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O princípio da isonomia e sua incidência nas isenções extrafiscais

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3 Isonomia, isenção e extrafiscalidade

No presente capítulo, faremos uma abordagem objetiva da intrincada correlação que se estabelece entre os institutos da isonomia, isenção e extrafiscalidade.

Temos que o mecanismo de instituição dos tributos, se revela precipuamente, na atividade de investida que o Estado exerce sobre o patrimônio dos particulares, tendo como finalidade o custeio dos gastos públicos. Investida esta, limitada constitucionalmente pelos princípios já aduzidos. A tributação, objetiva em essência, a percepção de receitas para os cofres do Estado.

O legislador ao discriminar fato-situação do mundo relevante, tinge-o com o qualificativo de jurídico, isto é, o torna apto a sofrer a incidência de uma norma. Ocorrendo, ou melhor, se concretizando tal fato no mundo fenomênico, conforme a melhor doutrina, a norma que o regula incide infalivelmente, objetivando gerar os efeitos desejados pelo seu produtor. As normas tributárias seguem esse caminho, não sem passar pela conformação ou pelos limites constitucionais supra enfocados.

Destarte, o elemento riqueza se revela como o fator de discrímen, ou seja, compõe através de seus diversos aspectos, o fato gerador da obrigação tributária. A atividade do legislador, se volta para perquirição de ‘fatos signos presuntivos de riqueza’, na feliz expressão de Becker. Atividade válida, somente, se conformada com a idéia da capacidade contributiva.

O princípio da capacidade contributiva serve de baliza para averiguação da justiça fiscal. O tributo não pode ofender aquele mínimo necessário à subsitência dos contribuintes. Aqui se ergue com imponência o princípio da isonomia que tem naquele outro, um de seus reflexos, com já propomos.

Mas, os objetivos traçados pelo Estado - ente disposto a co-participar na construção de uma sociedade justa e produtiva, e assim neutralizar as desigualdades de fato existentes através do conteúdo material da isonomia - não se restringem só à fiscalidade, ou seja, ao ato de tributar e angariar receitas para cobrir os gastos públicos.

Volta-se o Estado, não pouco frequente, a se utilizar do instituto da extrafiscalidade. Passando, destarte, a agir através das normas tributárias, não no sentido de arrecadar dinheiro para satisfação dos gastos públicos mas, com a finalidade de através delas atingir outros fins também almejados pelo corpo social. Exemplos dessa atuação seriam: a majoração de alíquotas progressivas do ITR e IPTU, o primeiro para impedir o latifúndio improdutivo e o segundo para coibir a especulação imobiliária urbana. Noutro sentido age o Estado através de políticas tributárias visando a implementar incentivos em setores produtivos, no sentido de alavancar o crescimento de determinadas regiões.

Numa e noutra situação, não se permite que aja o poder público, descompassado com aqueles valores principiológicos já aduzidos, que conferem legitimidade à própria atuação estatal. Não se pode impor aos contribuintes gravames que importem na supressão de outros direitos constitucionalmente assegurados como a propriedade e a livre iniciativa, nem também, de outra monta, permitir a concessão de benefícios fiscais direcionados a determinados contribuintes sem se fazer a análise do princípio da isonomia, do fator de discriminação e a correlação lógica entre este fator e a desequiparação adotada como política fiscal.

Na extrafiscalidade, na maioria dos casos, a capacidade contributiva é posta de lado. Nas isenções e demais benefícios fiscais, os destinatários do favor legal podem ser pessoas que detenham grande capacidade econômica. Mas isso não representa quebra do princípio da igualdade formal. Trabalha-se, pois, com novo critério de comparação, utilizando-se de valores distintos, que não a capacidade contributiva. Nas isenções extrafiscais, a pessoa isenta demonstra aptidão maior para realizar os objetivos da política econômica do País, por isso é premiada.

Aliomar Baleeiro, da mesma forma, entendia "que a igualdade de todos perante o imposto se concilia com a aplicação deste aos fins extrafiscais correspondentes às atribuições do Governo, que exercita o poder de tributar [56]. "

Assim, as pessoas atingidas pelas isenções, são tratadas de uma forma especial porque são consideradas da mesma categoria essencial, isto é, se inserem na categoria vista pelo Estado como apta para concretização dos seus planos governamentais. A extrafiscalidade deve se submeter à regra de regularidade e igual tratamento para seres da mesma categoria.

Segundo Misabel, atualizando Baleeiro, "as atividades identicamentes situadas têm de merecer, sem exceções, o mesmo tratamento nos impostos, nos incentivos, nos prêmios, nas isenções. Qualquer critério de exclusão do tratamento igual para pessoas iguais jamais poderá ser arbitrário, mas dele dever-se-á poder aferir a razoabilidade [57]."

