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O poder de polícia da administração e sua delegação.

Da impossibilidade do exercício do poder de polícia pelo ente privado

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01/11/2000 às 00:00
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II. A DELEGAÇÃO E O EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA

A. A tendência atual de delegação dos serviços públicos

No último quartel do século XX, a defesa da necessidade de intervenção do estado na atividade econômica sofreu significativos reveses (28). Do ponto de vista político, a ascenção do governo conservador de Tatcher na Inglaterra e o republicano de Reagan nos Estados Unidos acabou por deflagrar a tendência de diminuição da presença estatal na atividade econômica e o crescente questionamento das finalidades a serem perseguidas pela Administração Pública. Sob este eixo, que de resto foi seguido pela quase totalidade do mundo ocidental, aos quais juntaram-se os países do Leste da Europa após a derrocada do comunismo (1989-1991), germinou a prática da delegação à iniciativa privada das atividades até então sob a responsabilidade do Estado, em especial no que tange à prestação dos serviços públicos. A idéia é de que o Estado deve ser elemento condutor do progresso da sociedade, mas não desempenhará este papel com exclusividade (29).

No Brasil, registre-se, este fenômeno não se deu diferente, datando as primeiras iniciativas do governo neste sentido, de princípio dos anos 80 (30). Todavia, apenas em 1990, com a Lei n° 8.031, que cria o Programa Nacional de Desestatização, é que se acelera o processo de privatizações de empresas estatais e a delegação dos serviços públicos – esta última com maior intensidade a partir da Lei n° 8987/97, que trata da concessão e permissão dos serviços públicos). O fato é que esta nova tendência acabou por produzir no âmbito jurídico série de questões, inclusive a aprovação de emendas constitucionais a respeito, o que indicou aos juristas a necessidade de um estudo mais aprofundado da matéria (31), procurando mesmo identificar novos critérios de eficiência e satisfatividade da prestação do serviço pela própria Administração (32), centrada em idéias tais como a de fundir as figuras do usuário e do cidadão (33).

A concepção de serviço público na doutrina administrativa, historicamente, formou-se como espécie antinômica à do poder de polícia administrativo, à medida que, enquanto se tinha no primeiro espécie de prestação positiva do Estado, no segundo identificava-se basicamente prerrogativas limitadoras da ação do particular. Estra noção que, sinale-se, ainda guarda certa aceitação, todavia é infensa a inúmeras exceções que acabam por descaracterizá-la como regra.

Todavia, permanece a definição de serviço público como um dos mais criativos capítulos do direito administrativo, mesmo pela variação conceitual que lhe permite a escolha do critério de definição (34). Tomamos, pois, a idéia de MEIRELLES, para quem serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado (35). Para BANDEIRA DE MELLO, trata-se de toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo (36).

Se nota em ambas as definições a presença do elemento positivo da prestação, que vem a ser exatamente a atividade da Administração diretamente favorável aos particulares. Esta, de sua vez, comporta série de elementos (37) que não cabe aqui estudar, senão para caracterizá-los a partir de uma segunda classificação, que divide os serviços públicos entre serviços uti singuli e uti universi. O primeiro, prestados a usuários derminados de dada prestação perfeitamente mensurável. O segundo, ao contrário, serviço de caráter geral, prestado com a finalidade de atender à coletividade, sendo impossível a individuação dos beneficiários do mesmo (38). A delegação da prestação do serviço à iniciativa privada, in casu, será possível em relação aos serviços públicos uti singuli, nunca aos uti universi.

Neste contexto, cabe questionar em que medida, no fenômeno da delegação dos serviços públicos, é possível identificar também a delegação do exercício do poder de polícia administrativo ao particular. Se há esta possibilidade e, em existindo, de que modo poderia ser localizado na doutrina do direito administrativo.

