade do instituto e do natural receio do legislador em promover mudanças radicais com base em pleitos socialmente tão controvertidos (como o são todos os pleitos relacionados as questões sexuais, que acabam por despertar fervorosos debates).

6.4. Impossibilidade de mudança de nome na carteira.

            Lembremos que existem fatores físicos sociais que influenciam na identificação sexual do indivíduo, sendo possível que determinados transgêneros (em especial os travestis, por não se submeterem a procedimento cirúrgico) optem por retornar ao seu sexo de nascença.

            Na grande maioria dos casos, a solução do problema é simples, se o João optou pelo nome social de Carla e, posteriormente, se arrependeu, basta que volte a utilizar a sua identificação civil.

            Não obstante, nos casos em que há a alteração do registro civil pela via judicial (ex: o nome civil de João é modificado para Carla, em consonância com o nome social previamente registrado), o cidadão arrependido não poderá solicitar outro nome social (ex: a agora civilmente identificada como Carla não poderá solicitar o nome social de João, por já ter se utilizado do instituto do nome social).

            Não se pode ignorar que as questões atinentes à mudança de sexo são sempre eivadas de profunda dúvida e estigma. Há relatos clínicos de pessoas que mudaram de sexo e, posteriormente, se arrependeram[27].

            Os estudos sobre a sexualidade humana estão em constante aprimoramento. Existe uma série de questões psicológicas complexas que permeiam o desenvolvimento da ciência médica. Nenhum dos estudos médicos consultados e mencionados nesse artigo traça conclusões absolutas. Há correntes doutrinárias que relutam em classificar qualquer conflito de identidade sexual como patologia. Da mesma forma, há os que insistem em classificar, ainda hoje, a homossexualidade como doença[28].

            Analisando o desenvolvimento da sociedade moderna, onde as barreiras da sexualidade são cada vez mais questionadas, somado ao fato de que, na esfera médica, ainda se trabalha em terreno arenoso quanto a identificação e classificação de problemas clínicos, inexistem respostas padronizadas ao lidarmos com o público travesti e transexual. Persiste uma complicada e ainda obscura relação entre fatores físico-morfológicos, genética, influência social e estado psicológico, todos a influenciar na identificação sexual do indivíduo. Quando nos referimos à questão sexual, é temerário trabalhar com posicionamentos estanques.

            No seu atual estágio de desenvolvimento jurídico do nome  social, que é meramente a forma pela qual a Administração deve se referir ao usuário do serviço público, somos da opinião de que, havendo a mudança do registro civil do transexual ou do travesti, para adequar-se ao nome social, surge a possibilidade de criação de novo nome social ao indivíduo que assim deseje.

A finalidade do direito é de trazer soluções para os problemas da vida, devendo o atendimento do cidadão pela rede pública constituir uma prestação benéfica de serviços, e nunca uma fonte adicional de práticas discriminatórias. A proibição absoluta da mudança de nome social, tal como posta pela legislação atual, é contraditória em seus próprios termos.

 

7. OS PROBLEMAS PRÁTICOS JÁ ENFRENTADOS PELA FALTA DE LEGISLAÇÃO UNIFORME. O CASO DO EXAME NACIONAL DO ENSINO  MÉDIO (ENEM) DO ANO DE 2014.

            Anualmente o Ministério da Educação e Cultura (MEC) realiza o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) com o intuito de avaliar os estudantes que concluíram o ensino médio brasileiro.

            No ano de 2014, em que pese não constar no edital do concurso, foi divulgado, na página no MEC na internet a possibilidade dos estudantes, que assim desejarem, se inscreverem no certame se utilizando do nome social. A informação é repassada no link “Dúvidas Frequentes”, que informa um número de telefone que deverá ser contactado pelo estudante para fazer constar, na sua ficha de inscrição, o nome social.

            Percebendo que não há notícia de nenhum decreto que regule, de maneira uniforme, a utilização de nome social perante a Administração Pública Federal, a postura do MEC gera mais questionamentos do que soluções.

            Primeiro, o MEC estará dando validade federal ao nome social de estudantes que foram obtidos de forma não homogênea. Alguns estudantes poderão se utilizar do nome social (pois residem em estados onde ele é aceito) e outros não. Há diferença de tratamento estatal perante órgão federal a partir de situações díspares causadas pelos Estados-membros. Em alguns Estados o nome civil consta na carteira, em outros não. Os requisitos de obtenção do nome social são diversos. Não há uniformidade no tratamento da questão que autorize o seu uso em âmbito nacional. A situação é iníqua aos participantes do concurso.

