É certo que nenhum profissional da medicina, por melhor aptidão técnica que possua, tem o poder de ingerência sobre determinados resultados fáticos decorrentes especialmente de procedimentos cirúrgicos, que notoriamente são atribuídos ao caso fortuito e/ou força maior, institutos muito já estudados pelo Direito, como consequência natural da imperfeição da ciência médica.
Por outra via, a atividade médica já há muito deixou de ser interpretada sob um caráter divino, em que jamais se poderia responsabilizar o profissional por resultados indesejados, tendo em vista que estes estavam intimamente ligados a conceitos similares ao que se convencionou chamar de destino.
Hoje concebe-se uma apreciação mais profunda desta atividade, buscando-se tecer conclusões acerca do proceder do profissional médico, e se este contribui de alguma forma para um resultado indesejado, afastando-se da simples crença de que em nada poderia o médico alterar uma eventual consequência conferida ao dito destino.
Neste percurso, há de se ter necessária cautela na investigação de eventuais consequências lesivas, pois bem se sabe que a atividade médico-cirúrgica – especialmente retratada neste breve estudo – constitui atividade meio que não pode ser alvo de responsabilidade civil, sem que se perquira sobre a incidência de negligência, imprudência ou imperícia.
A inquirição sobre a real incidência de culpa stricto sensu, nestes casos, surge como obstáculo imprescindível ao atual crescimento desordenado das ações judiciais, promovidas pela incessante busca de responsáveis pelos infortúnios humanos, caráter que em muito se difere da instransponível proteção à dignidade da pessoa humana, esta, sim, devendo ser homenageada em todos os âmbitos do Direito.
Em meio a estas questões, surge o conceito do Dano Iatrogênico, etimologicamente advindo do termo iatrogenia, que se refere a um estado de doença ou complicação causada por/ou resultante de tratamento médico[1]. Ao contrário do que se pensa, o Dano Iatrogênico não se refere necessariamente à lesão decorrente de um erro médico, mas àquela que emana da escolha, pelo profissional, acerca de determinado tratamento, cuja consequência é um resultado não pretendido, mas possível e naturalmente decorrente deste tratamento.
Para Jorge Alberto Riú[2], a iatrogenia está associada a uma síndrome não punível caracterizada por um dano inculpável no corpo ou na saúde do paciente como consequência de uma aplicação terapêutica. A lesão iatrogênica deve ser entendida como o resultado lesivo decorrente do uso de técnicas e medicamentos necessários para vencer crises ou surtos. Não dá azo à responsabilidade civil e a consequente obrigação de indenizar, quando se tratar de lesões previsíveis, esperadas ou não, decorrentes do procedimento cirúrgico. Nestes casos, há de se salientar que não há cirurgia isenta de risco.
No episódio em apreço, a lesão decorreu de cirurgia ortopédica, em que o paciente sofreu queimadura na pele da região lesionada pela fratura exposta, causada pelo contato com as hastes de titânio (TENS), após esterilização, utilizadas para fixação do osso fraturado (tíbia).
Por óbvio, todos os instrumentos cirúrgicos utilizados no procedimento devem ser esterilizados antes do evento, com vistas à prevenção dos riscos de infecção. O método mais comumente utilizado é o Autoclave, equipamento que utiliza vapor sob pressão para elevar a temperatura dos instrumentos em um período de 1 (uma) a 3 (três) horas, e, com isso, esterilizá-los, deixando-os aptos a serem utilizados no procedimento cirúrgico.
