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O princípio da isonomia e sua incidência nas isenções extrafiscais

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4 O papel do Poder Judiciário no controle de constitucionalidade das isenções

Constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação, conforme Jorge Miranda, para quem seria a relação que se estabelece entre uma coisa, a Constituição, e outra coisa, um comportamento, que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido. Para o mestre português, não se cuida de uma relação lógica ou intelectiva, mas de uma relação de caráter normativo e valorativo [69].

Uma das mais importantes decorrências da atuação prática dos princípios constitucionais limitadores do exercício do poder tributário, é a possibilidade de controle jurisdicional pleno da compatibilidade das normas de direito tributário com o ordenamento fundamental do país. Decorrência da grande incursão do poder constitucional na seara da respectiva matéria.

Os princípios constitucionais tributários e as vedações ao poder de tributar traduzem reafirmações e garantias dos direitos fundamentais. São portanto cláusulas constitucionais pétreas, perenes e insuprimíveis (art. 60, par. 4º, CF).

Misabel Derzi faz uma importante análise da auto-executoriedade dos princípios constitucionais e convida a nossa Corte Constitucional a exercer sua função com mais vigor, precisamente em situações em que se coloquem em confronto mais de um princípio. O que seria feito com um sopesamento entre eles, sem alijamento de nenhum, mas à luz de uma acomodação razoável de ambos. Já que a Constituição de 88, segundo ela, concede aos direitos fundamentais do contribuinte eficácia imediata e atribui ao Poder Judiciário a função não apenas de coibir as inconstitucionalidades dos atos do Executivo e do Legislativo, como também as omissões que impeçam o exercício desses mesmos direitos. E arremata dizendo que, inexiste lei infraconstitucional regulando a atividade e a natureza dos atos do Supremo Tribunal Federal, o qual pode interpretar e reinterpretar suas funções e limites a partir apenas do texto Fundamental. Para a professora mineira, tudo haverá de depender da "vontade de Constituição", para que se implementem os desígnios nela contidos [70].

Como já dissemos, a Constituição veda a neutralidade e quer o oposto, a efetividade. Sobre o princípio da isonomia, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou no sentido de que ele "se reveste de auto-aplicabilidade, não é - enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica - suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio - cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do poder público - deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios" [71].

Tradicionalmente, o controle de constitucionalidade dirige-se a atos positivos do legislador ou de outro órgão estatal, não se ocupando de eventual silêncio ou omissão. Mas, com o desenvolvimento da dogmática constitucional, como já tratamos no cap.1, voltam-se as preocupações no intuito de se elaborar mecanismos efetivos no sentido de obstar a inércia ilegítima dos órgãos legislativos, através da concretização dos princípios contidos na Constituição. É a inconstitucionalidade da inércia. Não se trata, conforme Gilmar Mendes, de reduzir a omissão legislativa inconstitucional a um simples não-fazer, mas de identificar uma exigência constitucional de ação [72].

4.1 A polêmica questão da lei isencional violadora do princípio da isonomia: omissão parcial

A inconstitucionalidade por omissão pode ser caracterizada pela eventual incompletude de determinado estatuto jurídico, ensejando a declaração de inconstitucionalidade de todo o diploma ou, apenas, da chamada lacuna inconstitucional. Quando o próprio complexo normativo, e não a omissão, afronta a Constituição, é dada a inconstitucionalidade total.

Gilmar Mendes assevera que, "não raras vezes, porém, a impugnação se volta contra a própria lacuna. Cuida-se, fundamentalmente, da extensão de direito a situação não prevista expressamente, ou da chamada exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade (gleichheitswidriger Begunstigungsaushluss)" [73].

Gilmar Mendes, analisando a jurisprudência alemã, no tocante ao reconhecimento dos obrigados ao tributo, buscarem remédios não só contra ações mas também contra omissões do Estado que infrinjam as garantias individuais, especificamente quanto às limitações constitucionais ao poder de tributar. Registra a importância da reflexão pelos juristas brasileiros da identificação, no juízo da constitucionalidade, da exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, criticando

" o desprezo votado ao princípio na elaboração das leis, o deferimento de vantagens exclusivas a determinados segmentos da sociedade ou do funcionalismo, a concessão de tratamento tributário diferenciado a pessoas e entidades" que "parecem estar a exigir o estudo mais atento dessa omissão parcial... (podendo tais vícios) " ser reparados com base na técnica da divisibilidade das leis, reconhecendo-se o direito dos segmentos eventualmente discriminados". [74]

Tomemos um exemplo para aclarar nosso raciocínio. O art. 6º do Decreto-Lei nº 2.434, de 19.05.1988, tratou da isenção do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, títulos e valores mobiliários (IOF), que atingiu apenas "as operações de câmbio realizadas para pagamento de bens importados com guia emitida a partir de 01.07.1988".

O CTN, art. 63, II, e o Decreto-Lei nº 1.783/80 dizem que o fato jurídico do IOF se consuma no momento da liquidação do contrato de câmbio, ou seja, da entrega da moeda nacional ou estrangeira, ou documento que a represente, ou de sua colocação à disposição do interessado. O critério temporal escolhido pela norma isentante - guia de importação emitida a partir de 01.07.1988 - é estranho à hipótese do IOF e irrelevante para sua configuração.