            Segundo, somente o Edital de determinado concurso pode ser considerado como o mecanismo oficial de divulgação dos termos do certame. Ninguém é obrigado a ler a página eletrônica do MEC (na seção “Dúvidas Frequentes”) para se inscrever no ENEM. A informação está sendo repassada da maneira errada aos estudantes, gerando proteção insuficiente aos usuários de nome social. Não obstante, no ENEM de 2015, há previsão editalícia de inscrição do candidato utilizando o seu nome social. Com isso, acreditamos que, no futuro, a tendência seja de maior divulgação do instituto e padronização das regras de atendimento a esse público.

Terceiro, em diversos entes federativos, o nome social constitui mero cadastro, feito perante instituição pública específica (que sequer gera carteira de identificação). Não são  adotados mecanismos  seguros de identificação de seu usuário, face a amplitude restrita  do seu uso. O MEC não poderia se utilizar de tais registros para realizar a identificação oficial no acesso dos estudantes aos locais de prova (que exige documento com foto).  Ainda no caso dos entes federativos que emitem “carteira de nome social”, não existe a exigência de tais documentos contenham a foto do seu usuário, o que culminará na inevitável necessidade de apresentação de identificação civil, sepultando qualquer utilidade prática do instituto.

Quarto, a grande maioria dos estudantes que prestam o ENEM são menores de idade, eis que o ensino médio é concluído, via de regra, aos 16 ou 17 anos. Não  entendemos  possível, sob um prisma jurídico, que o  menor de idade obtenha o nome social, em especial quando a legislação de regência da matéria não permite a livre alteração do nome a qualquer tempo, sob pena de se admitir que menor incapaz tome, de forma indelével, decisão que lhe acompanhará pelo resto da vida. A nosso ver, a abrangência do instituto deve ser limitada quando a legislação atributiva do nome social estabelece a sua imutabilidade.

Por fim, insta rememorar que a Resolução nº. 12 de 16/01/2015 do CNCD/LGBT parece ter tomado solução diversa, possibilitando que estudantes, independentemente do nível de ensino, adotem nome social. Considerando o trato dado à matéria pelos órgãos federais, é provável que eventual legislação federal futura acabe por permitir que menores decidam pelo seu nome social o que, todavia, pode levar a diversas complicações práticas, mormente quando as legislações estaduais que regulamentam a matéria tem imposto vários óbices à alteração dos apelidos sociais escolhidos.

 

8. DOS EFEITOS JURÍDICOS REFLEXOS DO NOME SOCIAL.

            Como sabido, a alteração do registro civil ocorre após a regular instrução de um processo judicial na qual o juiz é livre para valorar os fatos apresentados.

            Contudo, não se pode negar que a opção por um nome social pode ser alegada em juízo com o fito de comprovar a identificação de gênero do seu usuário. O estabelecimento de um nome social perante o instituto de identificação leva ao juiz o conhecimento três fatos: (a) que a parte optou por se utilizar de um nome que corresponda à sua auto-declarada identificação de gênero; (b) que a parte fez declaração, prévia ao ajuizamento da ação, no sentido de declarar que a sociedade lhe reconhece por nome diverso do constante no registro civil; (c) que ninguém da sociedade se opôs formalmente ao nome social adotado pela parte, desde a data de registro até a data do ajuizamento da ação (o juiz pode diligenciar e indagar ao órgão de identificação sobre a existência de eventual oposição formal sobre a adoção do nome social utilizado pela parte).

            Assim, em que pese o nome social não constituir prova absoluta a vincular o juiz, ele é importante indício sobre a disforia de gênero e deve ser fato apreciado pelo magistrado para a formação de seu convencimento, servindo de relevante prova em processos judiciais, em especial no que requer a alteração do  registro civil.

           Situação semelhante tem ocorrido com o “Contrato de União Estável” já popularizado no Brasil. Em que pese a união estável ser um fenômeno fático, insusceptível de ser configurado mediante mera declaração dos envolvidos, o respectivo contrato possui peso probatório, e pode ser determinante para  definir a situação dos envolvidos perante a justiça.