Ocorre que, para a fixação interna de osso fraturado de forma exposta, a intervenção deve se dar nas primeiras 6 (seis) horas após a lesão, por se tratar de intervenção cirúrgica de urgência, por ser forçoso minimizar os altíssimos riscos de infecção, consoante uníssona literatura ortopédica sobre o tema, verbis:
“Kreder e Armstrong observaram que um atraso de mais de 6 horas correlacionava-se com 25% de infecção, em comparação com 12% para pacientes operados num limite de 6 horas.” [3]
“Muito se tem falado sobre a importância fundamental do tempo transcorrido até o desbridamento; considera-se como prazo limite máximo um lapso de 6 horas desde o momento da lesão até seu desbridamento. Certamente faz pouco sentido retardar indevidamente o desbridamento cirúrgico dessas feridas em pacientes fisiologicamente preparados para a sala de cirurgia [...]. Robson et al. observaram que o limite para a ocorrência de uma infecção era de 105 microorganismos. Esses autores constataram que este limite era atingido em 5,17 horas.”[4]
Em não sendo respeitado prazo de 6 (seis) horas, na forma da literatura citada, não se aconselha mais a fixação interna do osso, devido ao grau de infecção, mas a externa, através de um complexo instrumento denominado Fixador Externo, bastante eficiente, porém, extremamente invasivo e incômodo, por manter, durante número determinado de semanas, hastes de metal, fios e pinos fixados ao osso externamente através da pele, sendo consideravelmente majorado o risco de infecção por demandar maior tempo de tratamento. A literatura é pródiga neste mesmo sentido, verbis:
“Apesar dos numerosos benefícios da fixação externa em casos de fraturas expostas, é preciso que seja dada atenção a diversos pontos técnicos, para que não venham a ocorrer complicações [...]. Mesmo sem evidência de infecção visível no local do pino, deve-se antecipar alguma contaminação do trato do pino. Se os pinos foram aplicados na área de um procedimento definitivo, o risco de infecção cirúrgica poderá aumentar”[5]
Considerando que se tratava de um procedimento de urgência, e que os instrumentos cirúrgicos estariam naturalmente quentes, por terem saído há pouco do aparelho de esterilização (após 3 horas no AUTOCLAVE), a cirurgia foi realizada com absoluto sucesso em seu resultado, qual seja, a fixação do osso fraturado de forma violenta, porém, gerando uma pequena queimadura na porção da pele que necessariamente manteve contato com as hastes de titânio, ainda aquecidas pelo procedimento de esterilização.
Aqui reside toda a celeuma. Qual responsabilidade pode ser imputada à equipe médica sobre a lesão sofrida pelo paciente (queimadura)? Se existente, que tipo de responsabilidade seria esta? E, enfim, trata-se, a questão, do mencionado Dano Iatrogênico?
Oportuno mencionar que, para introduzir hastes de titânio em um determinado membro, os médicos precisam realizar incisões cirúrgicas, cortando a pele em lugares adequados para que possam manusear melhor tanto os utensílios quanto os próprios ossos atingidos. Naturalmente estas incisões podem ter sua cicatrização mais difícil, ou os próprios instrumentos cirúrgicos utilizados podem danificar a pele, e causarem cicatrizes, estas que podem ser permanentes ou não, conforme a genética do paciente.
Por este viés, considerando a urgência da cirurgia no caso em trato, o material de síntese (haste de Tens) introduzido em sua perna para corrigir a fratura causou um pequeno ferimento em sua pele, este, que foi mínimo face à lesão causada pela fratura, e que foi devidamente tratado, bem como os demais ferimentos causados pela fratura e pelas incisões cirúrgicas.
Nesta hipótese, a equipe médica se viu em uma das situações mais corriqueiras a que se submete o profissional da medicina cirúrgica, tendo que tomar decisões de extrema importância para o tratamento do paciente em curto período de tempo. Inafastável a obrigação de ser realizado o procedimento cirúrgico dentro do prazo de 6 (horas), como relatado na literatura colacionada, tendo em vista a maior eficácia do tratamento e o menor risco de contaminação. Dificilmente o profissional médico tem meios de ter a certeza do tempo decorrido entre o momento da fratura exposta até o primeiro atendimento. Por isso, a urgência em todo o procedimento, que vai deste atendimento até o momento da cirurgia, é imprescindível.
Sendo assim, como em qualquer caso de perquirição de responsabilidade civil, é Inafastável a prova do efetivo dano, o que, porém, não é objetivo deste estudo, que se limita a se debruçar sobre a possibilidade ou não de imputação da responsabilidade sobre o agir do profissional médico, com a identificação do eventual ilícito em sua conduta.
Deve-se enfatizar que, nos termos do parágrafo único do art. 927 do Código Civil Brasileiro, somente se atribuirá a obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos previstos em lei ou quando a atividade desenvolvida pelo suposto autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem. Por sua vez, o art. 951 do mesmo Diploma afirma ser necessária a incidência de negligência, imprudência ou imperícia para a imputação do dever de indenizar àquele que praticar ato lesivo no exercício de atividade profissional.
