Na peça “Ricardo III”, Shakespeare retrata descritivamente a vida desse rei inglês, caracterizando-o como a personificação do mal, “um homem sutil, falso e traiçoeiro”, capaz de qualquer coisa para conquistar e se manter no poder. Nesse diapasão é que inevitavelmente se pergunta: Ricardo III pode ser considerado o “Príncipe” de Maquiavel?
Desde o início do drama shakespeariano, o personagem Ricardo (até então Duque de Gloucester) assume a condição de “ruim vilão” – fruto de sua inconformidade com a deficiência física que lhe acompanha desde o nascimento: a sua corcunda – e o seu plano de matar o próprio irmão George (Duque de Clarence).
Contextualizando física e psicologicamente seu vilão, Shakespeare cadencia sua peça através das maldades maquiavélicas praticadas por Ricardo objetivando tornar-se o Rei da Inglaterra. Nesse sentido, o drama começa a ser manchado de sangue e traições, e é retratada uma sequência assustadora de assassinatos praticados diretamente ou por ordem traiçoeira de Ricardo, a saber: Príncipe Eduardo; Rei Henrique VI; seu irmão George (Duque de Clarence); seu irmão Rivers; seu filho Grey; Vaugham e o camareiro-mor Hastings.
Após ser coroado, o sanguinário rei shakespeariano não põe fim às suas maldades; ele casa-se com Ana – viúva do Príncipe Eduardo, assassinado pelo próprio Ricardo – manda matar os seus sobrinhos e, posteriormente, a sua própria esposa.
Essa hipérbole da maldade real gerou o ódio da população inglesa e a convocação de um herói divino, Richmond, que montará um exército para, em nome de Deus, guerrear e derrubar esse “javali usurpador, sanguinoso (sic) e miserável” do reino inglês. E assim foi feito: Ricardo III foi amaldiçoado por todos os fantasmas das pessoas que ele assassinou para que ele entre em desespero e morra; ocorre a Guerra das Rosas; o cavalo de Ricardo III é morto; ele começa a lutar à pé e em ato de pleno desespero diz sua célebre frase: “meu reino por um cavalo” , sendo morto logo após.
A Inglaterra, assim, não é mais dividida em famílias, a Dinastia Tudor assumirá o Poder, reinará a paz de Deus (Era de Ouro da Inglaterra) – e todos foram felizes para sempre!?
Numa análise maquiavélica do drama supracitado, percebe-se que Ricardo III chegou ao “Principado pelo crime”, já que atingiu “o principado pela maldade, por caminhos celerados, contrário a todas as leis humanas e divinas...”. As maldades cometidas pelo vilão shakespeariano para conquistar o poder, nesse diapasão, correspondem, em última análise, às qualidades do Príncipe, pois revelam a sua virtù – virilidade e coragem necessária a todo governante maquiavélico que queira conquistar a deusa da fortuna e usufruir de todos os bens que ela possuía: honra, riqueza, glória e poder – e a sua metamorfose em Aquiles, é dizer, sendo ao mesmo tempo humano e animal – saber ser humano e saber agir como um leão para atacar na hora certa e uma raposa pra saber fugir dar armadilhas.
Ricardo III, todavia, comete erros que o governante maquiavélico não pode cometer caso deseje a sua manutenção no poder. Basta perceber que, o Príncipe está autorizado a praticar maldades (afinal segundo Maquiavel: “Quem num mundo cheio de perversidade pretende seguir em tudo os ditames da bondade, caminha inevitavelmente para a própria perdição.”), todavia, essas maldades devem ser “bem praticadas” conforme leciona nosso pensador florentino:
“Bem utilizadas podem ser chamadas aquelas (se bem se pode dizer do mal) feitas de uma vez só, pela necessidade de prover sua própria segurança, e depois são relegadas à margem, tornando-se o mais possível em vantagem para os súditos. Mal utilizadas são as que, se bem sejam a princípio poucas, não se extinguem mas crescem com o tempo.” (grifo nosso, Capítulo VIII de O Príncipe)
Nota-se, nesse sentido, que Ricardo III não soube utilizar de sua maldade de forma rápida e necessária, mas, pelo contrário, o vilão sanguinário, do início ao fim do drama shakespeariano, atuou com traições e assassinatos.
Nesse contexto, pecando sempre pelo excesso, Ricardo III desrespeita o capítulo XIX de “O Príncipe” (“COMO SE EVITAR O DESPREZO E O ÓDIO”). Basta perceber que por ser um rei “inconstante, leviano, irresoluto e pusilânime” começa a ser desprezado; por usurpar bens e as mulheres dos súditos (a exemplo do que acontece com Ana, viúva da sua vítima) começa a ser odiado; por não buscar a amizade de seu povo começa a ser desrespeitado.
E assim, sob a égide do desprezo e ódio popular, nenhum Príncipe pode manter, estavelmente, o seu governo, pois inevitável haverá a conspiração dos súditos para a sua derrubada. Ilustra essa realidade maquiavélica, o personagem shakespeariano “Duque de Buckingham” – o maior cúmplice de Ricardo III nos seus crimes – que ao se sentir traído pelo rei e irá se aliar a Richmond.
