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O princípio da isonomia e sua incidência nas isenções extrafiscais

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2 - O princípio jurídico-constitucional da isonomia

Não se pode pensar em democracia prescindindo a igualdade. Visto que esta constitui o elemento conferidor da força que aquela substancia. Ao vedar a concessão de privilégios descabidos e distinções infundadas, a igualdade - assim concebida como valor ínsito ao Estado Democrático de Direito e positivamente normatizada nas Constituições - se torna a um passo, elemento de limitação dos poderes públicos na elaboração de seus atos políticos, como de outro, norteia e direciona o próprio Estado, finalisticamente, na busca de mecanismos que possibilitem a redução das desigualdades sociais, conferindo aos cidadãos a legitimidade de invocá-la sempre que se encontrarem em situações malferidoras desta, que é sem dúvida o direito e princípio maiores da ordem jurídica.

O art. 1º da Constituição ao fazer a adoção da República e da Democracia, insere os dois baluartes do fundamento do princípio da igualdade, e efetivamente, os demais artigos que qualificam o estado democrático de direito apontam na direção não de uma neutralidade, mas de uma intervenção do Estado, para corrigir as profundas desigualdades sociais existentes.

Não é por outro motivo que a burguesia, como ensina o profº José Afonso da Silva, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa. [27]

A conclusão de que todos " os homens nascem iguais em direitos e obrigações e assim permanecem ao longo de suas vidas, enquanto seres humanos" já completou ‘muitos anos de vida’. A igualdade de todos, não só perante a lei, como dentro dela, é postulado básico dos modernos estados, que se revela nas suas Constituições. A par de se revestir em princípio constitucional consolidado, como já observado, a cada reforma do sistema constitucional o legislador sente a necessidade de reescrevê-lo com tintas mais fortes, vale dizer, com maior abrangência, atento a que ‘a idade avançada da isonomia não tem garantido suficientemente a igualdade de tratamento a que se propõe’. Constata-se ao fazermos a leitura da Constituição, que a igualdade se molda como a base estrutural do nosso sistema normativo, e isso já observamos no preâmbulo da Constituição, ao atribui-la como valor constitucional básico. E para reforçar a idéia, o art. 5º do Texto Constitucional em dois instantes menciona, diz que " Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se... o direito... à igualdade... ".(g.n).

A compreensão deste dispositivo não deve se estreitar apenas ao sentido formal da isonomia, mas, deve ser interpretado com outras normas constitucionais e com as exigências da justiça social que conformam o sentido da ordem política do nosso Estado. No decorrer deste capítulo faremos uma abordagem dos aspectos relevantes que circundam e delimitam a juridicidade do princípio da isonomia.

2.1 Conteúdo e sentido jurídicos.

A consolidação da isonomia nos estados modernos é imperiosa. A despeito desta, surge o problema do seu real sentido, da sua conceituação, pois, se há categorias jurídicas de fácil apreensão, que se mostram encobertos por títulos complicados, de pouco uso, com a isonomia verifica-se o oposto. Trata-se de conceito aparentemente simples, posto que isonomia denota igualdade, mas, a real significação do termo apresenta pontos de extrema complexidade e dificuldade, desafiando os doutrinadores a aclará-lo, tarefa esta que não encontrou a devida dedicação dos doutos, talvez pela própria complexidade da matéria, sendo minguado, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, o auxílio doutrinal efetivo em tema de igualdade [28]. Ainda assim, excelentes juristas já teceram comentários sobre o tema.

A igualdade como valor, encontra sentidos diferentes de acordo com o respectivo momento histórico. É cediço que os sentidos valorativos de um modo geral variam no tempo, isto é, se condicionam pela evolução sócio-cultural de um povo num dado território. Causa espécie verificar que a humanidade ultrapassou séculos tratando os homens de per si desigualmente, discriminando-os em livres e escravos, negando em muitos casos a própria qualidade de pessoa, para aproximá-los dos animais ou objetos.