Diante da letra da lei civil, depreende-se que a perquirição das hipóteses de culpa (negligência, imprudência ou imperícia) é o primeiro passo para a investigação de eventual responsabilidade civil do profissional médico.
No caso apreciado, entendemos que não se pode falar em ausência de diligência por parte da equipe médica. Isto porque o tratamento aplicado foi o mais apto e hábil, em conformidade com a literatura transcrita, a prevenir o risco de infecções, mal que assombra diversos procedimentos cirúrgicos, podendo levar à perda do membro ou até mesmo à morte. Todavia, o mesmo tratamento trouxe implicações que podem ser interpretadas como consequências naturais ao procedimento cirúrgico, e que não poderiam ser imputadas ao âmbito da vontade do profissional da medicina.
Como visto pela literatura técnica colacionada, o paciente possuía o lapso de apenas 6 horas a contar do momento da lesão, para sofrer a intervenção cirúrgica dentro do mínimo risco de infecção. Sendo bastante limitado este período de tempo, considerando-se ainda o ínterim necessário para a esterilização dos equipamentos (1 a 3 horas), a equipe médica teve sua amplitude de atuação restrita, devendo ser ponderada inclusive toda a preparação do paciente para o procedimento cirúrgico, cujo adiamento traz à tona inúmeros transtornos.
Inegavelmente, como já verificado, a responsabilização do profissional médico somente pode ocorrer em sendo vislumbrada a sua negligência, ou, de forma mais específica, qualquer das formas de culpa academicamente classificadas, sem o quê, não há que se falar em “erro médico”. Nesta cadência, são os vastos julgados já proferidos pelo Poder Judiciário, verbis:
“APELAÇÃO CÍVEL - INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - RESPONSABILIDADE CIVIL - ERRO MÉDICO - NÃO OCORRÊNCIA - AÇÃO IMPROCEDENTE - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO. - A responsabilidade civil dos médicos somente decorre de culpa tendo em vista ter sido adotado o sistema de responsabilidade subjetiva pelo Código Civil, de forma que, não resultando provadas a imprudência, imperícia ou negligência, nem o erro grosseiro, FICA AFASTADA A OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. - Não havendo nexo causal entre a conduta do médico e a morte do prematuro, conseqüentemente não há que se falar em responsabilidade solidária do hospital. - Correta a sentença que entendeu dessa forma, a qual deve ser mantida”. (TJ-MG - AC: 10024095783965001 MG , Relator: Mariângela Meyer, Data de Julgamento: 18/03/2014, Câmaras Cíveis / 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 02/04/2014) (grifamos).
“RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO. HOSPITAL. CIRURGIA DE CORREÇÃO DE FRATURA NO ÚMERO. QUEIMADURA NA FACE POSTERIOR DO BRAÇO. NEXO DE CAUSALIDADE. INEXISTÊNCIA. I - A responsabilidade civil do hospital é objetiva (art. 14 do CDC, e 932, III, do Código Civil). Já a responsabilidade civil do médico é subjetiva, de modo que incumbe ao paciente, credor da prestação dos serviços, comprovar os danos sofridos, a conduta culposa do médico e o nexo de causalidade. II - Inexistindo comprovação do nexo causal entre a intervenção cirúrgica para correção da fratura do úmero e a queimadura ocorrida na face posterior do braço do autor, incabível a responsabilização do hospital ou do médico que o operou. III - Negou-se provimento ao recurso.” (Acórdão n.681206, 20100111681778APC, Relator: JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA, Revisor: VERA ANDRIGHI, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 29/05/2013, Publicado no DJE: 04/06/2013. Pág.: 208) (grifamos).