B. A natureza jurídica da delegação dos serviços

A noção básica da delegação do serviço público ao particular é a de um contrato celebrado entre a Administração e o particular na qual ela delega a execução de um determinado serviço para que o execute em nome próprio, por sua conta e risco, asegurando-lhe remuneração mediante tarifa paga pelo usuário (39). Também a definição legal, da lei n° 8987/95, que todavia é considerada defeituosa do ponto de vista técnico (40). O fato a se considerar, entretanto, é que a Administração, enquanto poder concedente, apenas transfere ao concessionário as responsabilidades inerentes à execução do serviço, permanecendo na qualidade de titular do mesmo – que lhe assegura a condição de preeminência.

Assim, delegado ao particular será o implemento de meios e condições concretas de prestação do serviço, pelo que será remunerado, não o poder de disposição sobre o mesmo. É evidente, todavia, que a execução do serviço público delegado, por distinguir-se pelo menos em razão da relevância do serviço e da escala de prestação – mesmo por causa do princípio da universalidade – não se opera nas exatas condições do regime privado. A Administração transfere com a delegação do serviço, também determinadas prerrogativas, necessárias a sua execução. Estas , entretanto, serão sempre menores dos que a da própria Administração, até pela relação fundamental de conteúdo e continente entre estas e aquelas.

Assim, observamos a natureza jurídica da delegação de serviços públicos como uma relação jurídica complexa, que envolve de um lado a manifestação do Estado, através de norma específica, a dispor sobre o regime de funcionamento, organização e modo de prestação do serviço (41), e de outro a manifestação de vontade do particular aderindo às condições impostas.

Há, neste particular, o que BANDEIRA DE MELLO bem observa como diferença finalística entre as partes do contrato. de um lado o Estado almeja a realização de um interesse público, enquanto o particular segue a procura pelo lucro (42). É, pois, dicotomia essencial que acompanha toda e qualquer relação contratual entre o Estado e o particular (não apenas as de delegação), mas que guarda o conteúdo instrutivo de sinalar a red line que distingue o público do particular, e afirma a necessidade da Administração estatal.

Assim que, destas definições todas, primeiro é possível observar que ao tratarmos de delegação, o fazemos sempre em relação à execução de dada atividade cuja titularidade permanece com a Administração. Segundo, que ao delegar esta execução a Adinistração, em regra, delega certas prerrogativas suas – o que se dá entretanto sempre em caráter precário.

C. Delegação do exercício do poder de polícia

Conforme se observou supra, a delegação de atividade pública ao particular, pela Administração, não se trata da transferência integral desta ao sujeito privado, mas o seu exercício por este, segundo a regulamentação editada pela própria Administração – titular inconteste destas atividades. Assim, ao tratarmos sobre a possibilidade ou não de delegação do poder de polícia, não estaremos fazendo-o em relação ao poder em si, mas a seu exercício em determinadas situações nas quais haja prévia e expressa previsão legal a respeito.

Se viu quando tratamos do poder de polícia administrativa, que este consiste basicamente na interferência da Administração sobre faculdades e potências do particular, ou como prefere BANDEIRA DE MELLO, de provimentos jurídicos que habilitam, proíbem, impedem ou sancionam determinada qualidade ou situação (43). De melhor forma explicita ENTERRÍA, ao notar que a imposiçãoo de deveres e obrigações dos atos gravosos. Também atos favoráveis por definição ao administrado podem ser causa da exigência de um comportamento concreto, como aquele que outorga a concessão em relação ao concessionário, que acaba por obrigar-se à execução do serviço concedido (44).

Observe-se pois, que em situação originária o particular delegatário de determinada atividade pública submete-se ao poder de polícia da Administração. Esta submissão, de sua vez, projeta-se pelo próprio período de vigência da delegação, conforme demonstram as prerrogativas que conserva o poder concedente em relação ao concessionário, cuja fonte não se trata de previsão expressa no contrato de concessão, mas das prerrogativas de polícia da Administração. É o caso, por exemplo, do poder de fiscalização previsto no art. 3o da Lei n° 8987/95, que prevê seu exercício com a cooperação dos usuários.

Esta modalidade de fiscalização, de fonte legal, prevê a cooperação de sujeito (usuário) que sequer é parte do contrato de concessão. Incorporá-lo à atividade de fiscalização, através de matriz legislativa, demonstra a atividade fiscalizadora não como da Administração exercendo alguma prerrogativa contratual, mas necessariamente exercendo seu poder de polícia em relação ao particular.