Tem-se, então, as circunstâncias que apontamos no capítulo 2, com base em Celso Antônio, como indicativas de ofensa ao preceito isonômico. Posto que a norma adotou como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. Tomando o fator "tempo" - ‘que não descansa no objeto’ - como critério diferencial.

Pelo mandamento do art. 6º, conforme analisou Geraldo Ataliba, poderia ocorrer que dois contribuintes, importariam, no mesmo dia, do mesmo país, nas mesmas condições, a mesma mercadoria, pelo mesmo preço, pagando, entretanto, 0% ou 100% do IOF, ao adquirirem a moeda estrangeira para cobertura do contrato de importação [75]. Sendo claro o tratamento desigual a situação igual, estando a presença do arbítrio e irracionalidade, incompatíveis com o sistema valorado na Constituição.

Aqui se volta tudo o quanto dissemos sobre as isenções extrafiscais, que são válidas se respeitarem os princípios constitucionais. Mas, tendo como arbitrário o critério temporal - guia de importação emitida a partir de 01.07.1988 - fica a indagação: a norma de isenção como um todo deve ser invalidada ou se deve abolir o critério arbitrário e estende-la aos iguais.

O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que não pode atuar como legislador positivo, isolando parte da norma, a fim de viabilizá-la frente à Constituição. Só lhe cabe o papel de legislador negativo, para recusar validade e aplicação integral à norma que contraria requisitos constitucionais. (RE nº 102.553-1, RJ).

Felizmente já se acendeu uma lanterna neste ponto escuro. Embora em posição ainda minoritária, mas já demonstrando a tendência evolutiva, sustenta o Ministro Carlos Velloso que " poderia o Judiciário, afastada a norma inconstitucional, estender a todos quantos estão em situação idêntica a norma concessória da isenção (...) O meu entendimento a respeito do tema é minoritário na Corte. Não devo insistir em sustentá-lo, pelo menos por ora". (MI nº 58-DF).

Misabel Derzi, atualizando Baleeiro, faz profunda análise da doutrina e jurisprudência estrangeiras, especificamente a alemã, a qual adota nestes casos a declaração de inconstitu-cionalidade sem a pronúncia de nulidade. Para a professora, o entendimento majoritário do Supremo se choca com a Constituição brasileira de 88, porque essa questão envolve um princípio fundamental básico - o da igualdade - esteio do Estado Democrático de Direito, que trabalha com exigências jurídicas concretas [76]. Não é por outro motivo que o princípio da igualdade é auto-aplicável.

E lembrando Canotilho afirma: "Ao princípio da igualdade é caríssima a igualação de oportunidades. Estendendo a isenção a todos os que se encontrarem em igual situação, haverá simples obediência ao imperativo constitucional de "compensação de oportunidades’" [77]. Posto que não se pode conviver com as normas constitucionais vigentes a omissão do Poder Judiciário, comodamente acobertada de neutralidade. Já que o papel deste poder é justamente o oposto.

Conforme Sampaio Dória, evidenciada a arbitrariedade da discriminação, é diretriz de boa hermenêutica que o magistrado procure alçar ao plano do tratamento fiscal mais benévolo a pessoa ou atividade contra as quais indevidamente se discriminou. No que pertine ao exemplo supra utilizado, Souto Maior Borges alude: "o que então o Judiciário estará fazendo, ao restaurar a isonomia onde, ex vi do art. 6º, ela havia sido erradicada, é aplicar uma norma constitucional que a Constituição Federal determinou tivesse imediata aplicação. É assegurar o primado da Constituição Federal do qual ele - o Poder Judiciário - é o principal garante, o responsável mais imediato." [78]

É patente que a Constituição de 88 justifica a adoção de uma nova posição pelo Supremo Tribunal Federal, que não pode se manter como simples legislador negativo. Entendimento que encontra eco em doutrinadores de escol, como Misabel e Souto Maior.

Friza a autora mineira que, diante de ofensa intolerável à igualdade, em norma concessiva de benefícios arbitrários, a supressão pura e simples da isenção significa, sem dúvida, a outorga da pedra ao invés do pão pleiteado pelo contribuinte lesado. Aduz que a solução do Tribunal Constitucional alemão é bastante razoável, porque concilia a Constituição com a margem de discricionariedade do legislador, que tem, a partir da declaração da inconstitucionalidade, o dever de corrigir a norma. O que não é razoável, finaliza Misabel, "é ‘fingir’ que é constitucional a norma discriminatória para não se ter de enfrentar o problema, ou reconhecer a inconstitucionalidade mas declarar-se o Tribunal ‘impotente’, ou cassar a isenção ou outro benefício, interferindo em plano de governo. [79]"

Consequências diversas surgem da decisão judicial cuja lide tem como ‘causa remota’ a exclusão de um contribuinte de idêntica categoria em face de uma norma isencional violadora do preceito isonômico, vejamos seus reflexos: no plano financeiro se alegaria prejuízo de caixa com a redução das receitas tributárias; no plano político se alegaria violação ao princípio da separação dos poderes; de outra monta, a declaração de inconstitucionalidade da lacuna com a supressão total da norma afetaria a própria pretensão do autor-contribuinte; e o judiciário estaria, assim, interferindo negativamente nas políticas públicas e nos planos do governo; e se o judiciário observar a ofensa e não agir conforme sua elementar função, estará contrariando frontalmente a Constituição.