Passo inicial foi dado no século XVIII, com a revolução francesa e as declarações de direitos humanos, onde os sistemas jurídicos foram instados a conceberem todos os homens como iguais independentemente de qualquer condição, tais como cor, sexo, idade, pensamento político... Essa inserção da igualdade nos textos constitucionais pós-revolução, impregnada pelo pensamento liberal-burguês, a concebeu como uma igualdade jurídica, isonomia formal, isto é, igualdade perante a lei, o que trouxe em verdade, uma desigualdade de fato decorrente das diferentes aptidões pessoais e das condições sócio-econômica dos cidadãos.

A igualdade como norma, isto é, isonomia em termos normativos, é ditada pela norma, mas ela não é igualdade de fato, porque as pessoas são de fato diferentes. Tércio Sampaio Ferraz averbou que " a força valorativa, axiológica da igualdade na esteira das revoluções modernas, no entanto, aponta para uma espécie de neutralização das desigualdades de fato; das desigualdades culturais, como aquelas fundadas em outros aspectos da vida humana em termos fáticos" [29]. O valor atua como elemento neutralizador de discriminações desarrazoadas. Exemplificando: no século XIX o valor igualdade é usado para neutralizar as desigualdades quanto ao trabalho, já no século XX, com a derrocada do nazismo, revelou a importância da neutralização das chamadas desigualdades raciais, e também no mesmo século, possibilitou a equiparação da mulher e a neutralização das desigualdades decorrentes do sexo.

Tércio Sampaio Ferraz aponta que a noção de igualdade na Constituição tem dois usos fundamentais e que por meio deles nós poderíamos chegar a critérios interpretativos diferentes das diversas questões que são atravessadas pelo princípio da igualdade. Numa aproximação negativa, isto é, numa tentativa de definição pela negação, o valor igualdade significaria, portanto, exigência de não-discriminação política, jurídica, religiosa, sexual, etc... Esse sentido pressupõe que de fato os homens são diferentes. Mas numa aproximação então positiva, sustenta o jusfilósofo, o valor igualdade aponta para a igualdade dos pontos de partida enquanto equalização de possibilidades, equalização de oportunidades. Nesse sentido significa um valor social que pressupõe que de fato os homens são, mas podem ser menos diferentes pelo menos. No primeiro sentido seria um uso de bloqueio, no segundo, um uso de realização legitimante, um uso de finalidade. Não é proibir, mas é exigir que se realize, exigir que se atinja certas finalidades. [30]

A isonomia como princípio constitucional, é norma que se dirige quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. No Direito estrangeiro, aponta José Afonso, faz-se distinção entre o princípio da igualdade perante a lei e o da igualdade na lei. Aquele corresponde à obrigação de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com o que elas estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação, o que caracteriza a isonomia puramente formal, enquanto a igualdade na lei exige que, nas normas jurídicas, não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria Constituição. [31]

Kelsen ressaltava que a igualdade perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. O sentido relevante do princípio isonômico está na obrigação da igualdade na própria lei, vale dizer, entendida como limite para a lei. Colocar o problema naquela, afirmava o mestre austríaco, seria nada mais do que ‘afirmar simplesmente o princípio da regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda a ordem jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis - em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas’ [32].

Afirma José Afonso, que entre nós essa distinção é desnecessária, visto que tanto a doutrina quanto a jurisprudência já pacificaram o entendimento de que a igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na lei. E sobre o significado do princípio para o legislador, cita Seabra Fagundes: "que, ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições - os mesmos ônus e as mesmas vantagens - situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a quinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades". [33]

Fechando o raciocínio, temos que a aplicação da lei indistintamente a todos é um mero aspecto da isonomia, talvez o mais desimportante deles. Há que ficar patente que, o princípio da isonomia com residência constitucional, implica que a lei em si considere todos os homens igualmente, ressalvadas as desigualdades que devem ser sopesadas para o prevalecimento da igualdade material em detrimento da obtusa igualdade formal, conforme já asseverado.

Das afirmações sobre a incidência do princípio isonômico já postas, não há de se encontrar resistências. Ao contrário, todos são concordes em aceitar a valia do mesmo, com um cunho de superioridade dentro do ordenamento jurídico. Mas, apesar dessa aceitação, devemos buscar uma objetivação, uma precisão maior, dado que os enunciados, embora enfocados de forma clarividente, travestem-se de excessiva generalidade.