 

9. QUADRO COMPARATIVO ENTRE NOME CIVIL E NOME SOCIAL

            Apenas para fins de resumo, procedo cotejo comparativo com as principais diferenças entre o nome civil e o nome social:

 

NOME CIVIL

NOME SOCIAL

1

Regulado por lei federal, com fulcro na competência privativa da União de legislar sobre direito civil

Regulado por cada ente federativo, com fulcro na possibilidade de legislação concorrente em matéria de saúde pública e na possibilidade de cada ente regular seus serviços administrativos.

2

Obrigatório a todas as pessoas

Facultativo. Só possui quem assim desejar.

3

Destinado a todos

Destinado especificamente ao público transgênero

4

Registrado perante o cartório

Registrado perante repartição pública

5

Subsiste sozinho, independentemente da existência de nome social

Não subsiste sozinho. O seu titular passa a ter tanto o nome civil quanto o nome social.

6

Adquirido com o registro de nascimento, com a pessoa ainda sem discernimento para prática dos atos da vida

Conferido muito posteriormente ao nascimento, tendo como pré-requisito que a pessoa tenha identificação sexual preferencial, o que exige consciência.

7

Atribuído por terceiros ao seu titular (via de regra os pais nomeiam os filhos)

É escolha personalíssima de seu titular, não havendo a possibilidade de que terceiro impute nome social a outrem

8

Pode ser recusado pelo cartório, se expuser a pessoa ao ridículo

Não pode ser recusado pela repartição pública, pois o cidadão declara sua aceitação pessoal ao nome

9

É atribuído mediante registro em cartório, mas só pode ser alterado por meio de provimento judicial

Pode ser alterado administrativamente, quando assim autorizado pela legislação do ente federativo

10

Caráter subsidiário. Em caso de existência de Nome Social registrado, deve-se preferir o nome social em detrimento do nome civil

Caráter preferencial ao nome civil, mas somente perante as instituições que o aceitam

11

Vincula o tratamento de todas as pessoas que interagem com o seu titular

Atualmente, limita-se a vincular o tratamento dado ao seu titular no âmbito da administração pública (e escolas)

12

Deve guardar relação com a família do seu titular, podendo ser alterado, por exemplo, após o reconhecimento de paternidade ou adoção

Não precisa guardar relação com o núcleo familiar de seu titular

13

Não necessita de aprovação social (pois a personalidade está no seu começo)

Via de regra, exige-se que o nome social faça referência a alcunha já utilizada pela sociedade para a identificação de seu portador

14

Imutável (via de regra)

Depende da legislação que o regulamenta, podendo ter critérios mais rígidos ou mais flexíveis para a sua alteração

15

Pode ser alterado por ocasião do casamento

O casamento é indiferente ao nome social. Via de regra, as legislações são omissas quanto ao tema.

16

Pode ser, excepcionalmente, alterado por terceiros, como no caso do ex-cônjuge inocente que exige a alteração do nome do culpado pela separação (art. 1578 do Código Civil)

Inexiste a possibilidade de alteração por terceiros

17

Possui prazo decadencial para a sua alteração judicial (art. 56 da Lei n. 6.015/73 – Lei de registros públicos)

As regras de alteração são disciplinadas por cada ente federativo

 

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O INSTITUTO DO NOME SOCIAL.

            Os problemas relacionados à divergência entre o corpo físico do indivíduo e sua respectiva identificação sexual são há muito tempo explorados pela ciência médica. Não obstante, somente de forma recente que o ordenamento jurídico pátrio tem produzido diplomas legislativos aptos a mitigar os efeitos psíquicos e sociais deletérios dessa divergência.

            O “nome social” foi importante conquista dos transgêneros para a sua  afirmação  na sociedade, auxiliando  na inserção livre de preconceitos de tais pessoas no seio social.

            Contudo, esse novo instituto deve ser visto como forma complementar de uma política de saúde pública de adequação da identidade sexual de indivíduos transgêneros. Em que pese ser questão juridicamente apta à regulação por parte dos diversos entes federativos, é imperioso que ela seja uniformemente disciplinada no território nacional, pois os efeitos deletérios da mora legislativa aos cidadãos transgêneros se repetem em todo o território nacional, sendo a questão da disforia de gênero fenômeno estudado na ciência médica e na legislação de  basicamente todos os países  do  mundo ocidental.