É certo que a identidade dos objetivos da Administração em relação ao contrato de concessão e ao exercício do poder de polícia – o interesse público - pode causar dificuldade na distinção dos atos que promove. Contudo, é patente que no caso do exemplo há distinção perceptível, uma vez que o dever legal torna desnecessária previsão do contrato.

Em relação ao exercício do poder de polícia, já indicava ALESSI, inspirado em ZANOBINI, que no confronto com outros sujeiros privados, estando o particular na condição de sujeito ativo da função administrativa lhe assisistiria,

"l’esercizio dei poteri di polizia da parte dell’incaricato (naturalmente nei casi in cui si tratti di funzioni o servizi che lo richiedano) nei confronti del pubblico che usufruisce del servizio o della funzione, con possibilità di applicazione di sanzione pecuniarie (45)".

Nestes casos, parece-nos, em que pese a autoridade do autor em questão, falar-se no exercício do poder de polícia pelo particular parece-nos um tanto impreciso. Em geral, nas relações em que o particular atua na prestação de serviço público uti singuli, a regra é de que as obrigações do usuário sejam de fonte contratual, embora assistam deveres extra-contratuais de ambas as partes.

Todavia, há serviços que não necessariamente se pautem por uma relação contratual típica, mas que a partir da delegação da atividade pela Administração executem tarefas eventualmente necessárias a que os administrados recorram para obtenção de manifestação estatal que lhes possibilite realizar algo.

Nestas situações, das quais o exemplo notável surge entre nós – no Estado do Rio Grande do Sul - com a reestruturação do Departamento Estadual de Trânsito, no final dos anos 90, a análise comporta algumas distinções. No caso, dos requisitos objetivos, exigidos pela legislação sobre trânsito para que alguém fosse considerado apto pela Administração para dirigir veículos, os que se constituíam em atividades a serem oferecidas pelo Poder Público foram delegadas ao particular – os Centros de Habilitação de Condutores.

No caso, não apenas exigências próprias a atividades de instrução dos candidatos – como os cursos teórico e prático a que deve se submeter – mas também determinadas avaliações, embora de conteúdo eminentemente técnico, mas que gozam da igual prerrogativa de impedir o candidato de ser habilitado a conduzir veículos.

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Embora ao particular tenha sido delegado ministrar os cursos obrigatórios de instrução do candidato, a aferição destes conhecimentos é realizado diretamente pela Administração. Entretanto, nos casos de avaliações técnicas médica e psicológica, é o particular que se manifesta quanto à aptidão ou não do particular para condução de veículos automotores, e estas avaliações – em tese – gozam de mesma prerrogativa de deferir ou não a licença ao candidato. É certo que o particular, no caso, não atua a partir de critérios seus, mas balizado por minuciosos parâmetros estabelecidos pela Administração. Todavia, forçoso reconhecer que, mesmo limitado às prescrições administrativas específicas se pode observar nesta exame ato de fiscalização, que guarda traços característicos substanciais do poder de polícia administrativo. Neste aspecto, de lembrar a referência já mencionada supra, da possibilidade de manifestação do poder de polícia através de atos preventivos, fiscalizadores e repressivos.

BANDEIRA DE MELLO sinala que atos jurídicos expressivos de autoridade pública não poderiam ser delegados a particulares, salvo em circunstâncias excepcionais, mas que haveria esta possibilidade em relação a certos atos materiais precedentes a esta expressão da autoridade, que através de delegação ou mero contrato de prestação, realizassem a atividade específica com ou sem vínculo jurídico com o Estado – também chamado credenciamento (46).

Em relação ao caso específico da habilitação para o trânsito, o entendimento de DALLARI, que propugna a distinção entre o reconhecimento oficial de que o interessado preenche os requisitos legais para construir ou dirigir veículo (através de ato administrativo), e a atividade técnica destinada a verificar se esse ato jurídico pode ou não ser emitido – a qual, de natureza meramente instrumental, pode ser delegada (47). A distinção que se propõe então, é a de atos expressivos de autoridade pública e atos de mera atividade material de fiscalização e averiguação (48). Em relação a esta segunda categoria de atos, exemplifica com os avanços da tecnologia contemporânea, permitindo a utilização de máquinas na sua realização.

