Repouso semanal remunerado e o direito de liberdade de crença

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O presente trabalho intenta, de forma não exauriente, debater e elucidar a nuance do descanso semanal remunerado para aqueles que não professam a religião católica e que guardam, como dia sagrado, o sábado.

1. Introdução

O descanso semanal remunerado, na tradição de nosso país, busca resguardar o domingo, que celebra a ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Entretanto, pretende-se aqui debruçar sobre o problema que enfrentam aqueles que não professam a religião católica.

De fato, observamos que muitas religiões separam um dia que deve ser dedicado às orações e a lembrança do divino. Em que pese haja uma separação entre a religião e o Estado, este não pode negar aquela, posto que a liberdade de crença, conforme adiante se estudará, é corolário da dignidade da pessoa humana, sendo ambos princípios inerentes à natureza do ser humano.

Ademais, a evolução do Estado e, portanto, do Direito, não pode ser dissociada do estudo religioso. Em verdade, sabe-se que a organização estatal e as leis derivam, em seu formato inicial, da noção do Direito emanado diretamente de Deus, em qualquer das formas que Ele se apresente ao homem. Tanto é verdade que a própria hermenêutica jurídica surge da necessidade do estudo das Sagradas Escrituras, de forma a delas extrair as normas que deveriam guiar o comportamento dos homens cristãos.

Neste sentido e sob este enfoque se desenvolverá o presente artigo.

2. Desenvolvimento

A criação do repouso semanal remunerado remonta às festas religiosas, onde, segundo Alice Monteiro de Barros, eram obrigatórias as presenças de todos, em razão do caráter oficial da religião, razão pela qual não havia trabalho nesses dias.

Segundo citada autora “a influência do cristianismo no desenvolvimento da sociedade ocidental contribuiu para que o repouso semanal recaísse no domingo, com o objetivo de comemorar a ressurreição de Cristo”.

Justamente em razão disso a Constituição Federal veio a positivar o repouso preferencial aos domingos e a Consolidação das Leis do Trabalho determinou que, no caso das mulheres, o mesmo recaísse sobre esse dia a cada duas semanas, de forma obrigatória.

Interessante situação se apresenta no caso dos judeus. Conforme bem sabemos, as Sagradas Escrituras, no Velho Testamento (Torá), instituem claramente o sábado como dia para a guarda das coisas divinas.

Na verdade, já em Gênesis, 2, 1-3, vemos que “Assim os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados. E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera”. (Gênesis 2:1-3).

Ao assim fazer, claramente o Senhor, Javé, designou o sétimo dia da semana, o sábado, para adoração. Acontece que o homem não é o proprietário do mundo, mas meramente seu administrador, devendo, portanto, guardar um dia da semana para a lembrança de que este mundo fora criado por um Ser Todo-Poderoso e bondoso.

É dizer, na tradição judaico-cristã, desde o começo do mundo o sábado deve ser consagrado às orações e adorações.

Assim, o Eterno Deus estabeleceu o sábado como dia para que se possa rememorar a criação, a fim de que seus filhos possam contemplar o verdadeiro motivo da adoração, posto que Ele é criador e os homens, criaturas. O sábado foi criado com a intenção de que os seres humanos mantenham em suas mentes que há um Deus Criador e que não estão neste mundo por acaso, sendo verdadeira proteção contra a ateísmo e a idolatria.

Por estas razões aqueles que professam a religião judaica, bem como Testemunhas de Jeová e Adventistas do Sétimo Dia guardam o sábado. A tradição católica apostólica romana designou como dia de orações o domingo, conforme acima descrito.