            À guisa de conclusão, não devemos pensar, na qualidade de operadores do direito, que a classificação patológica de uma determinada condição, pela ciência médica, sirva para denegrir ou desqualificar transexuais ou travestis, que tanto necessitam de políticas de proteção pública. A Ciência Médica deve auxiliar o Direito na confecção de soluções aptas a resolver o problema sexual, na forma como se apresenta, pois a eliminação de todas as formas de preconceito é um dos objetivos de nossa República (art. 3º, IV da CF).

            A definição médica do fenômeno homossexual e transexual tem, historicamente, servido para adequações legislativas ao mesmo passo que, também, se tornou o epicentro de infindáveis debates sobre eventual sectarismo dos médicos, que acaba por prejudicar a proteção das minorias.

O estigma de ter sua situação definida como patologia médica foi tamanho, na questão da afirmação dos homossexuais, que o dia 17 de maio foi eleito como o “Dia Internacional de Combate à Homofobia”, por ter sido nessa mesma data (no ano de 1990) que a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da lista de patologias médicas sujeitas a tratamento. Esperamos que a situação não se repita na questão do cidadão transgênero, onde a medicina deve auxiliar na solução do problema, e não no seu agravamento.

            A história é clara em listar movimentos sociais que anteciparam mudanças jurídicas relevantes como: o voto feminino, a política de cotas raciais e o casamento homoafetivo. Resta saber como reagirá o Brasil diante dos desafios do mundo moderno, que incluem a questão da liberdade sexual como bandeira de uma nova geração, que já se articula em movimentos a favor dos direitos das minorias de transgêneros.

            A regulação vanguardista dos Estados-membros tem servido como “laboratórios legislativos”[29] que devem ser utilizados  pela União para traçar uma política transparente, uniforme, legal, séria e articulada de serviços públicos para o  público travesti e transexual.

            As experiências problemáticas âmbito federal, como o ENEM 2014, demonstram a urgência na regulamentação da matéria em âmbito federal, ampliando-se a rede de proteção a essa minoria.

            Mesmo que de forma insipiente no presente momento, o instituto do “nome social” vai ganhando força na sociedade e, acreditamos que num futuro não tão distante, começará a fazer parte das discussões acadêmicas e legislativas, acirrando os ânimos tão comuns de virem à tona quando se trata de qualquer questão ligada à sexualidade.

 

BIBLIOGRAFIA

  1. ARÁN, Márcia; LIONÇO, Tatiana; MURTA, Daniela. Ciência & Saúde Coletiva. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Vol.14 n.4 Rio de Janeiro Jul/Ago. 2009.
  2. ARAN, Márcia, MURTA, Daniela. Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Physis  vol.19 no.1 Rio de  Janeiro  2009
  3. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Civil. São Paulo: Método, 2005.
  4. OLIVEIRA, Adélia Augusta Souto de; SILVA, Alexsander Lima da.Arquivos Brasileiros de Psicologia. Transexualidade/travestilidade na literatura brasileira: sentidos e significados. vol.65 no.2 Rio de  Janeiro  2013.
  5. PRÓCHNO, Caio César Souza Camargo; ROCHA, Rita Martins Godoy. O jogo do nome nas subjetividades travestis. Psicologia & Sociedade. vol.23 no.2 Florianópolis  Mai/Ago. 2011
  6. SPACK, Norman. Medical Ethics. Transgenderism. Lahey Clinic. Fall 2005. Vol. 12, Issue 3 (tradução livre)
  7. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 3ª ed. Ver. Atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Método
  8. VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010.
  9. VERNTURA, Ventura; SCHRAMM, Fermin Roland. Limites e possibilidades do exercício da autonomia nas práticas terapêuticas de modificação corporal e alteração da identidade sexual. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol.19 no.1 Rio de Janeiro 2009.
  10. VILLAÇA, Álvaro Azevedo, Teoria Geral do Direito Civil. Parte Geral.  São Paulo:Atlas, 2012.

 

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Cerqueira

É Procurador Autárquico e Fundacional do Estado do Pará. Procurador Chefe da Fundação Cultural do Estado do Pará. Diretor da Associação dos Procuradores Autárquicos e Fundacionais do Estado do Pará. Palestrante da Universidade Petrobras, Rio de Janeiro-RJ. Professor da Escola de Governo do Estado do Pará. Especialista em Direito do Estado. Foi Assessor Jurídico e Assessor Especial do Ministério Público Federal. Foi advogado concursado da Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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