Princípio da Singularidade
Também chamado de princípio da unirrecorribilidade das decisões judiciais, afirma que cada ato deve ser impugnado somente com um recurso previsto no ordenamento, ou seja, não há que se confundir o princípio da taxatividade que elenca o rol dos recursos disponíveis e o princípio da singularidade que faz a adequação entre o previsto e o cabível. Cabimento e adequação são expressões similares, mas não sinônimas. Por cabimento, temos a previsão de recorribilidade daquela determinada decisão e por adequação, o contorno jurídico entre a decisão desfavorável e o recurso já previsto.
Vedada está, portanto, a impugnação simultânea de uma mesma decisão com recursos diferentes. Conforme Barbosa Moreira, pode ser que um único ato decida questões diversas, configurando-se ato judicial complexo. Por meio de um exemplo, fornecido por Nelson Nery, podemos visualizar melhor: seria o caso de o juiz decidir várias questões quando da audiência preliminar e saneamento do processo (art. 331, CPC), tais como as preliminares de carência de ação, de incompetência absoluta, de coisa julgada etc, culminando por designar audiência de conciliação, instrução e julgamento. Essa decisão seria tipicamente interlocutória, vez que não colocou fim ao processo, mas, simplesmente, foram resolvidas questões incidentes no seu curso. Outro exemplo, se o juiz, decidindo essas mesmas questões, rejeitando preliminar de carência e designar audiência, acolhe a referida preambular, estaremos diante de sentença, pois terá posto fim ao processo, ainda que sem decisão de mérito.
Eis aqui uma polêmica entre Barbosa Moreira e Nelson Nery: este acredita que o que importa é o fim da decisão. Assim, o que importa saber é que o fim da decisão abrange o restante, desafiando um só recurso, pelo princípio da singularidade. Assim, dois casos, para exemplificar, se impõe: a) em procedimento sumário, se o juiz rejeitar preliminar de incompetência e, na mesma audiência, sentenciar, caberá dois recursos diversos: o primeiro agravo retido oral e o segundo apelação, reiterando o agravo retido; b) se o juiz esperou até a sentença para se manifestar sobre a incompetência, rejeitando-a, e sentencia, caberá um só recurso que é o de apelação.
Vamos petulantemente com Nelson Nery, contrariando este que é um dos maiores processualistas brasileiros. O que realmente importa é o fim da decisão: senão, qual seria a lógica de agravar uma decisão que imediatamente após, é seguida por uma sentença que finaliza o processo, se interpondo uma apelação, a totalidade do decisório poderá ser apreciada? Se numa mesma decisão, couber agravo e apelação, há que se usar desta, simplesmente por economia. E se ambos os recursos virem a ser interpostos? É o caso de se analisar se o que se ataca é uma mesma decisão ou se são várias: sendo apenas uma decisão, abrangendo a sentença decisão interlocutória, caberá apenas a apelação, não sendo conhecido o agravo por falta de interesse. Se forem múltiplas as decisões, tomadas em momentos diversos, ainda que numa mesma audiência, caberão ambos os recursos aventados.
Tanto é assim que podemos traçar um paralelo em processo penal. Imaginemos que o juiz declare extinta a punibilidade pela prescrição, já na sentença penal, com a aplicação da pena in concreto. Da decisão que reconhece extinta a punibilidade, caberia recurso em sentido estrito, mas como o ato concentrou-se em sentença penal, desafiará recurso de apelação, pela lógica sistêmica processual. Concentrando-se várias decisões (das quais caberá um outro recurso) numa sentença atacável por recurso de apelação, não há que se dividir em várias impugnações independentes, seria contra a coerência do efeito devolutivo que uma apelação comporta.
Diga-se que, em processo penal, neste termos, não há polêmica. Isto porque, o rol do art. 581 do CPP que trata de recurso em sentido estrito é taxativo (pelo menos, aparentemente). Não vemos hipótese de simultaneidade de recursos em processo penal, além das exceções do próprio processo civil. E quais seriam essas exceções?
1.Embargos Infringentes e Recurso Especial ou Extraordinário (art. 498 do CPC) – da parte não unânime do acórdão, cabem embargos infringentes, enquanto da parte unânime, recurso especial ou extraordinário, conforme o caso;
2.Embargos de Declaração e Apelação, embora seja exceção meramente formal – podendo a sentença ser atacada simultaneamente pelos dois recursos. Assim é, porque a doutrina inculcou na legislação que os embargos de declaração não podem alterar a decisão. Na verdade, esta máxima é um sofisma: como pode o magistrado integrar uma sentença, sem alterar parte de seu mérito? Mas, de qualquer forma, cabem da sentença tanto apelação como embargos de declaração;
3.Ação Rescisória da parte unânime do acórdão e Embargos Infringentes da parte não unânime – o que também é bastante improvável;
Exemplos:
a) Em determinado processo, o juiz exclui o co-autor A por considerá-lo parte ilegítima e, no mesmo ato processual, indefere a prova pericial solicitada pelo co-autor B; rejeira a alegação de incompetência absoluta oferecida pelo co-réu C; rejeita alegação de coisa julgada feita pelo co-réu D – Recurso de Agravo.
b) O juiz indefere liminarmente a reconvenção (ou ação declaratória incidental) ajuizada pelo co-réu C e, no mesmo ato processual, indefere a prova pericial requerida pelo co-autor B; exclui o co-autor A do processo sob fundamento da ilegitimidade de parte e rejeita a preliminar de nulidade de citação alvitrada pelo co-réu D – Recurso de Agravo.