A extrafiscalidade se materializa, nas mais das vezes, através das isenções. O poder de isentar apresenta certa simetria com o poder de tributar. Todos os problemas revelados na área do tributo podem ser estudados na ótica oposta, qual seja, a isenção. Da mesma forma que existem limitações ao poder de tributar, há limites que não podem ser transpostos pelo poder de isentar, haja vista que ambos não passam do verso e reverso da mesma medalha. Ou seja, o poder de isentar é o próprio poder de tributar visto ao inverso [58].

3.1 Isenção tributária e legalidade

Estando a disciplina dos tributos sob reserva de lei, a disciplina das isenções, da mesma forma está igualmente vinculada ao princípio da legalidade. Assim, as isenções constituem matéria sob a regência do princípio da reserva de lei.

O princípio constitucional de legalidade das isenções não está consignado, no Brasil, conforme assevera Souto Maior Borges, como limitação constitucional ao poder de tributar, senão indiretamente, porque constitui mera implicação ou inferência do princípio da legalidade tributária. O princípio da legalidade da tributação (nulum tributum sine lege), continua o mestre recifense, não tem eficácia apenas sob o aspecto positivo do estabelecimento de tributos, mas também sob o prisma negativo da exoneração fiscal, porque, se inexiste tributo sem que a lei o institua, tampouco existe isenção tributária sem lei que a determine. "Na outorga constitucional de competência tributária está necessariamente contida a atribuição da faculdade de isentar. [59]"

3.2 Isenção tributária e isonomia

À exigência do imperativo contido no princípio da legalidade tributária pertinente às isenções, vincula-se outra, ainda mais e ainda antes desta, a saber, a compatibilização da atividade legiferante com o princípio constitucional da isonomia. Ambos se projetam para conferir a valia da norma exonerativa. Ao poder legislativo é vedado, destarte, isentar com violação da regra da igualdade. (v. cap.2).

A razoabilidade é que vai ditar a atuação do legislador quando das isenções. O nosso ordenamento constitucional tributário, alude Souto Maior Borges, excetuados os casos com os quais se pretende substituir a justiça tributária por uma justiça social (isenções extrafiscais), exige que os contribuintes, em idênticas circunstâncias características de capacidade contributiva, se submetam a idêntico regime tributário. Para o recifense, no moderno Estado de Direito, a igualdade e a generalidade são princípios básicos de tributação, com os quais colidem as isenções de pessoas e grupos sociais estabelecidos pura e simplesmente "intuitu personae", isto é, sem nenhuma consideração de justiça fiscal ou de ordem social ou econômica. [60]

As isenções não configuram, portanto, transgressões ao princípio da igualdade tributária. Excetuam, somente, as pessoas isentas, da regra da generalidade da tributação, com o propósito de que, assim fazendo, esteja amparando também outros aspectos do princípio isonômico.

Quanto às isenções extrafiscais, somente encontrarão legitimidade se se destinarem a tutelar valores constitucionalmente objetivados, como a igualdade material, o emprego, o desenvolvimento de determinada região, a proteção ambiental e outros tantos. Nelas, a exoneração da carga tributária não se produz para que esta corresponda à riqueza do contribuinte, mas, para que exerça uma função reguladora alheia à justiça tributária.

De se notar, que não é por outro motivo que sempre se admitiu, e o inciso I do artigo 151 da Constituição Federal consagrou a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País.

García Belsúnce, professor argentino, corrobora esse entendimento. Para ele, não se opõe à garantia constitucional da igualdade do imposto a criação de preferências que impliquem tratamento desigual se elas se conformam a motivações, situações ou circunstâncias razoáveis e lógicas, voltadas verdadeiramente ao cumprimento dos propósitos de interesse nacional, e que conduzam ao bem-estar geral, objetivo supremo da Constituição [61].

As isenções extrafiscais, segundo o profº José M. Domingues de Oliveira, "tanto quanto as isenções fiscais, que preservam o necessário mínimo, quando não iluminadas por critérios como esses, transformam-se em privilégios inconstitucionais e são espúrias; desvirtuadas, informam a ‘possível colisão dos regimes de incentivos com o princípio da igualdade concebido como princípio de capacidade contributiva’". [62]

Para finalizar esse tópico, concordamos com Souto Maior Borges, quando aduz que a isenção extrafiscal, deixando de exercer a função de instrumento da justiça tributária, converte-se em instrumento de uma política social e econômica, a qual, em última análise, será juridicamente inobjetável se exercida não em favor das classes sociais dirigentes, mas a serviço do bem comum. Verifica-se, pois, a concordância da isenção extrafiscal com outro critério de justiça [63].