Aos poucos a deusa da fortuna começa a se afastar de Ricardo III e mostrará todo o seu poderio contra ele na Guerra das Rosas quando Ricardo nitidamente mostra que já perdeu sua virtù ao trocar “seu reino por um cavalo”. O próprio Maquiavel metaforicamente ilustra a fúria da fortuna quando percebe que aquele que a seduziu já perdeu a virtú:
“Comparo a fortuna a um daqueles rios que quando se enfurecem, inundam as planícies, derrubam as árvores e casas, arrastam terra de um ponto para pô-la em outro: diante deles não há quem não fuja, quem não ceda ao seu ímpeto, sem meio algum de lhe obstar” (Cap. XXV)
In fine, perdendo a virtù e a fortuna, nada mais resta ao Rei Ricardo III para se manter no poder. Ele perde o seu criminoso principado ao ser morto por Richmond (que representa Henrique VII, o primeiro Tudor).
Diante de tudo que foi acima exposto, voltemos, de forma mais crítica, à analise pergunta inicial dessa resenha: Ricardo III pode ser considerado o “Príncipe” de Maquiavel?
Após uma grande reflexão da História da Inglaterra, talvez a pergunta mais adequada não seja essa, mas sim: Quem realmente foi Ricardo III?
Será que ele realmente foi tão mal, ou isso é fruto de uma historiografia oficial criada pelos seus inimigos da Dinastia Tudor (Mito Tudor) e assimilada por Shakespeare? Shakespeare escreveu a peça 110 anos após a coroação de Ricardo III, a sua peça foi fruto de uma real pesquisa histórica ou da livre imaginação? O que é História e o que é Fantasia no drama shakespeareano?
Afinal, como adverte a Poiética Aristotélica:
“Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e necessidade.” (Aristóteles, Poiética, p. 451)
Instaura-se aqui a dúvida! Uma dúvida que não é fruto de mero devaneio histórico, mas que considera que o verdadeiro historiador não é aquele que faz o acontecimento, mas aquele que traz a informação e multiplica as interrogações e inquietações sobre o fato.
Um historiador deve desconstruir a História tradicional – História dos Notáveis baseada nos feitos dos “grandes heróis” – e corroborar com uma Nova História – uma História Crítica que é cruel, que fere, que faz sangrar, porque mostra a imagem contraria que a sociedade tem de si, desconstrói estereótipos e analisa criticamente a realidade. É dizer, uma história que busque a verdade efetiva das coisas (verdade effetuale de Maquiavel).
Quem foi Ricardo III? Um rei sanguinário, um monstro shakespeariano, um Príncipe maquiavélico que perdeu a fortuna ou um grande injustiçado da História? O próprio Maquiavel, vítima do “antimaquiavelismo”, foi considerado como a encarnação do mal (“The Old Nick”); o responsável pela ideologia de todos os tiranos; um verdadeiro assassino (“The Murderous”) ao dizer de Shakespeare.
Maquiavel morreu desgostoso ao ser considerado erroneamente um traidor da República até que tempos depois pudesse ser defendido e ter sua teoria reabilitada por Rosseau, Spinoza, Hegel, e, ao fim, ser considerado um dos mais importantes teóricos do Estado Moderno.
Do mesmo modo, Ricardo III não descansa em berço esplêndido, ele foi perversamente acusado simplesmente por agir conforme os costumes políticos de sua época, onde os casamentos eram acordos vantajosos, a briga entre herdeiros acaba em morte, e a ação tomada contra os inimigos era a decapitação.
Talvez, os restos mortais de Ricardo III, encontrados em fevereiro de 2013 na cidade inglesa de Leicester, estejam até hoje se remexendo de raiva com o que a História Tradicional fez com seu nome...
A dúvida a respeito de Ricardo III sempre existirá. Príncipe Maquiavélico ou injustiçado histórico? Pouco importa! O que realmente importa é que a Nova História desconstrua os estereótipos e mitos históricos e corrobore para que a sociedade civil possa ter sempre uma análise crítica da realidade posta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES/ DEPARTAMENTO DE LETRAS ESTRANGEIRAS MODERNAS/PROLICEN. Experiências Shakespearianas: Um estudo de Ricardo III. Disponível em: WWW.URL:http://www.prac.ufpb.br/anais/xenex_xienid/xi_enid/prolicen/ANAIS/Area4/4CCHLADLEMPLIC01.pdf
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FEIJÓ, Martin Cezar. O Ricardo III da história e o Ricardo III de Shakespeare. Disponível na internet via WWW.URL:https://central.faap.br/dados/forum_teatro/anexos/244200619732.ppt
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NORA, Pierre. O acontecimento e o historiador do presente. Livro A Nova História. Edições 70, pps. 45- 63
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Edição eletrônica. Obra completa
SHAKESPEARE, William. Ricardo III. Tradução: Carlos A. Nunes, Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Moraes. Obra completa
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WELFORT, Francisco C. Os clássicos da política- Maquiavel, Hobbes, Montesquieu, Rosseau, “O Federalista”. 13ª Ed. Editora Atira, 2000, pps.11 – 50