Em todos os casos dados nos exemplos acima, o recurso cabível é agravo, mesmo que algumas das decisões tenham sido de mérito. Ora, o que se busca é a regularidade processual e não a balbúrdia, possível de acontecer caso houvesse apelação e agravos interpostos conjuntamente. Aliás, nada tem a ver sentença e mérito ou agravo e falta deste. O que se deve levar em consideração é o fim ou não do processo. Se a decisão põe fim ao processo, mesmo sem o julgamento de mérito, o recurso cabível é o de apelação; e se a decisão, ainda que interlocutória, vai ao mérito para um dos contendores, não pondo fim ao processo, a decisão é o agravo. Portanto, caberá ação rescisória de decisão interlocutória sim, levando-se em conta a impropriedade do art. 485, caput, do CPP que aponta somente sentenças, ao contrário de decisões, o que seria tecnicamente mais aceitável.
Princípio da Fungibilidade
É chamado pela doutrina alemã de Princípio do Recurso Indiferente: a possibilidade de troca de um recurso por outro é acolhida pela unanimidade da jurisprudência, muito embora na legislação processual civil, não conste nada nesse sentido, ao contrário da legislação processual penal. Poderíamos nos questionar: ora, se há a taxatividade e a adequação recursal, porque dar à parte o direito de ver conhecido seu recurso, quando errou na interposição? Se previsse de forma clara todas as hipóteses a lei, realmente não se cogitaria a fungibilidade, fato que não ocorre freqüentemente, já que a legislação presta-se a múltiplas interpretações dos mais variados matizes.
Quando um recurso é interposto inadequadamente deverá ser conhecido como se recurso adequado fosse, respeitando algumas condições. O problema da fungibilidade é justamente a delimitação destas condições. Inicialmente, o princípio é sustentado por outro que é o da instrumentalidade das formas, onde se assevera que não se deve sacrificar o fundo pela forma, conforme Cândido Rangel Dinamarco. Ou seja, o que se deve visar na moderna técnica processualista é a finalidade dos atos e não apenas as minudências das formas que tantas vezes demonstram ser vazias. O processo evoluiu no sentido de admitir que, mesmo por meio de forma diversa da prescrita em lei, se atingir o ato o seu resultado, este deverá ser levado em conta.
No art. 810 do CPC de 1939, duas condições negativas eram impostas para que se aplicasse a fungibilidade: o erro grosseiro e a má-fé, conforme lição de Pontes de Miranda. O erro grosseiro poderia ser aferido por algumas circunstâncias objetivas, como, por exemplo, a disposição expressa e induvidosa de lei dizendo qual o recurso cabível, estar a hipótese consagrada pela doutrina e jurisprudência...quanto à má-fé, teríamos as seguintes condições:
a)usar do recurso impróprio de maior prazo, por haver perdido o prazo do recurso cabível: assim, a parte maliciosamente interpunha recurso com maior prazo por ter perdido o de menor, e se acaso fosse questionado em grau recursal, rogaria pela fungibilidade – este expediente foi muito usado quando ainda os prazos do processo civil não se encontravam unificados em, basicamente, 15 dias;
b)valer-se do recurso de maior devolutividade para escapar da coisa julgada formal: assim, o recorrente poderia optar pelo recurso especial ou extraordinário, omitindo os embargos infringentes da parte não-unânime a fim de evitar a coisa julgada para a parte unânime;
c)protelar o processo, lançando mão de recurso mais demorado;
d)provocar apenas divergência na jurisprudência para assegurar-se depois de outro recurso: ora, hoje sabemos, pelo princípio da instrumentalidade das formas, que o visado em processo é o resultado prático. De outra forma: o recorrente não pode ser utilizar do recurso para pura e simplesmente provocar divergências jurisprudenciais, testando a doutrina, levantando polêmicas a fim de saborear uma tese a ser acolhida...deve ter interesse na alteração da decisão impugnada. Mais: a reforma deve gerar um efeito prático benéfico ao recorrente.
Hodiernamente, contudo, há na doutrina moderna alguns requisitos para verificar a aplicação da fungibilidade, sendo que esses antigos critérios ainda são tomados pela tradição jurisprudencial que, cada vez mais, tem se encaminhado por novos critérios para aferir a boa ou a má-fé do recorrente..