3.2.1 Isenção correlata à igualdade e não a privilégio ou favor legal

Parcela da doutrina concebe, erroneamente, as isenções como privilégio ou favor legal. Ou seja, seria um mero ato de liberalidade do ente tributante. O erro de tal concepção consiste em não se levar em conta a força dos princípios constitucionais, que estabelecem, como já demonstramos, limitações de ordem formal e material para o exercício da competência tributária. Posto que a disciplina das isenções tributárias está indissoluvelmente vinculada com a exigência de proporcionalidade e equidade da tributação. Conforme Souto Maior " se todos são iguais perante o fisco, mostram-se inadmissíveis as isenções que importem meros favores, porque violatórias das regras constitucionais da tributação [64] ".

Há autores ainda, que se utilizam da expressão por falta de critério científico, nominando as isenções como favor, mas atribuindo a elas o sentido acertado, qual seja, a exigência do interesse público. Contudo, essas impropriedades devem ser corrigidas, pois, formuladas desse jeito, podem induzir os desavisados, a cogitarem que as isenções se inserem na esfera de conveniência e oportunidade, cuja apreciação é discricionariamente objeto de decisão política do ente tributante, sem o mínimo de vinculação jurídica-material, necessária a possibilitar o controle pelo Poder Judiciário.

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E não é assim. Os preceitos que isentam constituem, apenas, normas de direito excepcional, pois não tomam a regra da generalidade da tributação. Há de ficar patente que as isenções tributárias estão, atualmente, sob a regência do princípio constitucional da isonomia. Somente por um ‘contagio do direito’, nas palavras de Souto Maior, ainda se fala em doutrina, no privilégio da isenção. "Esse tratamento do problema representa apenas um resíduo de concepções imperantes sob regimes historicamente superados" [65].

3.3 Isenção e seus efeitos sobre a hipótese de incidência das normas de tributação

Neste ponto teceremos breves considerações, não pela esquiva de se enfrentar tema tão complexo, mas e apenas, por fugir aos propósitos delimitantes do presente trabalho. Ao ponto.

Autores de renome, e não poucos, encaram as isenções como uma forma de dispensa legal de pagamento de tributo devido. O que é um erro. O defeito de tal proceder, reside necessariamente na pouca intimidade com a categoria jurídica da incidência. Para esses juristas, dá-se a obrigação e nasce o crédito, mas o credor dispensa o pagamento devido. Assim se manifestaria o fenômeno isencional: num primeiro instante ocorreria o fato gerador fazendo incidir a regra jurídica da obrigação, noutro, o Estado através de uma regra jurídica autônoma de isenção, dispensaria o pagamento do respectivo tributo. O erro reside, pontualmente, no fato de que a isenção não é causa de extinção da obrigação pela dispensa do crédito, pois esta não chega nem a surgir, ela é fenômeno interligado à formação da hipótese de incidência da norma.

Sacha Calmon, aduz outro equívoco, qual seja, ter a isenção como exclusão de incidência, apontando as inaceitáveis falhas da doutrina clássica que é prestigiada até pelo Código Tributário Nacional de 1966. Citando Souto Maior, que com tese mais robusta, prefere ver a isenção de maneira diferente, como excludente da obrigação: " A norma que isenta é assim, uma norma limitadora ou modificadora: restringe o alcance das normas jurídicas de tributação; delimita o âmbito material ou pessoal a que deverá estender-se o tributo ou altera a estrutura do próprio pressuposto de incidência [66] ".

Concordamos com o professor mineiro, quando diz que a norma isencional não é norma específica, diversa portanto da norma de tributação, tese defendida por ninguém menos do que Souto Maior e Pontes de Miranda. Para estes, as normas isencionais teriam a função de suspender a incidência da norma jurídica de tributação, daí porque são denominadas "normas de não-incidência", não juridicizante. Sacha Calmon, com mais propriedade, entende que a hipótese de incidência da norma de tributação é composta de fatos tributáveis, já excluídos os imunes e os isentos. [67]

Alfredo Augusto Becker, embora tenha se posicionado conforme Pontes de Miranda, quanto a autonomia da norma não juridicizante de isenção, discorrendo, agora, sobre a integridade da hipótese de incidência da norma de tributação, firmou preciosa lição:

"Na verdade, não existe aquela anterior relação jurídica e respectiva obrigação tributária que seriam desfeitas pela incidência da regra jurídica de isenção. Para que pudesse existir aquela anterior relação jurídica tributária, seria indispensável que antes houvesse incidência da regra jurídica de tributação. Porém esta nunca chegou a incidir porque faltou ou excedeu um dos elementos da composição de sua hipótese de incidência, sem a qual ou com a qual ela não se realiza. Ora, aquele elemento faltante, ou excedente é justamente o elemento que entrando na composição da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, permitiu diferenciá-la da regra jurídica de tributação [68]..."(g.n).

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Sobre o autor
Flávio Marcondes Soares Rodrigues

Procurador Federal em Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Flávio Marcondes Soares. O princípio da isonomia e sua incidência nas isenções extrafiscais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 150, 3 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4574. Acesso em: 29 mar. 2024.

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