Rui Barbosa reestruturando o pensamento de Aristóteles, inúmeras vezes utilizado pelos que se enveredam nos caminhos da tentativa de delimitar o conteúdo do princípio isonômico, averbou que " A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam (...). Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". [34]

Apesar dessa brilhante construção e sem lhe retirar o caráter de inquestionabilidade, adotando-a em seu integral teor, ainda persiste uma indagação, que se torna o ponto nodal de tudo o quanto foi exposto nesta dissertação até o momento, a saber: quem são os iguais e quem são os desiguais?

E mais, conforme Celso Antônio, o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Em suma: qual o critério legitimamente manipulável - sem agravos à isonomia - que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? E prosseguindo: ‘afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?’ [35]

Se enfrentarmos cada uma dessas indagações, retiraremos a névoa de abstração que envolve a matéria e estaremos contribuindo para a objetividade do princípio, para sua inserção efetiva no cotidiano jurídico. Assim, estaremos "levando a sério o Direito", no dizer de J. J. Gomes Canotilho.

2.2 Igualdade material e desigualdades formais permitidas

Sendo sua característica funcional, a lei discrimina situações para submetê-las à regência de regras específicas. Ao abarcar estas atribuições é preciso que seja feito o questionamento de quais discriminações são juridicamente toleráveis.

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Não se põe óbices quanto a assertiva de que as pessoas são, de fato, diferentes, ou seja, possuem traços diferenciadores que as particularizam dentro do grupo social a que pertencem. Já no que pertine à igualdade, proclama Tércio Sampaio Ferraz que: ‘sempre, ainda que não queiramos, a igualdade humana é sempre fruto da norma, ela não é um fato’. O fato, continua o professor, nos mostra o reverso, ‘os homens são desiguais nos mínimos detalhes: o que é igual é sempre fruto da norma, é fruto cultural’ [36]. Em sendo assim, podemos formular o raciocínio no qual a igualdade busca guarida na norma, ou seja, ela é fruto da cultura humana na busca de um objetivo a ser buscado, a saber, a redução das desigualdades verificadas na realidade da vida, nos diversos aspectos que diferenciam os homens dentro da sociedade e que fazem o Estado intervir para reduzi-las.

Para evidenciar o que foi dito, sabemos que aos menores não são conferidas as mesmas atribuições postas aos maiores de idade; já às mulheres são conferidas menos exigências em comparação aos homens no tocante à aposentadoria; a licença maternidade é superior à licença paternidade; os idosos recebem tratamento distinto em relação aos mais jovens; aos deficientes físicos se dispensa tratamento peculiar; os profissionais dos diversos ramos são diferençados nos respectivos misteres; algumas pessoas, física ou jurídica, gozam de privilégios processuais em detrimento das restantes, etc... A lista de exemplos de discrímines admitidos pela cultura jurídica nacional poderia se estender por inúmeras páginas. Então novamente perguntamos. Onde estaria, pois, a linha divisória entre o permitido e o vedado?

Neste assunto, é valiosa a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello em seu livro O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade [37]. A importante contribuição desse jurista se dá na medida em que traz novos critérios, objetivos, segundo os quais se pode aferir em que proporção quaisquer diferenças entre as pessoas, contempladas nas normas, como pressuposto de um tratamento díspar, ferem ou não o princípio da isonomia. A partir daí, formula o conteúdo jurídico do princípio em tela, fixando as regras que ensejam avaliar aquelas distinções contidas na norma, e mais, decidir sobre a existência ou não de constitucionalidade das desigualdades eventualmente consideradas pelo legislador.

Sobre estes pontos, utilizamos a estruturação elaborada pelo publicista referido, para concatenação do sentido do nosso trabalho. Ao tempo em que inserimos valiosas contribuições de outros mestres.

2.3 Mecanismos para identificação da inobservância do princípio isonômico

Num primeiro instante, acorre, a quem se dispõe enfrentar a matéria, a idéia de que é no próprio discrímine que se identifica eventual vício contra a isonomia, para em seguida se fazer a catalogação das diferenciações legítimas das vedadas. Isto é, parte-se do pensamento de que determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem colhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação, sob pena de se chocarem com o princípio da isonomia.

