4.As relação de gênero e seus reflexos no direito
O estudo complexo e histórico do direito deve se aliar à necessidade de substituir o tratamento universal e abstrato por um tratamento apto a perceber as especificidades concretas entre os diversos sujeitos sociais envolvidos. Bobbio (2004) relaciona à questão feminina ao processo de especificação dos direitos, salientando que essa especificação se deu também em relação ao gênero.
O conceito de gênero é uma construção social, não se apresentando, pois, de maneira uniforme em todas as épocas e lugares. Assim, depende da cultura, dos costumes e das criações oriundas da experiências humanas, tais como as leis, as religiões e a vida política. Ademais, dentro de uma mesma sociedade encontramos variantes que influem diretamente nesse conceito, tais como a idade, a raça e a classe social.
Como é fruto de uma dinâmica social, é latente o reflexo do conceito de gênero dentro do mundo jurídico. É o que observamos no momento da construção das normas jurídicas, no momento da interpretação e, por último, no momento crucial de sua aplicação.
Vale salientar a ascensão de alguns marcos jurídicos, como: a conquistas do direito ao voto feminino, que no Brasil ocorreu em 1932 com o decreto 21.076 de 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, malgrado a mulher casada ainda fosse considerada incapaz. Outro fator marcante, como dispõe Brandão (2010) “foi a entrada em vigor da Lei nº 660 de 1927, do Estado do Rio Grande do Norte, que possibilitou o alistamento eleitoral da natalense Celina Guimarães, primeira mulher da América do Sul a votar”.
A Constituição Federal de 1988 internaliza as principais diretrizes pertinentes aos direitos humanos das mulheres em voga no âmbito internacional, reconhecendo pela primeira vez, em seu Art. 5°, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” vedando a discriminação por sexo e instituindo a igualdade entre ambos, dispositivo esse que ensejou na modificação e evolução de inúmeros aspectos normativos.
Apesar da evolução legislativa quanto as relações de gênero, não adianta apenas normas isentas das mazelas oriundas do machismo, pois essa divergência de valores se revela também no ato de interpretar e aplicar a norma jurídica. Lamentavelmente, muitos dos operadores do direito, influenciados pela sociedade, não despertaram para os novos paradigmas da ciência jurídica e continuam a barrar a evolução e a concretização dos direitos femininos por seus preconceitos em relação ao gênero. Sob essa visão como nos ensina Toscano (1992) várias pesquisas científicas apontam um perfil conservador dos operadores do direito, reforçado pela falta de uma perspectiva de gênero no ensino e na doutrina jurídica, bem como pela própria ordem jurídica, integrada por um complexo sistema normativo que permite a convivência de instrumentos jurídicos contemporâneos (como a Constituição Federal de 1998 e os Tratados Internacionais) ao lado de sistemas legais ultrapassados, como o Código Penal de 1940.
Grandes foram os avanços no âmbito social e legal, sendo necessário quase 462 anos para a mulher casada deixar de ser considerada relativamente incapaz “pela lei brasileira (Estatuto da Mulher Casada) e mais 26 anos para a Constituição Federal consagrar a igualdade de direitos e deveres na família.”[3]
5.A mulher diante das carreiras jurídicas.
As relações entre os sexos ainda são pautadas por construções sociais que geralmente valorizam de maneira exacerbada o masculino mitigando a influência do feminino nos diversos âmbitos sociais, relegando à mulher uma posição de submissão em relação ao homem. E não é por menos que observamos normas positivas que refletem esse padrão de desequilíbrio, uma vez que o direito, como fenômeno social que é, não foge às influências oriundas dessas representações sociais e segue uma ordem “natural” de valores que não atende às necessidades femininas.
Da mesma forma que a mulher conseguiu o seu espaço nas mais distintas esferas da sociedade, ela também se destacou diante das carreiras jurídicas, deixando de ser objeto de sanções e passando a ter participação ativa diante do direito.
No Brasil, até meados de 1902, nenhuma mulher havia feito curso de graduação na área do direito. A percussora a transpor essa barreira foi Maria Augusta Saraiva, que ingressou na Faculdade do Largo São Francisco. Ela também foi a primeira figura feminina a atuar no Tribunal do Júri.
Só no ano de 1954, que uma mulher veio a se tornar magistrada, Tereza Grizola Tang, em entrevista à revista Veja afirmou que “quando as mulheres faziam inscrição para concorrer ao cargo de juízas eram automaticamente dispensadas apenas por serem mulheres”[4], confirmando dessa maneira o caráter preconceituoso e a estigmatizante advindo do gênero que permeava as carreiras jurídicas, visto que o simples fato de pertencer ao sexo feminino já era quesito para a reprovação no concurso de magistratura.