D. Atividade delegada e exercício do poder de polícia

Assim, conclui BANDEIRA DE MELLO que o exercício do poder de polícia não se delega ao particular, embora se possa eventualmente confundir com suas hipóteses conexas a este poder, passíveis de delegação. São estas:

"a) a atividade sucessiva a ato jurídico de polícia expedido pelo Poder Público, consistente em mera execução material, se não houver nisto interferência alguma com a liberdade dos administrados, mas tão só com a propriedade destes; e

b) atividades materiais que precedam a expedição de ato jurídico de polícia a ser emitido pelo Poder Público, quando se tratar de mera constatação instrumental à produção dele e efetuada por equipamento tecnológico que proporcione averiguação objetiva, precisa, independente de interferência de elemento volitivo para reconhecimento e identificação do que se tenha de apurar. (49)"

Contudo, embora a distinção sinalada pelo ilustre professor paulista pareça resolver a questão proposta, novo problema surge quando estas atividades materiais precedentes à expedição do ato jurídico de polícia, embora de conteúdo técnico, não o seja a ponto de advogar-se sua exatidão. Ou seja, que mesmo constituindo-se avaliação eminentemente técnica, não seja possível afastar completamente o elemento subjetivo do particular na avaliação, mesmo que este se dê em razão da convicção em determinados critérios em detrimento de outros. Aqui, não figura propriamente a discricionariedade administrativa, mas discricionariedade técnica, perfeitamente conforme as normas específicas, mas tão somente elegendo algumas delas em detrimento das demais (50).

Neste aspecto, embora a atividade delegada tenha caráter instrumental em relação à expedição do ato jurídico de polícia, constitui-se requisito necessário para expedição do ato. E, à medida que a eleição pelo particular de determinados critérios técnicos em detrimento de outros de mesmo valor, tem o condão de, ou definir o sentido do ato, ou mesmo obstar sua produção, é inegável que infere no exercício do poder de polícia administrativo.

É evidente que não se trata do exercício direto do poder de polícia pelo particular. Poderíamos quem sabe qualificar como espécie de exercício reflexo deste poder, o que comportaria a crítica de que não se pode exercer algo que não se é tem. De todo o modo, identifica-se espécie de interferência do particular no exercício do poder de polícia, que podemos chamar interferência decisiva, no sentido que pode determinar em determinados casos o mérito do ato jurídico de polícia, ou mesmo impedir sua produção.

É o caso do médico – ou funcionário do serviço delegado do Departamento de Trânsito, ou seu prestador de serviço – que a partir da sua avaliação técnica pode definir o mérito do ato jurídico de polícia que concede a licença para dirigir. Não exerce em qualquer momento o poder de polícia administrativo, mas sua manifestação é decisiva em relação ao comportamento da Administração no exercício deste poder.

Assim, embora não se possa cogitar da delegação do exercício do poder de polícia administrativa pelo particular, uma vez que tal é prerrogativa específica e personalíssima da Administração porque inerente a sua autoritas, é possível identificar situações em que a a atividade de um particular, na prestação de serviço delegado, pode decidir de modo reflexo quanto à produção e o sentido do ato jurídico da Administração, manifestante do exercício do seu poder de polícia administrativa, em relação aos administrados.

Tal procedimento, ao tempo em que se adequa aos critérios jurídicos próprios do poder de polícia administrativa – sua indelegabilidade – não deixa, contudo, de responder, em muitos casos, pela definição do mérito do ato administrativo expressivo da autoritas do Estado, pelo que, ainda que indelegável, assiste à interferência de um particular o condão de definir-lhe o conteúdo.

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Sobre o autor
Bruno Nubens Barbosa Miragem

acadêmico de Direito da UFRGS, em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. O poder de polícia da administração e sua delegação.: Da impossibilidade do exercício do poder de polícia pelo ente privado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/455. Acesso em: 5 nov. 2024.

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