Deste pensar, acredita-se que não podem ser legalmente desequiparadas as pessoas em razão do sexo, da idade ou da convicção religiosa - art. 5º. caput da Constituição - ou em razão de inúmeros outros fatores residentes nas coisas, pessoas ou situações.

Ledo engano, não são sob estes elementos que se busca aferir a incidência do princípio isonômico [38]. Sendo facilmente demonstrado, pela configuração de algumas hipóteses em que estes caracteres são determinantes do discrímen para se ver que, entretanto, em nada se chocam com o princípio. Por exemplo, nada obsta que sejam admitidas apenas mulheres - desequiparação em razão de sexo - a concursos para preenchimento de cargo de "polícia feminina", outrossim, inexistirá gravame à citada cláusula constitucional na autorização normativa que faculte aos funcionários filiados a credo religioso incompatível com o comparecimento a solenidades pomposas, absterem-se de frequentá-las, ainda que, em razão do cargo, devessem, em princípio, fazê-lo, se lhes atribuir atividades substitutivas proveitosas para a coletividade. [39]

Portanto, qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações, pode ser escolhido pela lei como fator de discriminação, visto que a agressão ao princípio da isonomia se mostra mais na relação entre o discrímene e a consequência a ele associada, do que no próprio elemento erigido à condição de diferenciador. Assim sugere Celso Antônio: "as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que a correlação não seja incompatível com os interesses prestigiados na Constituição." [40]

O que o ditame constitucional faz, ao proibir a desequiparação por motivo de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas, é simplesmente colocar evidenciado certos traços que não podem, isoladamente, por razões preconceituosas, ser colocados gratuitamente como razão fundamentadora do discrímen. O art. 5º. caput, colheu na realidade em que vivemos, fatores que possivelmente poderiam se tornar fontes de desequiparações desarrazoadas, e tingiu, com a marca da impossibilidade, de virem a ser em algum momento, por si só utilizados. Isto é, desprovida a desequiparação de uma pertinência lógica, encontra na norma constitucional seu obstáculo intransponível. Os fatores que o constituinte reputou relevantes foram expressamente demarcados, ficando os demais absorvidos na generalidade da regra.

A Constituição pretende com esse mandamento, evitar desequiparações infundadas. Neste aspecto, Pimenta Bueno externou precioso entendimento: "A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania" [41].

Celso Antônio propõe três questões para o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia: 1) primeiramente tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório, depois, 2) impende seja verificado se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. 3) Finalmente, adverte o jurista, cumpre analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional [42]. Procura-se assim, verificar se a construção normativa guarda ou não harmonia com tais valores.

Não basta adotar só um dos pontos supra aduzidos para se fazer a análise do problema e verificar no caso concreto a ofensa ou a compatibilidade com o princípio isonômico, impõe-se sejam analisados os três aspectos de forma conjugada, posto que a hostilidade ao preceito pode encontrar residência em qualquer deles, bastando assim, por infração a apenas um ponto, tornar incompatível a regra de direito com o princípio constitucional. A norma jurídica deve satisfazer todas as três exigências para ser compatível com a isonomia constitucionalmente preceituada.

2.3.1 Isonomia e fator de discriminação

Neste ponto a lei não pode estabelecer um aspecto tão específico que singularize no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime peculiar; o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; em decorrência, elemento algum que não exista nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes. [43]

Os objetivos prioritários do princípio da igualdade se encerram em dois, a saber, sob um ângulo visa a garantia individual contra perseguições, e sob o outro, procura impedir favoritismos. Não pode a norma jurídica atribuir um benefício a uma pessoa determinada, sem propiciar a aferição aos demais, nem de outra forma impor um gravame sobre um só indivíduo.

Relevante enfocar que a violação também se configura quando a norma tenta em sua aparência se mostrar amparada pelo preceito constitucional, sendo formulada em termos que permitam, em uma leitura menos rigorosa, pensar que a mesma possui caráter de generalidade e abstração, quando na verdade maquiou um dirigismo particular. A ofensa tanto pode vir em flagrância quanto camuflada, a censura será a mesma.