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ERRO MÉDICO. RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO. OBRIGAÇÃO DE MEIO. AUSÊNCIA DE PROVAS QUANTO A SUA NEGLIGÊNCIA, IMPRUDÊNCIA OU IMPERÍCIA. PEDIDO IMPROCEDENTE. 1. Na atuação em áreas da medicina tradicionais, em que se busca o restabelecimento da saúde de determinado paciente, considerando que a obrigação do médico não é a cura (e nem poderia ser, já que o mesmo não teria total gerência sobre a vida ou morte do paciente), assume ele uma obrigação de meramente meio. 2. Se a obrigação for de meio, assume o profissional da área médica a responsabilidade de prestar seus serviços de forma cautelosa, diligente, consciente das técnicas médicas e dos melhores procedimentos a serem tomados na busca pelo restabelecimento da saúde do seu paciente, sem o comprometimento com qualquer resultado fixo ou determinado. 3. RESTANDO PROVADO NOS AUTOS QUE O PROCEDIMENTO MÉDICO FOI REALIZADO PELO RÉU DE FORMA CORRETA E QUE AS COMPLICAÇÕES VIVENCIADAS PELA AUTORA DECORRERAM DO PRÓPRIO RISCO INERENTE A TODO PROCEDIMENTO CIRÚRGICO, NÃO RESTA CONFIGURADO O ATO ILÍCITO, OBSTANDO A PRETENSÃO INDENIZATÓRIA”. (TJ-MG - AC: 10390090293684001 MG , Relator: Wagner Wilson, Data de Julgamento: 06/03/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 16ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/03/2013) (grifamos).
“CIVIL E PROCESSO CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. HOSPITAL PRIVADO. INTERVENÇÃO CIRÚRGICA. ERRO MÉDICO. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE CULPA E DE NEXO DE CAUSALIDADE. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE. MANUTENÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MAJORAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Sendo a relação de consumo, a responsabilidade dos hospitais é objetiva quando se circunscreve às hipóteses de serviços relacionados ao estabelecimento propriamente dito (estadia, instalações físicas, serviços auxiliares). Quando, porém, relaciona-se ao serviço do próprio médico, como profissional liberal, o CDC estabelece que o seu regime de responsabilidade civil é subjetivo (art. 14, § 4º, do CDC). Em razão disso, para se reconhecer a responsabilidade do hospital, antes, cumpre averiguar se houve ato culposo do médico que atuou como preposto. 2. O médico que não agiu com negligência, imprudência ou imperícia não pode ser responsabilizado por danos materiais e morais alegados pela paciente. DEMONSTRADO NOS AUTOS QUE O CIRURGIÃO, DENTRO DE SEU CAMPO DE COMPETÊNCIA TÉCNICA, E COM BASE NOS PROCEDIMENTOS E PROTOCOLOS APLICÁVEIS À ESPÉCIE, AGIU DA MANEIRA QUE JULGOU SER A MELHOR PARA A PACIENTE, NÃO PODE SER POR ISSO PENALIZADO. 3. A ausência de comprovação da falha na prestação do serviço médico acaba por afastar o nexo de causalidade entre o serviço prestado pelo hospital e o dano sofrido pelo autor, não gerando o dever de indenizar. 4.Se os honorários advocatícios encontram-se fixados com base na apreciação equitativa do juiz, e em consonância com os critérios mencionados no art. 20, § 4º, do CPC, não há de se falar em sua majoração. 5. Recursos da autora e do réu improvidos”. (TJ-DF - APC: 20100610003455 , Relator: ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS, Data de Julgamento: 12/11/2014, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 24/11/2014 . Pág.: 196) (grifamos).
“RESPONSABILIDADE CIVIL. CURETAGEM ÓSSEA E FISTULECTOMIA. LESÃO DO NERVO FIBULAR. TRATAMENTO MINISTRADO CONFORME RECOMENDA A BOA PRÁTICA MÉDICA. DANO QUE DECORRE DE COMPLICAÇÃO INERENTE AO PRÓPRIO PROCEDIMENTO, E NÃO GUARDA IDENTIDADE COM O SUSCITADO ERRO MÉDICO. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO IMPROCEDENTE. 1. Recurso interposto contra sentença que julgou improcedente a demanda, condenando o médico que realizou a cirurgia e hospital ao pagamento de 50 salários mínimos (25 cada um) pelos danos morais suportados. 2. A medicina não é ciência exata, e somente diante de elementos que apontem o erro grosseiro, manifesta incautela, menoscabo ou ausência de zelo, é que se poderia imputar ao profissional responsabilidade por eventual resultado danoso. 3. CASO EM QUE AS COMPLICAÇÕES OCORRIDAS NA INTERVENÇÃO CIRÚRGICA DECORRERAM DA PRÓPRIA COMPLEXIDADE DO PROCEDIMENTO, e gravidade do quadro clínico do paciente, de modo que a responsabilidade civil pela lesão não pode ser imputada ao médico que promoveu a cirurgia. 4. Quanto à responsabilidade civil do hospital, cumpre mencionar que o autor busca responsabilizar o hospital em razão de erro do médico, e não pelos serviços prestados pelo nosocômio, de modo que considera-se em relação ao hospital a responsabilidade subjetiva a ser analisada à luz da conduta dos médicos. Não provada a culpa nem o liame causal exigidos para caracterização da reparação civil (art. 333, I, do Código de Processo Civil), não se verifica também a responsabilidade da corré Amico Saúde Ltda. 5- Dano moral não caracterizado. 6- Sentença reformada. 7- Apelações dos corréus providas, recurso adesivo não provido. (TJ-SP - APL: 01117006320098260002 SP 0111700-63.2009.8.26.0002, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 15/08/2013, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/08/2013) (grifamos).
