O surgimento do princípio do devido processo legal (due process of law) se deu na Inglaterra no ano de 1215. Contudo, sua história começa no ano de 1066, na batalha de Hastings, com a derrota do rei Haroldo II pelo conquistador Guilherme. Coroado, e agora chamado Guilherme I, o soberano rompeu com a tradição da época e reafirmou, na Ilha da Inglaterra, as leis proclamadas por Eduardo, "O Confessor", um antigo monarca saxão, amado pelo povo.
Provavelmente, com essa atitude Guilherme pretendia iniciar um período de estabilidade administrativa, porém, mais do que isso, acabou por estabelecer o dever do governante de não respeitar apenas as suas leis, mas também a dos seus antecessores. Essa tradição se transferiu aos seus sucessores e, assim, a ordem jurídica passou a ter continuidade e inspirar segurança. As leis editadas pelos monarcas anteriores se tornavam, com sua morte, leis da terra (Legem Terrae).
Já em 1215, remontando a história, barões ingleses exigem do rei João I o respeito às leis da terra (Legem Terrae). Suscitam deste o compromisso de que “nenhum homem livre será molestado, ou aprisionado, ou despojado, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo aniquilado, nem nós iremos contra ele, nem permitiremos que alguém o faça, exceto pelo julgamento legal de seus pares ou pelo Direito da terra”. Aqui fica marcada a primeira manifestação do devido processo legal, embora não o seja com esta denominação. (GARCEZ RAMOS, 2014)
Reuder Rodrigues Madureira de Almeida (2013), em breve digressão histórica sobre a cláusula do devido processo, afirma que foi com o advento do Statute of Westminter of the Liberties of London que o Direito da Terra (legem terrae) deu lugar ao uso da expressão due process of law.
João Gualberto Garcez Ramos (2014, p. 103) leciona a respeito do primeiro uso da expressão "devido processo legal" e a sua evolução na Inglaterra:
O uso da expressão “devido processo legal” (due process of the law), ocorre pela primeira vez em 1354, quando o rei Eduardo III, seguindo a velha tradição, confirma as leis da terra e, entre elas, a Magna Carta das Liberdades. O texto de Eduardo III dispõe que “que nenhum homem de qualquer estado ou condição que ele seja, possa ser posto fora da terra ou da posse, ou molestado, ou aprisionado, ou deserdado, ou condenado à morte, sem ser antes levado a responder a um devido processo legal”. Com o tempo, o poder de fazer leis do país passou do soberano ao Parlamento. E o dever de respeitá-las – que já atingia o povo – passou cada vez mais a afetar o soberano. Assim, a evolução do devido processo legal, na Inglaterra, está ligada ao poder do povo de fazer leis e ao dever de todos de respeitá-las. O Parlamento inglês – representante dos comuns – é o único Poder na Inglaterra.
Nos Estados Unidos, o marco do due process of law é a 5ª emenda da Carta de Direitos, que entrou em vigor em dezembro de 1791. A partir dela, o devido processo evoluiu para o regime em que se encontra hoje, abarcando não apenas as garantias processuais ou procedimentais (procedural due process), mas também guardando observância do caráter material ou substantivo (substantive due process). Hoje, a Suprema Corte envida esforços no caráter substancial do due process of law, buscando solução de questões relacionadas com a igualdade substancial das pessoas (equal protection of the laws).
No direito brasileiro, a primeira constituição a fazer menção expressa do princípio foi a Constituição de 1988. Antes disso, residia na construção doutrinária e jurisprudencial a sua essência no ordenamento.
A Constituição do Império, de 1824, trazia previsão de uma forma aproximada do devido processo legal em seu caráter substancial (ou substantivo), no seu artigo 179, II, ao afirmar que "nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública", entretanto, não é considerada menção expressa.
Hoje, o princípio do devido processo legal tem sua base constitucional dentro do catálogo de direitos e garantias fundamentais disposto no Título II da Constituição Federal de 1988. Situa-se no inciso LIV, do artigo 5º, cujo texto dispõe:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes:
(...) LIV - Ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal.