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Temos, pois, que na atual fase pós-positivista dos princípios constitucionais, como já discorremos, não se cabe mais aduzir a ‘ingerência do judiciário’ no caso supra referido. A outorga do benefício ao contribuinte injustamente excluído, é a solução mais coerente que se extrai do espírito da Constituição. Que não quer neutralidade, e sim efetividade.


Conclusão

Chegando ao fim desta dissertação, depois de percorrermos a complexa, mas facinante categoria principiológica, podemos, então, formular um raciocínio construtivo, que nos leve a um ‘constitucionalismo moralmente reflexivo’, dotado da força capaz de conferir ao Direito a substância transformadora dos sonhos em realidade concreta, conforme impõe a Constituição.

Destarte, temos na Constituição, não um mero conglomerado de enunciados políticos-diretivos mas, a fonte basilar, guardiã do conteúdo axiológico vivificado nos anseios dos cidadãos e norma primaz de onde parte todo pensamento jurídico, irradiando validez às demais manifestações estatais que se reproduzem debaixo do seu manto. Temos nos princípios constitucionais, as funções de especificarem aqueles valores supremos, conferindo ao ordenamento jurídico estrutura e coesão.

Os princípios dispostos na Constituição se mostram como sendo os alicerces que estruturam todo o sistema normativo, a pedra angular de onde parte todo e qualquer raciocínio normativo. Em termos de direito positivo, princípios são normas jurídicas portadoras de intensa carga axiológica, de tal forma que a compreensão de outras unidades do sistema fica na dependência da boa aplicação daqueles vetores.

Esse entendimento é fruto do desenvolvimento teórico-jurídico que se acelerou a partir da última metade do século passado, que supedaneado pelo moderno pensamento filosófico, constitucional e político, centra os princípios constitucionais na teoria da justiça, na busca de um direito que se volte verdadeiramente para os anseios dos cidadãos.

O princípio da isonomia revela-se como o grande elemento valoroso que estabelece o equilíbrio necessário para identificação da legitimidade ou perversão institucional, verificada na relação Estado-cidadão. A Lei deve regular a vida social, visando sempre a satisfação do bem comum, não atribuindo privilégios nem malferindo situações que não encontrem amparo legítimo.

O princípio da isonomia tributária impõe sejam observadas não só na aplicação das leis mas, também, na feitura delas, as normas constitucionais quem exprimem uma única finalidade, a saber, a justiça fiscal. Esta, embora programática, tem, conjugada com o princípio positivo isonômico, força de preceito, dotado de eficácia jurídica própria de dupla natureza: uma tutela negativa de recusa de validade aos atos do poder público que se desvirtuem da sua finalidade; e outra positiva, de exigir do Estado determinada conduta, qual seja, a de produzir norma jurídica que preencha a omissão legislativa violadora do princípio. Ambos os casos, restabelecendo o fim constitucionalmente visado.

Não ofende o princípio da isonomia a criação de preferências que importem tratamentos desiguais se elas se conformam a motivações legítimas, razoáveis e lógicas, que adequando-se ao princípio da isonomia, se fundamentem em propósitos que levem a um ganho social efetivo. Agora, privilegiar indivíduo ou categoria em detrimento de outros que se encontrem em situação semelhante é violação expressa ao postulado constitucional.

Destarte, cabe ao Poder Judiciário, guardião dos valores inseridos na Constituição, fazer valer estes, através da edição de normas concretas (sentenças), quando a atuação dos poderes públicos enveredarem por caminhos contrários aos ditames constitucionais. E defendemos que não há de se dizer que ocorrerá violação ao princípio da separação de poderes, mas e tão somente, compatibilização entre o ato de poder observado e o espírito constitucional que se prosta ao judiciário.

O princípio da isonomia, há de ser considerado não só sob o prisma da igualdade perante a lei, mas também da igualdade na lei, aplicando-se assim toda teoria da auto-aplicabilidade dessa garantia constitucional.

Por fim, temos no princípio da isonomia, a pedra de toque para buscarmos uma tributação que se coadune com os valores refletidos pela Constituição, ao passo que serve de fundamento para correção através do judiciário dos descaminhos tomados pelo poder público quando da feição de preceitos isentivos extrafiscais, que violem pessoas e situações, sem a devida correlação com a observância dos postulados constitucionais.

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Sobre o autor
Flávio Marcondes Soares Rodrigues

Procurador Federal em Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Flávio Marcondes Soares. O princípio da isonomia e sua incidência nas isenções extrafiscais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 150, 3 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4574. Acesso em: 26 nov. 2024.

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