Inicialmente, mister se faz algumas ponderações, a fim de situar o leitor sobre o fim do presente estudo.
O que é a catchanga[1]?
Pois bem.
Em uma de minhas aulas de Direito Constitucional, ouvi de um brilhante aluno a seguinte estória:
Um senhor milionário, ao chegar em uma cidade do interior, buscou uma casa de apostas. Sentou-se sozinho em uma das mesas. Pôs a beber. E se chafurdou, por horas, sobre as bebidas mais fortes daquele recinto.
A solidão do milionário foi quebrada pelo próprio dono da Casa. É que o jovem empreendedor, ao perceber que o seu cliente estava tomado pelo álcool, resolveu oferecer-lhe serviços de apostas. Buscava, sem qualquer piedade, obter lucros em detrimento do milionário.
E assim, iniciou o diálogo:
- Boa noite! Sou o dono desta Casa de apostas. Notei que o senhor tem semblante de ótimo jogador. Um adversário sem igual para mim e para esta Casa! Proponho-lhe que aceite uma de nossas modalidades de jogo: roleta, tômbola, draw poker ou blackjack.
- Meu caro, respondeu o senhor milionário, eu só jogo a catchanga.
O jovem, aturdido, perguntou aos seus funcionários, os crupiês, se aquele jogo era conhecido por algum deles. Ninguém, sequer, tinha ouvido falar naquele tipo de aposta.
Mas o empreendedor não queria deixar de ter lucros desenfreados sobre um senhor extremamente embriagado: aposta fácil, pensou, não se perde!
Foi quando teve a astúcia de determinar que o seu melhor crupiê jogasse, a fim de entender as regras do jogo.
E assim se sucedeu.
Na primeira partida, o cliente distribuiu as cartas. Do nada, bradou:
- Catchanga!
E em seguida, recolheu todo o dinheiro que estava na mesa.
Na segunda mão, idem:
- Catchanga!
E todo o dinheiro foi para o bolso do senhor milionário!
Outras partidas se sucederam, até que o crupiê, em reservado, chamou o jovem e lhe disse:
- senhor, já entendi: basta gritar catchanga, antes dele. Muito fácil. E como ele está bêbado, terei mais habilidade do que aquele senhor. Assim, sugiro-lhe que aposte valor extremamente elevado.
Acolhendo a sugestão do seu funcionário, o empreendedor propôs ao cliente que dobrassem o valor de toda a aposta já feita por eles até aquele momento.
O senhor, com ar embriagado, aceitou sem titubear.
As cartas foram distribuídas; a mesa ficou abarrotada de dinheiro. Ocorre que, na fração de segundo após o depósito da última carta na banca do jogo, o crupiê, vitorioso, gritou:
- Catchanga!
Já estava recolhendo todo o montante acumulado, quando o senhor, com toda segurança do mundo, tomou-lhe a quantia, ao reverberar:
-Catchanga real!
Eis a primeira premissa!
É de conhecimento geral que Robert Alexy formulou a “teoria dos princípios”.
Por esta, o escritor, com a destreza que lhe é peculiar, propugna que os direitos fundamentais possuem caráter de princípios e, nessa condição, eles eventualmente colidem, sendo assim necessária uma solução ponderada em favor de um deles[2].
Havendo colisão de princípios, o exegeta da norma deve aplicar o sopesamento ou a ponderação, técnica que exige uma robusta fundamentação, calcada em argumentos jurídicos firmes, objetivos e racionais.
Posta está a segunda premissa.
Ocorre que a Catchanga pode ser utilizada para “destruir” a ponderação[3]. E esta atecnia é utilizada, com frequência, pelos Tribunais Pátrios.
Virgílio Afonso da Silva logrou descrever, com brilhantismo, este fenômeno, no seu texto “O Proporcional e o Razoável”[4].
Ele abalizou vários casos em que o Supremo Tribunal Federal, ao pálio de que os direitos fundamentais podem ser relativizados com base no princípio da proporcionalidade, simplesmente invalidou o ato normativo questionado, sem demonstrar dentro de um conteúdo objetivo, racional e crítico, as razões que tornavam o ato desproporcional.
Matamos, com nossas catchangadas, Robert Alexy todos os dias!
A técnica do sopesamento, grande ferramenta à disposição da efetividade dos direitos fundamentais, em diversos casos, vem sendo usada de forma arbitrária por diversos magistrados do Brasil. Daí a criação, pela doutrina, da expressão: “Alexy à brasileira”.[5]
Ocorre que a espécie é de fundamental importância. Trata-se de uma saída de mestre, diante das inevitáveis e corriqueiras colisões de normas princípiológicas dos direitos fundamentais.
Todavia, não se pode permitir que a mesma seja usada para fomentar decisões discricionárias, aos moldes da “catchanga real”: sem regras nítidas, objetivas e racionais.
O problema exposto no nosso trabalho, qual seja, evitar que matemos Robert Alexy, de fato, é tarefa árdua. Talvez, impossível de ser obtida. Todavia, algumas regras, se adotadas, combaterão o uso da catchanga.
Com efeito, com este objetivo, é de imperiosa importância fortalecer o sistema de precedentes judiciais. Aliás, com o novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), ao menos em tese, damos um grande passo neste sentido.
Além do mais, mister se faz primar por decisões objetivas, lastreadas em dados objetivos, raciocínio cognitivo coerente e análise empírica escorreita.
É preciso, ainda, reforçar a necessidade de aplicar, com a devida fiscalização, o princípio da imparcialidade do juiz. Isto porque, se o magistrado – ainda que indiretamente, tiver interesse no resultado do processo, naturalmente, ele tenderá a galgá-lo, mesmo que fazendo uso da catchanga.
Precisamos, com afinco, fomentar a proteção aos direitos fundamentais, notadamente, quando houver colisão entre eles, usando o sopesamento, conforme defendido por Alexy. Contudo, não se pode permitir o uso da catchanga, sob pena de se verter a ideia do mestre alemão em argumentos para a discricionariedade.
REFERÊNCIA
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.
MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real'”, por Lenio Streck. Disponível em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[1] Com base, para melhor abordagem, no brilhante texto de MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[2] ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.112
[3] Neste sentido, Streck Lenio, “A estória da ‘Katchanga Real'”, por Lenio Streck. Disponível em: < http://professormedina.com/2012/02/28/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/> . Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[4] Citado por MARMELSTEIN, George. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em: < http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/> Acessado em: 07 de janeiro de 2016.
[5] Ibidem.