2.3.2 Correlação lógica entre o fator discriminante e a desequiparação procedida

O ponto crucial, segundo Celso Antônio, para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele [44].

O reconhecimento da juridicidade de uma norma diferençadora ocorre de modo espontâneo ou até mesmo inconsciente, quando se é possível estabelecer uma congruência entre a distinção de regras estabelecidas e a desigualdade de situações correspondentes. Basta exemplificar que jamais se investiu contra a licença maternidade de 120 dias, diferençada da duração da licença paternidade de muito menor duração; da mesma forma não atenta contra a isonomia a regra que limita a responsabilidade criminal aos maiores de 18 anos; nem a outra que estipula a aposentadoria compulsória aos servidores que conseguem chegar aos 70 anos, e assim, muitas outras regras no sistema normativo.

Da mesma forma, é imediata e espontânea a rejeição de validade quando a regra aparta situações, desequiparando-as, e se embasa em fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado. Assim, a igualdade estará agredida, segundo Celso Antônio,"quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guardar relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto...a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferençada." [45]

2.3.3 Harmonia entre a discriminação e os interesses amparados pela Constituição

Não é qualquer diferença que se presta validamente a ser fator de discriminação legal, mesmo que seja logicamente explicável. Não basta que se possa produzir racionalmente um nexo entre a diferença e o consequente tratamento diferençado. Exige-se que, além disso, o vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente. Ou seja, o sistema constitucional é quem vai ser o parâmetro para aferição da receptividade da regra criada face ao ordenamento jurídico.

Portanto, além da correlação lógica que se exige entre o critério desigualador e a desigualdade de tratamento procedida, ainda se põe outra exigência para se estabelecer a lisura jurídica das desequiparações, como aponta Celso Antônio, a saber, é mister que se retrate concretamente um bem - e não um desvalor - absorvido no sistema normativo constitucional. [46]

Traz o multicitado autor, um exemplo que muito vem a calhar para o propósito do nosso trabalho. Senão vejamos: poder-se-ia demonstrar existência de supedâneo racional, a dizer, nexo lógico, em desequiparação entre grandes grupos empresariais e empresas de porte médio, de sorte a configurar situação detrimentosa para estas últimas e privilegiada para os primeiros, aos quais se outorgariam, por exemplo, favores fiscais sob fundamento de que graças à concentração de capital operam com maior nível de produtividade, ensejando desenvolvimento econômico realizado com menores desperdícios. A distinção estaria apoiada em real diferença entre uns e outras. Demais disso, existiria, no caso, um critério lógico suscetível de ser invocado, não se podendo falar em discrímen aleatório. Sem embargo a desequiparação em pauta seria ofensiva ao preceito isonômico por adversar um valor constitucionalmente prestigiado e prestigiar um elemento constitucionalmente desvalorado" [47].

A regra concessória do benefício fiscal, apesar de se estabelecer em critério diferencial lógico, encontrou a resistência do interesse amparado no artigo 173, parágrafo 4º da Constituição, que visa à repressão de situações que possibilitem a dominação dos mercados e a eliminação da livre concorrência, haja vista, que do jeito que foi formulada, contraria o real sentido da ordem econômica, qual seja, a busca da justiça social. (art.170, CF, caput).

2.4 Isonomia tributária e capacidade contributiva

Tudo o que foi até agora exposto sobre o conteúdo do princípio da igualdade, numa ótica generalista dentro do sistema normativo, se insere, e ainda mais, ganha em importância e pertinência na seara do Direito Tributário. Os aspectos negativo e positivo, o uso de bloqueio e de finalidade retro enfocados são aqui plenamente inseridos.

Aponta Misabel Derzi que a isonomia, com relação ao Direito Tributário, deve ser formulada também, e com necessariedade, de maneira positiva. Diz a professora que essa é a tormentosa questão. Formular o princípio positivamente, sendo certo que em matéria fiscal, interessa menos saber o que o legislador está proibido de distinguir e mais o que ele deve discriminar. Cita trecho memorável de Ataliba: "Não adianta ter Poder Judiciário, se não houver a exigência de igualdade. Não adianta ter Poder Legislativo democrático. Não adianta representatividade. Não adiantam as balizas para o Poder Executivo. Não adianta o habeas corpus, o mandado de segurança, nada, quando não houver o princípio da igualdade" [48].