1) Dúvida Objetiva sobre qual o recurso cabível: a) o próprio Código designar uma decisão interlocutória como sentença ou vice-versa, fazendo-o obscura ou impropriamente (exs: arts. 395, 930, par. único 790, 718 do CPC); b) a doutrina ou a jurisprudência divergem quanto à classificação de determinados atos judiciais (qual o recurso cabível da denegação do Protesto por Novo Júri? Carta Testemunhável? Ou é cabível Habeas Corpus, como ação autônoma? Ou, no CPC: exclusão de litisconsorte, denegação de reconvenção, julgamento de exibição de coisa em poder de terceiro etc); c) o juiz profere um pronunciamento em lugar do outro (ex: quando o juiz entende haver incompetência absoluta, em vez de remeter o processo ao juiz competente, indefere a petição inicial).
A dúvida objetiva, por ter justamente esse nome, não cabe das inseguranças pessoais dos patronos das partes, ou seja, se o recurso adequado estiver expresso em lei, não há dúvida: se interposto outro em seu lugar, o que há é o desconhecimento do texto legal. Portanto, deve haver polêmica jurisprudencial ou doutrinária acerca do recurso cabível e essa polêmica deve restar comprovada.
2) Erro Grosseiro: quando previsto o recurso expressamente em lei, o recorrente usa-se de outro, por completo desconhecimento do texto legal, de acordo com o tratado acima. Exemplos deste fato: art. 581 do CPP, art. 296, 520, 280, III, 523, parágrafo 4, todos do CPC).
Podemos, em processo penal, verificar que o art. 581 do CPP elenca taxativamente as hipóteses de cabimento do recurso em sentido estrito. Diferentemente do processo civil, o recurso em sentido estrito não se presta apenas para atacar decisões interlocutórias, como se costuma pensar...até mesmo sentenças são impugnadas por meio deste recurso, como é o caso da sentença denegatória de habeas corpus. E, da mesma forma, nem todas as decisões interlocutórias em processo penal são atacadas por meio de recurso em sentido estrito. Resumindo: seja sentença, seja decisão interlocutória, o que se pretende impugnar são os casos expressos naquele artigo. Diríamos que a técnica processual penal não andou bem, sendo que o processo civil está mais evoluído, neste ponto. Em processo civil, de acordo com a singela classificação dos atos judiciais em sentenças, decisões interlocutórias e despachos, temos uma prática correlação – as sentenças são apeláveis e as decisões agraváveis. Tal não se dá em processo penal: assim, por exemplo, o indeferimento de provas (decisão interlocutória) é atacada por meio de apelação, ao contrário do processo civil onde cabe agravo retido ou por instrumento.
Questão 1: sendo que a exceção de incompetência foi processada em autos apartados, da decisão que denegar a exceção, caberá agravo retido ou agravo de instrumento? Parece-nos que pode ser interposto o agravo na forma retida, como por instrumento. Mas esse entendimento não é o da maioria dos Tribunais, que concluem como erro grosseiro a interposição de agravo na forma retida. Isto porque, a jurisprudência enxerga apenas as formas e não o conteúdo do decisório. De forma geral, as exceções são processadas em apartado, mas não significa que deixam de ser decisões interlocutórias normais, onde não há o encerramento do feito. Assim, podemos muito bem agravar de forma retida no feito apartado e, em futura apelação, prequestionar o agravo interposto.
Questão 2: os prazos, nos casos onde é discutida a fungibilidade, são relevantes, sendo que há divergência do próprio cabimento do recurso? Assim, se o recorrente se valer de apelação 15 dias após a decisão que desafiava agravo, cujo prazo é de 10 dias, o recurso não será conhecido por má-fé? A doutrina aqui se divide – Bermudes entende que sim, há má-fé. Todavia, Arruda Alvim e Nelson Nery entendem que não e este último é citado: "não vislumbramos má-fé do recorrente, por haver esse recorrido dentro do prazo do recurso impróprio. Pode haver se convencido de que o recurso cabível era aquele efetivamente interposto, tanto pela eventual dúvida objetiva que a hipótese pudesse proporcionar, como, subsidiariamente, pela inexistência de erro grosseiro na escolha do recurso impróprio. Estaria, assim, agindo de boa-fé. Anote-se que o recorrente não precisa demonstrar boa-fé ao recorrer, já que esta é presumida. Ao contrário, a má-fé não de presume". Ora, se a questão da fungibilidade se circunscrevesse somente aos prazos, a doutrina não se concentraria em discutir a questão – bastava saber se o prazo que o recorrente se usou foi ou não maior do que o do recurso adequado...mas a questão é justamente saber qual o recurso adequado!
Questão 3: Como se procede no caso de fungibilidade?
Caso 1 – Apelação, no caso de Agravo: aqui, não há problemas, pois o juiz deverá processar a apelação como se agravo fosse, preparando os documentos para a formação do instrumento;
Caso 2 – Agravo de Instrumento, no caso de Apelação: aqui, há um problema – o agravo é interposto diretamente no Tribunal e a apelação processa-se diante do juiz. Ora, o relator deverá baixar os autor para que o agravo de instrumento seja processado como apelação, muito embora nos pareça pouco prático, pois se o relator do processo tem o poder de indeferir de plano o recurso, porque não processar o agravo como apelação, intimando a parte contrária para oferecer contra-razões? Nesse ponto, discordamos frontalmente do prof. Nelson Nery Jr.