Tourinho Filho (2012, p.84) leciona que, no Brasil, anteriormente à Constituição hoje vigente, mesmo sem a expressa previsão legal, já se observava o princípio do due process of law. Contudo, com o advento da Constituição democrática, o princípio foi erigido à categoria de dogma constitucional.
Atraindo as influências do direito constitucional norte-americano, assevera:
A V Emenda da Constituiçãonorte-americanajáproclamaque "no person shall be... Deprived of life, liberty or property without due process of law...” E esse" due process of law "nada mais representava do que" the law of the land ". Ninguém pode ser privado da sua liberdade senão de acordo com o que estabelecem as nossas leis. (TOURINHO FILHO, 2012, p. 84)
O devido processo legal é garantia afinada com a promoção dos direitos individuais enraizados nas noções de dignidade humana, tais como a liberdade e a propriedade. Além da previsão na norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro, é um direito fundamental do homem consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na forma a seguir:
Art. 8º - Todo o homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Goza, ainda, de previsão na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que constitui uma das bases do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos. Neste diploma internacional o devido processo legal é assegurado entre as garantias judiciais, em seu artigo 8º, nos seguintes termos:
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
A garantia do devido processo legal é uma das mais importantes e extensas garantias relacionadas ao indivíduo frente ao exercício do poder jurisdicional e, da mesma forma, uma das mais reproduzidas nos sistemas constitucionais ao redor do mundo (NETO, 2010). Nas palavras de João Gualberto Garcez Ramos (2014, p.106) um processo legítimo, justo e equilibrado atende ao princípio do devido processo legal porque" ele é a verdadeira e própria essência do processo, em todas as suas manifestações. "
O significado do devido processo legal é amplo e não se restringe a um único conceito. É uma cláusula que se reparte, criando outras novas garantias e direitos específicos relacionados às partes e ao próprio processo no âmbito da relação jurisdicional. É, em verdade, um super-princípio essencial ao Estado Democrático de Direito e que serve de instrumento para a superação de injustiças.
O devido processo legal afiança diversos outros postulados com conceitos e aproveitamentos autônomos na ordem jurídica pátria. São repercussões suas, por exemplo, os princípios do contraditório, da ampla defesa, da motivação das decisões judiciais, a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, o princípio da publicidade dos atos processuais e o direito ao silêncio. Estes são corolários do devido processo que ajudam a garantir não somente a tutela dos interesses individuais, como também daqueles coletivos e difusos.
O due process of law, na compreensão de Vicente Greco Filho (2012, p. 35), é fonte de garantia dupla. Em primeiro lugar, porque o processo é indispensável à aplicação de qualquer pena, observada a regra do nulla poena sine judicio. Em segundo lugar, porque identifica-se com o devido processo legal uma relação processual que assegure a igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa.
Todavia, não deve ser entendido que o devido processo legal admita efeitos somente no âmbito do direito processual. Seu conceito permite bipartição em dois sentidos: um de caráter substancial ou material (substantive due process) e um de caráter processual ou procedimental (procedural due process). (SILVA NETO, p. 727)
Seu caráter substancial permite aferir que sua aplicabilidade alcança os direitos materiais e a sua proteção por meio de processo judicial ou administrativo. O princípio do devido processo legal garante a efetivação dos direitos fundamentais previstos no direito positivo, afinal, seriam vagos e insuficientes os demais direitos se ausente a garantia de um processo regular para preservá-los no caso concreto.
Ainda sobre o devido processo de caráter"material", corrobora referir que o STF tem reconhecido o devido processo legal substancial ou substantivo que, no realce de André Carvalho Ramos (2014, p. 581), consiste em limite ao poder de legislar, obrigando que as leis sejam elaboradas conforme os princípios da justiça. Nesta concepção, as leis devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality),"guardando um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir". (RAMOS, 2014, p. 581)
Além de identificar-se com o artigo 5º, LIV, da Constituição, o devido processo legal substantivo encontra fulcro no artigo 3º, I, da Normal Fundamental, cujo texto preleciona que"constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária".