Antes de prosseguirmos, mister, ainda, é que se defina a crença em si. Emerson Giumbelli muito bem leciona sobre o instituto:

Quanto à noção de crença, ela não ficou restrita à religião. Duas formulações, pelo menos, são fundamentais como evidência dessa extrapolação. A primeira associa a liberdade de crer com a de não crer; é nesse sentido que se reconhece ao princípio da liberdade religiosa um lugar fundante para outras liberdades civis. A segunda, que pode até ser vista como derivação da primeira, associa crença e opinião. A opinião, tanto quanto a crença, não precisa estar fundamentada; uma sociedade moderna, mesmo assim, lhe garante o direito de existência e de manifestação. Quais as implicações dessas formulações? Elas reconhecem direitos ao agnosticismo e às opiniões, de tal modo que a própria liberdade de crença é que parece derivar deles. Mas se a associação se mantém, é possível concluir que esses princípios se nutrem das contradições que acometem a noção de crença. Lembremos: nela se articulam liberdade e sujeição. Ora, temos aí os fundamentos para que a sociedade seja concebida ao mesmo tempo como imanente e transcendente. A noção de crença - ela mesma o apoio da garantia de existência e manifestação das opiniões em geral - permite que convivam liberdade e sujeição na concepção moderna do que constitui um coletivo político e um sujeito autônomo.

É direito fundamental de qualquer ser humano, pela sua própria condição humana, em não ser obrigado a agir contra sua consciência ou princípios religiosos que professa. Por esta razão não se pode obrigar que alguém professe ou deixe de professar uma religião. Aliás, nesse sentido o art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas: "ARTIGO 18. Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou coletivamente, em público ou em particular".

Ainda no intuito de esclarecer referido direito, a ONU editou resolução de nº 36/55, de onde se extraem os seguintes excertos:

Art. 1º. Ninguém será sujeito à coerção por parte de qualquer Estado, instituição, grupo de pessoas ou pessoas que debilitem sua liberdade de religião ou crença de sua livre escolha.

(...)

Art. 6º. O direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença incluirá as seguintes liberdades:

(...)

h) OBSERVAR DIA DE REPOUSO e celebrar feriados e cerimônias de acordo com os preceitos da sua religião ou crença.

A República Federativa do Brasil é signatária de ambos os tratados.

Bem aponta Kant[1], em sua obra "Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes", que o homem é o único ser capaz de orientar suas ações a partir de objetivos racionalmente concebidos e livremente desejados. A dignidade do ser humano consistiria em sua autonomia, que é a aptidão para formular as próprias regras de vida, ou seja, sua liberdade individual ou livre arbítrio.

Somente no III século é que a expressão liberdade de religião foi, provavelmente, utilizada pela primeira vez, pelo advogado Tertuliano, cristão convertido, que defendia aqueles que não professavam a religião oficial do império contra as tiranias de Roma.

A liberdade religiosa pode encontrar três acepções: jurídica, teológica ou eclesiástica.

No seu sentido jurídico, que interessará nesse estudo, compreende, essencialmente, a liberdade religiosa como direito fundamental do ser humano, tendo sido, pela primeira vez, tutelada pelo direito constituído através da Constituição Americana, ao prever, em sua primeira emenda: “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”[2]. Já no âmbito internacional, a primeira tutela jurídica ao referido direito vem no segundo pós-guerra, com o desenvolvimento do sistema global de proteção aos direitos humanos, pela ONU. No dizer de Rui Barbosa[3] “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa”.

A liberdade religiosa é positivada em nossa Norma Maior, no art. 5º, VI e VIII, in verbis:

Artigo 5º.(...)

(...)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença;

(...)

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei

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Nota-se que não existe norma que obrigue a todos que guardem somente o domingo, ou mesmo que não consagrem o sábado e, acaso existisse, seria inconstitucional.

Na teoria, a situação se resolveria com maior facilidade para os homens, posto que não há obrigatoriedade do repouso semanal remunerado coincidir com os domingos. Entretanto, tal situação não é a mesma com as mulheres, conforme já demonstrado acima.

É de comezinha sabença que, em razão do princípio da primazia da Constituição, esta deve prevalecer sobre normas a ela subordinadas. No caso vemos conflito entre a norma celetista e o direito fundamental de liberdade religiosa.

Para resolver tal conflito aparente de normas deve-se valer das técnicas hermenêuticas mais apropriadas.