Apenas no ano de 1998, que uma mulher foi admitida como desembargadora, nesse sentido Dias afirma que, “até 1973, quase todas as inscrições feitas por mulheres eram previamente negadas”, afirma ainda que “na minha época, tivemos que brigar para que as provas não fossem identificadas. Na entrevista de admissão, o desembargador chegou a perguntar se eu era virgem”, explicitando assim, as dificuldades enfrentadas no âmbito jurídico.
A primeira ministra a ocupar o posto no Superior Tribunal Federal foi Ellen Gracie, que em entrevista também revela “que quando se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1970, não podia nem se inscrever em concursos para a magistratura”. Outro fato que marcou a mulher diante das carreiras jurídicas foi ascensão da Ministra Carmem Lúcia na liderança de um tribunal superior, o Superior Tribunal Eleitoral, que ocorreu no ano de 2012.
Apesar dos inúmeros avanços femininos diante dos diversos postos do direito, as mulheres ainda não estão livres do preconceito. A ministra Carmem Lucia não escondeu sua experiência pessoal durante o julgamento da Lei Maria da Penha: “Às vezes acham que juíza desse tribunal não sofre preconceito. Mentira, sofre! Há os que acham que isso aqui não é lugar de mulher, como uma vez me disse uma determinada pessoa sem saber que eu era uma dessas”[5].
Diante do exposto, é possível perceber que mesmo com o passar do tempo, com a modificação da influência feminina na sociedade, a sua ascensão nos mais distintos postos das mais diversas profissões e funções, sejam elas na esfera pública ou privada, ainda prevalece a diferenciação por gênero, sobretudo no âmbito jurídico que deveria ser um ambiente de libertação, desmitificação de preconceitos, de quebra de paradigmas e de ascensão daqueles que de alguma forma são subjugados pela sua diversidade.
6.Conclusão.
No decorrer da história da humanidade constatamos que as mulheres permaneciam sempre omissas, enclausuradas, como seres afastados das esferas públicas e de direitos restritos no âmbito privado, sempre consideradas como objetos de subordinação ao universo até então dominado pela figura masculina. Todavia isso vem mudando de forma gradual. É fato que tal processo é inacabado e com enormes lacunas, sendo inegável o reconhecimento de que convivemos com padrões de desigualdade e dominação de gênero.
Ainda que a dinâmica das lutas sociais, principalmente, durante o século XX, tenha alçado êxito no que tange a positivação jurídica de garantias formais, como a conquista do direito ao voto em 1932, os aspectos elencados na Constituição de 1988 e as convenções internacionais, ainda persiste a cultura de relações intersubjetivas que colocam as mulheres em patamares de inferioridade.
A visão androcêntrica do mundo ainda é presente, mesmo diante da pós modernidade, dessa maneira a mulher busca maior dignidade em suas relações nos mais distintos âmbitos: seja na esfera pública ou privada, no exercício da cidadania, na política, na economia, no desenvolvimento da dignidade da vida cotidiana, no direito à educação, saúde, segurança, no convívio familiar, no direito ao corpo e liberdade sexual e no próprio direito a ter direitos.
Seja por revoluções ativas ou silenciosas, as mulheres conquistam a cada dia o seu espaço dentro da sociedade brasileira, marcada pelo machismo e patriarcalismo, passam da subordinação à liderança. Todavia, este é um processo incompleto e com enormes lacunas, sendo inegável o reconhecimento que ainda convivemos com padrões de desigualdade e dominação por gênero.
Para que o Direito possa apreender a perspectiva de justiça é necessário compreender a subjetividade feminina. É preciso desfazer a confusão de que a igualdade “é possível sem considerar que o campo da objetividade perpassa pelas subjetividades masculina e feminina”[6]
Referências bibliográficas.
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BRANDAO, Delano Câncio. Relações de gênero: Análise história e jurídica das relações de gênero. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 77, jun 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7945>. Acesso em out 2014.
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ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3 ed. São Paulo: Millennium, 2010.
Notas
[2] Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-01022010-165929/pt-br.php acessado dia 26 de outubro de 2014.
[3] Disponível em http://www.mariaberenice.com.br/uploads/23_-_a_mulher_e_o_direito.pdf acessado dia 24 de outubro de 2014.
[4] Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-judiciario-de-saia-%E2%80%93-ou-melhor-de-calca ; acessado em 23 de junho de 2014.
[5] Disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=38878&idPagina=3355 acessado dia 23 de outubro de 2014.
[6] Disponível em http://www.mariaberenice.com.br/uploads/23_-_a_mulher_e_o_direito.pdf acessado dia 4 de junho; ás 13h22min.