Perquirir o sentido concreto de igualdade, como já analisamos anteriormente, arrasta profundas divergências, pois envolve posturas ideológicas, políticas e axiológicas. Novamente Misabel Derzi, com sua costumeira luz, atualizando o primoroso Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, do saudoso Baleeiro, toma como pressuposto fundamental, a unidade do justo, ou seja, a aproximação da justiça tributária com o princípio da igualdade. Aduzindo que "não pode haver igualdade parcelada, justiça parcelada, pois a Constituição integra as suas partes distintas em um todo harmônico e coerente. Por isso mesmo, generalidade, capacidade contributiva e outros valores, ditados pela política econômica e social do país, são desdobramentos de um mesmo e único princípio, o da igualdade." [49]

O levar dinheiro aos cofres públicos - num Estado Democrático de Direito - dever oriundo de uma relação jurídica obrigacional, que tem como caractere ontológico, a repartição dos encargos financeiros do Estado pelos cidadãos, haja vista que estes detêm uma parcela ideal daquele, gera a postulação, pelos sujeitados à carga fiscal, de invocarem uma igualitária repartição daquele ônus, ou seja, que o sacrifício seja igualmente distribuído para todos os cidadãos. Mas, essa assertiva do jeito que esta posta não satisfaz por completo.

A contribuição dos cidadãos na cobertura das necessidades financeiras do Estado, há de vir conjugada com o imperativo contido no princípio constitucional da igualdade, que se mostra em um de seus aspectos, através do princípio da capacidade contributiva. Que exige a conformação da exigência estatal com os ideais de justiça inseridos na Constituição. Donde temos que, igualdade, capacidade contributiva, pessoalidade, vedação do confisco e justiça são os pilares que alicerçam a teoria da tributação.

Tais elementos se constituem em princípios constitucionais, com toda importância já enfocada neste trabalho. Não mais implícitos na atual Constituição, mas expressos e integrantes dos direitos e garantias fundamentais do cidadão contribuinte. Em sendo assim, são auto-aplicáveis, efetivos e voltados à concretização do Estado Democrático de Direito.

Tomando a estruturação formulada por Celso Antônio, a qual adotamos antes, como parâmetro, temos que o elemento ‘riqueza’ se adequa perfeitamente à referida desigualação porquanto apto a acudir ao sistema de repartição da despesa pública, que objetiva satisfazer as necessidades gerais (correlação lógica concreta), harmonizando-se assim, com os interesses amparados pela Constituição, quais sejam, igualdade de oportunidades, desenvolvimento social, redistribuição de renda, etc. O elemento riqueza, que informa a capacidade contributiva, é o critério de discrímen que permite à lei escolher hipóteses que singularizem em diversos momentos os sujeitos visados pela norma de tributação, dependendo das diversas realidades econômicas. É essa situação, o fato gerador da obrigação tributária.

A contribuição do cidadão para os gastos públicos não deve ultrapassar o mínimo necessário para sua subsistência digna. O art. 145 da Constituição, em seu primeiro parágrafo, contém a primeira grande proibição de distinguir entre iguais, específica do Direito Tributário. Ao assegurar a pessoalidade e a graduação segundo a capacidade econômica, esse dispositivo veda a distinção entre aqueles que demonstrem possuir a mesma força econômica. É sobre esta perspectiva que o princípio da capacidade contributiva demonstra sua força. Vedando a tributação arbitrária e atuando, conforme, o profº José Marcos Domingues, quer como pressuposto ético-jurídico da tributação quer enquanto expressão de isonomia, igualando a todos em face do tributo [50].