“INDENIZAÇÃO POR ERRO MÉDICO IMPROCEDENTE - NÃO OCORRÊNCIA DE CULPA STRICTO SENSU - NÃO OCORRÊNCIA DE ERRO GROSSEIRO - NÃO COMPROVAÇÃO DO NEXO CAUSAL ENTRE A CONDUTA DO MÉDICO E AS ALEGADAS CONSEQÜÊNCIAS LESIVAS AO PACIENTE - BENEFICIÁRIO DE JUSTIÇA GRATUITA - SUSPENSÃO DA COBRANÇA DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA - APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. A indenização decorrente de erro médico só pode prosperar se provado ter o facultativo incorrido em culpa stricto sensu ou erro grosseiro, e ainda, que exista nexo de causalidade entre a conduta médica e as conseqüências lesivas à saúde do paciente. Não restando comprovados esses elementos, indispensáveis à caracterização da responsabilidade civil, vale dizer, o dano sofrido pelo paciente, a culpa ou o erro de conduta do médico, bem como o nexo causal entre um e outro, a indenização não encontra guarida na sistemática jurídica. A obrigação do médico, excluído o caso de cirurgia estética, é considerada de meio, e não de resultado. Mas, mesmo que assim não seja entendido, não haverá responsabilidade de indenizar, se o médico, a par de agir com cautela e dentro dos parâmetros técnicos, CONSEGUIR EM PROL DO PACIENTE O RESULTADO ESPERADO. Sendo a parte vencida beneficiária de Justiça Gratuita é correta a condenação ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, mas a cobrança dessas verbas fica suspensa, até que seja superada a situação de pobreza da devedora, ou até que transcorra o prazo prescricional de cinco anos”. (TJ-PR - AC: 2086164 PR Apelação Cível - 0208616-4, Relator: Roberto De Vicente, Data de Julgamento: 22/10/2002, Primeira Câmara Cível (extinto TA), Data de Publicação: 31/10/2002 DJ: 6241) (grifamos).
“RESPONSABILIDADE CIVIL – Indenizatória -- Danos materiais, morais e estéticos -- Inadmissibilidade -- Perícia demonstrou que o tratamento médico se deu de forma adequada -- Ausência de comprovação de ocorrência de Negligência, Imperícia ou Imprudência -- Ação julgada improcedente -- Apelo do autor -- Decisão mantida -- Recurso não provido”. (TJ-SP , Relator: Aldemar Silva, Data de Julgamento: 01/06/2015, 4ª Câmara Extraordinária de Direito Público) (grifamos).
Ademais, alguma literatura entende ainda que a negligência médica somente pode ser caracterizada pelo ato omissivo, a inação, indolência, inércia ou passividade diante do caso posto sob a apreciação do profissional (França – 1997[6]). Para o autor, a conduta negligente faz-se presente no abandono de paciente, na omissão no tratamento e na inação diante da ocorrência concreta.
Diante de tal prospecto, percebe-se com nitidez que a obrigação do profissional médico, neste caso, é de meio e não de resultado, sendo esta reservada apenas às cirurgias plásticas embelezadoras ou estéticas. Isto porque a lesão previsível, aquela correspondente ao dano necessário e/ou esperado da atuação médica, é inerente à imperfeição da medicina. Aqui retorna-se ao conceito de iatrogenia, afastando a responsabilidade civil e consequentemente o dever de indenizar.