O art. XX deve ser interpretado de forma teleológica e sistemática. A intenção do mesmo em determinar o repouso obrigatório das mulheres em domingos comunga com o fato da maioria da população brasileira ser católica, bem como com a assertiva de que as mulheres, com maior frequência, guardam seus domingos indo à igreja e consagrando-se às orações, mormente na época da elaboração de tal artigo celetista.

Assim, não poderia um dispositivo legal ferir sua própria intenção, qual seja, garantir a liberdade religiosa, de tal sorte que sua incidência deve ser afastada quando tratar-se de mulher judia ou de outra religião que guarde às orações dia diverso daquele que a lei prevê.

Da mesma forma, é um direito subjetivo do empregado negar-se a trabalhar no sábado caso seja obrigado por seu empregador, sem que isso importe em justa causa.

3. Conclusão

Assim, concluímos que não pode a legislação, sob o pálio de garantir um direito constitucional o ferir, de sorte que, no caso da mulher judia ou de outra religião que destine o sábado às orações, o descanso semanal remunerado deverá ser retirado sempre nessa data, não aos domingos.

Da mesma forma, é um direito subjetivo do empregado negar-se a trabalhar no sábado caso seja obrigado por seu empregador, sem que isso importe em justa causa.

Tal advêm, conforme acima exposto, do princípio da Primazia Constitucional, onde esta deve prevalecer sobre as normas a ela submissas.

Igualmente, os princípios da Liberdade de Crença e da Dignidade da Pessoa Humana reluzem a informar que deve a norma celetista que reserva às mulheres dois domingos de folga por mês ser descumprida quando em desacordo com a crença religiosa da trabalhadora, mormente ao se levar em consideração que a intenção da norma era justamente garantir às mulheres católicas, enorme maioria em nossa sociedade, referido direito.

Idêntico direito, qual seja, o de guardar o seu dia sagrado às orações, não deve ser negado às judias, testemunhas de jeová ou outras religiões que guardem outros dias que não o domingo, sob pena de malferir tanto os princípios acima citados como o próprio axioma da igualdade.

4. Referências

BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. V. 4, t. 1, 1877

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho, 7ª ed., São Paulo:LTr, 2011.

BIBLIA. Português. 1993. Antigo e Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. no Brasil. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993

BRASIL. Constituição, 1988.

BRASIL. Decreto-lei 5.452 de 01º de maio de 1943.

GIUMBELLI, Emerson. A noção de crença e suas implicações para a modernidade: um diálogo imaginado entre Bruno Latour e Talal Asad. Horiz. antropol.,  Porto Alegre ,  v. 17, n. 35, jun.  2011 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832011000100011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  16  ago.  2014.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832011000100011.

KANT, Immanuel apud SCHEINMAN, Maurício. Liberdade religiosa e escusa de consciência. Alguns apontamentos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 712, 17 jun. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6896>. Acesso em: 13 ago. 2014

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Resolução de nº 36/55


[1] KANT, Immanuel apud SCHEINMAN, Maurício. Liberdade religiosa e escusa de consciência. Alguns apontamentos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 712, 17 jun. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6896>. Acesso em: 13 ago. 2014

[2] Tradução livre.

[3] Obras Completas de Rui Barbosa. V. 4, t. 1, 1877. p. 419

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Sobre os autores
Rodrigo Rocha Gomes de Loiola

advogado, militante na justiça do trabalho

Vanessa Batista Oliveira

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2010). Advogada com graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (2004). Possui Pós-Graduação em Direito Processual Civil. Professora de Direito do Trabalho dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direito e Processo do Trabalho da Universidade de Fortaleza. É professora do Curso de Pós Graduação em Direito e Processo do Trabalho na UNICHRISTUS. Ministra disciplinas em Curso de Pós Graduação em Direito e Processo do Trabalho do Curso Sentido Único. É professora do Curso de Pós Graduação em Direito e Processo do Trabalho do Curso Juris. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito do Trabalho, direitos sociais, saúde mental, direitos culturais e poder judiciário. Exerce a advocacia na área trabalhista em Fortaleza. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito do Trabalho da Universidade de Fortaleza. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza. Membro Associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Ex-bolsista da FUNCAP.

Informações sobre o texto

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