O ideal de justiça previsto no texto da Carta Magna, portanto, também é fundamento apto a orientar a atividade do Estado na efetivação do postulado do devido processo legal. O devido processo legal substantivo é princípio por meio do qual se exerce controle do alvedrio legislativo e a discricionariedade dos atos do Poder Público, a fim de que possuam conteúdo justo, razoável e proporcional.
O entendimento atual acerca do devido processo legal substantivo permite o controle de atos normativos disciplinadores de liberdades individuais ensejando a declaração de inconstitucionalidade de normas cujos preceitos não sejam considerados razoáveis, proporcionais e justos. André Borges Netto (2000) entende da seguinte forma:
A Constituição indica a existência de competência a ser exercida pelo Judiciário, no sentido de poder afastar a aplicabilidade das Leis com conteúdo arbitrário e desarrazoado, como forma de limitar a conduta do legislador. Lei que não atinge um fim legítimo é inválida, como tal devendo ser declarada, por força da garantia constitucional em exame. Na atualidade, o texto da Lei ou ato governamental será preservado pela Suprema Corte, até que nenhum posicionamento razoavelmente concebível possa estabelecer uma relação entre a regulamentação contestada e um fim legítimo do governo. Fato é que o entendimento atual do devido processo legal substantivo permite o controle de atos normativos disciplinadores de liberdades individuais até mesmo"não econômicas". Este princípio, em sua concepção substantiva, é fonte inesgotável de criatividade hermenêutica, transformando-se numa mistura entre os princípios da"legalidadeerazoabilidade"para o controle dos atos editados pelo Executivo e Legislativo".
Por sua vez, sob a ótica processual ou procedimental, o devido processo legal tem o escopo de atribuir aos envolvidos na relação jurídica processual garantias que assegurem um processo justo. O devido processo legal simboliza a obediência às normas processuais estipuladas em lei, garantindo aos jurisdicionados direito à dialética processual, marcada pela bilateralidade da relação entre os litigantes, o exercício amplo de defesa e um julgamento justo e igualitário com atos e decisões devidamente motivadas.
O procedural due process, isto é, o devido processo legal de caráter (ou sentido) procedimental (ou processual), consiste em que o processo cível, penal ou administrativo deve ser informado pelos princípios do juiz natural, ampla defesa, contraditório e publicidade. (RAMOS, 2014, p. 581)
Na seara penal, a respeito do significado do devido processo legal na ordem jurídica brasileira, o Supremo Tribunal Federal elencou, em julgamento pela Segunda Turma, nos autos do HC 94.016 SP, relatado pelo Ministro Celso de Mello e julgado em 16/09/2008, os elementos essenciais da cláusula do due process of law e sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional, destacando doze prerrogativas deste postulado:
(a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis "ex post facto"; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de "participação ativa" nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes.
Ademais, destaca-se do mesmo julgado a defesa da essencialidade da garantia do devido processo legal na ordem jurídica pátria:
O direito do réu à observância, pelo Estado, da garantia pertinente ao "due process of law", além de traduzir expressão concreta do direito de defesa, também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu estrangeiro, sem domicílio em território brasileiro, aqui processado por suposta prática de delitos a ele atribuídos.
Extrai-se, portanto, do enunciado jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que o devido processo legal culmina em um amplo rol de outras garantias autônomas e de caráter fundamental para a construção do Estado de Direito. Tais corolários, elencados no magistral julgamento, possuem repercussões próprias e de alargado conteúdo, cujo estudo merece ser aprofundado. Por essas razões, em oportunidade outra, alcançarão a devida imersão doutrinária, por traduzirem expressão notável do espírito garantista presente na ordem constitucional inaugurada em 1988.