A jurisprudência já vem enfatizando este aspecto sobre a lesão iatrogênica, corroborando a interpretação dada acima. Neste sentido, é esclarecedor o julgado prolatado pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no julgamento da Apelação n. 0106857-58.2006.8.19.0001 2008.001.61749, já no ano de 2009, quando afastou a responsabilidade civil do Estado em virtude do Dano Iatrogênico, por ser este consequência natural e inevitável do tratamento médico, não acarretando a responsabilização do profissional, que agiu com a necessária perícia. Entendeu-se ainda que, do contrário, estar-se-ia atribuindo ao profissional da medicina a posição de segurador universal, o que não pode ser aceito diante da imprevisibilidade natural à vida humana.
Em 2010, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou situação semelhante, apreciando a questão da lesão natural decorrente do tratamento cirúrgico. Segue a Ementa:
“Apelação cível. Ação de indenização por ato ilícito. Responsabilidade civil. Alegação da autora no sentido de que a equipe médica comandada pelos requeridos realizou cirurgia mal sucedida, acarretando infecção em seu organismo de difícil recuperação. Prova pericial e testemunhal que apontam para a não ocorrência de imperícia ou negligência na ocasião da cirurgia, tampouco em momento posterior. Procedimentos apropriados diante do delicado estado de saúde em que se encontrava a requerente. Consequências possíveis advindas do ato cirúrgico. Improcedência mantida. Recurso desprovido” (TJ-SC, Relator: Ronaldo Moritz Martins da Silva, Data de Julgamento: 20/10/2010, Quarta Câmara de Direito Civil)
No voto, o Desembargador Relator evidenciou ter havido lesão decorrente da intervenção cirúrgica, porém, esta ter-se-ia consubstanciado como resultado naturalmente decorrente de um procedimento de risco, urgente e inevitável, homenageando o princípio básico de preservação da vida da paciente. Segue trecho do mencionado voto:
“A saúde da autora mostrava-se bastante delicada no momento da cirurgia. A intervenção era inadiável para evitar a evolução de doença grave, da qual poderia resultar no seu óbito. A sua realização, portanto, constituiu decisão acertada e prudente [...]. Não se observa, assim, qualquer ação ou omissão culposa da equipe de cirurgiões.
Assim, provado que os procedimentos adotados antes e depois da cirurgia pela equipe médica foram os necessários, adequados e cautelosos, a sentença de improcedência merece ser mantida in totum.”
Neste passo, mesmo que evidenciado qualquer eventual dano decorrente do procedimento cirúrgico, este se aproximaria do conceito de Dano Iatrogênico, por decorrer do ato médico, mas não poder ser imputado ao profissional da medicina, vez que realizá-lo ou não, não se encontrava no âmbito das escolhas do primeiro, tendo apenas decorrido, inevitavelmente, da intervenção de urgência, cujo objetivo era propiciar o restabelecimento da saúde do paciente, e a manutenção de sua vida.
Em julgados mais recentes, a tese da inexistência de responsabilização do médico no caso de Dano Iatrogênico (obviamente quando não verificadas as hipóteses de culpa do profissional) também se encontra esposada, evidenciando-se a necessária imputação do dano decorrente do acaso (caso fortuito ou força maior), verbis:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS, MORAIS E ESTÉTICOS. ERRO MÉDICO. LESÃO IATROGÊNICA. 1. Afirmou a autora que o réu, médico, na primeira cirurgia executada, causou lesão de "colédoco com ligamento de ducto hepático direito" e, por isso, a razão da grave infecção abdominal sofrida pela autora. Pediu reparação por danos morais, materiais e estéticos. 2. Realizou-se prova pericial a fim de que fosse apurado o alegado erro médico. O perito examinou a gravação da cirurgia realizada por videolaparoscopia. Afirmou que não verificou ter o réu cometido a lesão alegada e, por isso, confirmou não ter havido erro profissional no ato cirúrgico. 3. DIANTE DESTE QUADRO, NÃO SE VIU ERRO PROFISSIONAL QUE PODERIA CONDUZIR À PRETENDIDA INDENIZAÇÃO. O PERITO ADOTOU CONCEITO DE IATROGENIA, MUITO COMUM NA MEDICINA. ACIDENTE IMPREVISÍVEL. ERRO ESCUSÁVEL. 4. Recurso dos réus provido para julgar improcedente o pedido de indenização”. (TJ-SP - APL: 00032874320098260361 SP 0003287-43.2009.8.26.0361, Relator: Carlos Alberto Garbi, Data de Julgamento: 28/04/2015, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/04/2015) (grifamos).
“RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INFECÇÃO HOSPITALAR DECORRENTE DE SURTO EPIDÊMICO. INOCORRÊNCIA DE ERRO OU NEGLIGÊNCIA NO TRATAMENTO MÉDICO PRESTADO. DANO IATROGÊNICO. INEXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. Caso em que a autora, após ser submetida a uma cirurgia de colecistectomia por videoparoscopia no Hospital Geral de Bonsucesso, contraiu infecção hospitalar e foi submetida a intenso e longo tratamento (inclusive com outras cirurgias) para a recuperação de sua saúde. Demonstrado nos autos que o quadro infeccioso não decorreu de erro, assepsia ou negligência no serviço médico prestado, mas sim de surto imprevisível (segundo as atuais técnicas da medicina) de diferente micobactéria, não pode ser imputada responsabilidade à União Federal. Não seria razoável que o atendimento gratuito, realizado segundo a boa técnica, possa gerar para a coletividade o ônus de pagar pelos problemas que são riscos próprios do procedimento, realizado sem intuito de lucro. Portanto, ainda que se queira trabalhar com a responsabilidade objetiva, CONFIGURA-SE FORTUITO QUE EXCLUI A RESPONSABILIDADE. Raciocínio outro afirmaria o Poder Público segurador geral de males oriundos de causas as mais diversas, que não gerou, e quando os recursos devem ser destinados à melhoria do sistema. Remessa e apelo da União providos. Sentença modificada” (TRF-2 - REEX: 200851010124235, Relator: Desembargador Federal GUILHERME COUTO, Data de Julgamento: 23/08/2010, SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 28/02/2011) (grifamos).
Desta feita, não sendo identificada a culpa stricto sensu do profissional médico, não se lhe pode atribuir a responsabilidade por eventual dano material, moral ou estético, os quais, se existirem, devem ser concebidos como eventos necessariamente decorrentes dos procedimentos naturais de uma cirurgia de urgência.
No caso em estudo, a equipe médica deveria realizar a intervenção cirúrgica em regime de urgência, respeitando o limite de 6 horas já estabelecido pela literatura técnica, sob pena de ser-lhe imputada a responsabilidade pela omissão de tratamento adequado. Por outra via, os utensílios cirúrgicos precisavam de, ao menos, metade deste tempo para estarem prontos para utilização na intervenção, sem que os profissionais tivessem a noção exata do momento em que ocorreu o acidente e consequentemente a lesão.
Os médicos realizaram, então, seu dever profissional, restabelecendo a saúde do paciente com os instrumentos que a ciência lhes pôs à disposição. O dano decorrente – mínimo no caso ora estudado – não pode ser imputado àqueles que apenas realizaram seu trabalho utilizando os meios científicos existentes atualmente para tanto, por uma questão de razoabilidade na aferição do possível.
Nas palavras da autora Luiza Chaves Vieira, “não existe no momento, no mundo inteiro, outra profissão mais visada pela lei que a medicina, chegando a ser uma das mais difíceis de exercer sob o ponto de vista legal”[7]. Inegavelmente, é tamanha a responsabilidade destes profissionais, mas, da mesma forma, é notório que somente podem realizar seus feitos dentro do limite que a ciência humana lhes proporciona, estando sujeitos, como qualquer outro profissional, à incidência de fatores que lhe escapam à escolha, à incidência do acaso.
Essa é a melhor interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana, que protege, por incrível que pareça, também a figura do profissional médico no exercício ou não de sua profissão.
É preciso lembrar que, embora tenha havido um momento histórico em que a medicina possuiu um quê de divino, não é dado ao profissional médico o poder sobre a vida e a morte, mas apenas o conhecimento a respeito da ciência que busca incessantemente a manutenção da primeira.