O referido autor dedicou relevo à matéria, fazendo um minucioso estudo da doutrina pátria e principalmente da doutrina estrangeira. Vejamos:

"GRIZIOTTI chegou a localizar na capacità contributiva a própria causa jurídica do imposto e modernamente MANZONI a concebe como "afirmação da igualdade tributária". SÀINZ DE BUJANDA assevera que o princípio da igualdade em matéria tributária se reduz praticamente, ao princípio da capacidade contributiva. CORTÉS DOMINGUEZ e MARTÍN DELGADO definem o princípio como "a estrela polar do tributarista... FERREIRO LAPTAZA leciona que é uma forma de entender a generalidade e a igualdade tributárias ". [51]

2.4.1 Crítica da concepção do princípio da capacidade contributiva como totalizador do princípio da igualdade.

Palao Taboada, talvez um dos maiores críticos da capacidade contributiva como princípio abarcador da igualdade, quando da sua primeira visita ao nosso país, numa conferência realizada em São Paulo, elaborou importante análise da evolução do referido princípio, traçando o que ele propôs definir como o "apogeu e crise do princípio da capacidade contributiva".

Taboada aponta que numa primeira fase, a capacidade contributiva era tida como uma forma de exprimir um princípio de justiça intuitiva, era concebida como uma idéia deduzida imediatamente do princípio de justiça. Posteriormente, ela é tida como necessária para o conteúdo da igualdade. A doutrina entendia que o único critério válido para a aplicação do princípio de igualdade era o conceito de capacidade contributiva. Esta, delimitava o espaço da igualdade. A fase da crise, surge, ante o distanciamento do princípio da capacidade contributiva da noção de extrafiscalidade. A capacidade contributiva perde, assim, o seu status totalizante. Afirma o autor que, até então, a capacidade contributiva aparecia no frontispício do tratamento doutrinário, como na monografia de Manzoni, por exemplo. Já na obra de La Rosa, a noção da capacidade contributiva desaparece e passa ao primeiro plano o princípio da igualdade [52].

Misabel Derzi, nas atualizações à obra de Baleeiro, também ressalta a influência da doutrina italiana, a qual, na década de sessenta (século passado), operou o apogeu da capacidade contributiva, influênciando vários doutrinadores como Sainz de Bujanda e Cortés Domingues. Colocando-a como critério básico de justiça e legitimidade da imposição, senão o único. Aduz a professora mineira, que é exatamente essa pretensão, a saber, erigir o princípio da capacidade contributiva em critério exclusivo de justiça tributária, que marcará o ponto frágil da teoria, desmentida, segundo ela, em face dos fins extrafiscais dos tributos, cada vez mais frequentes na realidade social e jurídica de nossos dias [53].

A partir de então, observa Misabel Derzi com base em Taboada, instala-se uma revisão ou recomposição de idéias, à vista do fracasso de se eleger o princípio da capacidade contributiva como critério exclusivo de justiça tributária. O referido autor demonstra o giro decisivo que se operou na doutrina, ante a impossibilidade prática do reduzicionismo proposto até então. O que fez o princípio da capacidade contributiva se desvincular da igualdade e cada um passar a ter âmbito diverso de atuação [54].

Importante ficar evidenciado que não estamos diminuindo nem amesquinhando o princípio da capacidade contributiva, apenas e tão só, delimitando seu campo de incidência. Concebemos pois, tal princípio, como um dos reflexos da igualdade tributária constitucionalmente assegurada, e não como a igualdade tributária em sua totalidade.

O conteúdo do princípio da capacidade contributiva, com sede constitucional (art. 145, par. 1º), exerce papel fundamental na construção jurídico-tributária, tendo de fato, posição nuclear dentro do sistema tributário. Confere ainda, suporte a outros, como vedação do confisco, igualdade material e seletividade. Mas, não se pode atribuir a ele, por outro lado, o qualificativo de ser o único a atuar na modelagem das normas que compõem o sistema tributário, esgotando, assim, o conteúdo do princípio da igualdade e da justiça distributiva. A redução drástica e esquemática do sistema ao princípio da capacidade econômico-contributiva, segundo Misabel, falseia a complexidade evidente da realidade e deixa inexplicados diversos fenômenos jurídicos, especialmente a extrafiscalidade [55].

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Sobre o autor
Flávio Marcondes Soares Rodrigues

Procurador Federal em Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Flávio Marcondes Soares. O princípio da isonomia e sua incidência nas isenções extrafiscais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 150, 3 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4574. Acesso em: 20 abr. 2024.

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