- EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE FAMÍLIA
Para iniciar este trabalho, cumpre-nos uma breve digressão histórica sobre os tipos de família que existem no direito civil brasileiro, não obstante a intervenção estatal no núcleo familiar, apontando as grandes mudanças que ocorreram ao longo do tempo.
É cediço que em território brasileiro, ainda nos dias de hoje, apesar de todas as mudanças positivas e a inclusão feminina no mercado de trabalho, mulheres ainda sofrem com o machismo que, junto à influência religiosa em nossa sociedade levou a ideia de que mãe é “aquela que passou por um processo gestacional”.
Todavia, as mudanças no comportamento das pessoas no que se refere ao fim do casamento, inclusão social, igualdade, dentre outros direitos; fez com que a doutrina também se posicionasse sobre o tema, de modo que de forma majoritária passou-se a subdividir os conceitos de famílias e atribuir-lhe características específicas, como adiante será abordado.
A Constituição de 1988 também foi responsável pela atribuição de novos valores no plano jurídico, deixando de lado a visão da família patriarcal adotada desde o tempo colonial.
De acordo com Lôbo (2009, p. 1)[1]:
A família patriarcal, que a legislação civil brasileira tomou como modelo desde a colônia, o império e durante boa parte do século XX, entrou em crise, culminando com a sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988.
Atualmente, diversas são as formas de família existentes em nossa sociedade, passando o Estado a interferir no núcleo familiar de forma subjetiva garantindo as famílias o direito de proteção contra a sociedade e contra o próprio Estado.
Gonçalves (2010, p. 33-34) ao opinar sobre o tema leciona que:
“Todas as mudanças sociais havidas na segunda metade do século passado e o advento da Constituição Federal de 1988, com as inovações mencionadas, levaram à aprovação do Código Civil de 2002, com a convocação dos pais a uma ‘paternidade responsável’ e a sua assunção de uma realidade familiar concreta. [...] uma vez declarada à convivência familiar e comunitária como direito fundamental, prioriza-se a família socioafetiva, a não discriminação de filhos, a corresponsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar, e se reconhece o núcleo monoparental com entidade familiar[2]”.
O conceito restrito de família, relacionado ao poder familiar onde o conjunto de direitos e deveres quanto à pessoa dos filhos e bens do menor emancipado, necessariamente exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe, ao longo do tempo abriu margem a um amplo leque de estrutura familiar.
Inovou a Constituição de 1988 ao extinguir o conceito de núcleo familiar apenas àquele constituído pelo casamento. Na visão da professora Diniz (2007, p. 11):
“[...] A Magna Carta de 1988 e a Lei n. 9.278/96, art.1º, e o novo código civil, arts. 1.511 e 1.723 vieram a reconhecer como família a decorrente do matrimonio (art. 226, §§1º e 2º, da CF/88) e como entidade familiar não só a oriunda de união estável como também a comunidade monoparental (CF/88, art. 226, §§3º e 4º) formada por qualquer dos pais e seus descendentes independentemente de existência de vínculo conjugal que a tenha originado (JB, 166 e 324)[3]”.
Por sua vez, Lôbo (2010, p. 66) identifica as famílias como Monoparental, famílias advindas da união homossexual, e famílias Recompostas; de modo que, de acordo com o doutrinador a família homossexual é aquela que: “preencherem os requisitos de afetividade, estabilidade e ostentabilidade e tiverem finalidade de constituição de família” (LÔBO, 2010, p. 68), não importando a ausência de lei que regulamente tais uniões devido a auto-aplicação da norma constitucional prevista no artigo 226 da CF”.
O posicionamento da doutrina dominante foi de grande influência no poder judiciário, levando ao reconhecimento da união estável entre casais homossexuais quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 no dia 05 de maio de 2011 (atualmente já sendo reconhecido o casamento diretamente em cartório por força da Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, aprovada durante a 169ª Sessão Plenária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)), trazendo um procedimento mais célere, deixando de lado a necessidade de ajuizamento de ações judiciais.
E é nesse contexto histórico, entre avanços e retrocessos da legislação nacional no que se refere ao direito de família, exatamente nestas famílias criadas, dividias e subdivididas em espécies, onde os cônjuges não tinham a liberdade de decidir sobre suas vidas conjugais, que nasce o foco principal de nosso trabalho, qual seja, a possibilidade da mãe não gestante receber o benefício previdenciário e gozar de licença maternidade em se tratando de criança não adotiva, mas sim, daquela que já nasce num âmbito familiar homossexual, devidamente registrada e concebida durante o casamento através de fertilização heterogênea.
2. DA PROTEÇÃO ESTATAL AOS NOVOS NÚCLEOS FAMILIARES
O Estado, na tentativa de proteger os novos núcleos familiares que surgem, não obstante a figura do nascituro; baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana; assegurou em nossa Constituição Federal de 1988 o direito à igualdade para todos, bem como o direito da criança à convivência familiar, não fazendo qualquer distinção entre filho biológico, adotivo e principalmente àqueles que já nascem em âmbito familiar diferenciado.
Ainda, no que pese a falta de regulamentação e proteção àquelas crianças que já nascem em âmbito familiar diferenciado, cremos ser possível a utilização do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para que de forma análoga assegure-se direitos e deveres ao nascituro.
O mesmo se diz em relação à proteção à maternidade, relacionada no artigo 6º da Constituição Federal/88.
Verifica-se, portanto, que se trata de um direito social, ou seja, à qualidade de ser mãe, não havendo distinção quanto àquela que passou ou não por um processo gestacional ou seu enquadramento legal.
Imperioso ainda ressaltar que, quando se busca a concessão do benefício salário maternidade e o gozo do período estabilitário, o que se pretende, além dos direitos maternos, é a proteção ao nascituro concedendo-lhe cuidados primários (seja afetivo, psicológico ou físico).
Sehli (1997, p. 455) leciona que pelos objetivos a licença-maternidade deve:
“[...] atender às necessidades biológicas de recuperação da gestante e atender às necessidades da criança, como cuidados físicos, atenção e aconchego da mãe. Explica-se, pela Psicologia, que esta fase da adaptação ao meio externo é quando o ser humano mais necessita de afeto e afago de seus semelhantes, para desenvolver-se em harmonia.” (grifos nossos)
Infelizmente, atualmente inexiste norma específica concessiva de licença-maternidade à mãe que não seja biológica ou adotante, contudo, as crianças que já nascem de duas mãe ou dois pais, não sendo adotadas, não podem ficar na orfandade.
Evocando-se uma frase do jurista francês Jean Cruet,: “A lei não modifica os fatos, mas os fatos é que modificam a lei” e é por isso que defendemos a idéia de que, analogamente, sejam utilizados para concessão do benefício previdenciário, obviamente desde que preenchidos os requisitos autorizadores para sua concessão o Art. 392-A da CLT, encerrando tratamentos distintos daquele dispensado à mãe biológica à qualquer tipo de mãe.
O mesmo se diz em relação ao art. 227, caput, da Constituição da República, vez que este foi a fonte inspiradora de todos os projetos de lei tendentes a reconhecer à mãe adotante o direito à licença-maternidade.
De igual modo, entendemos pela utilização do art. 7º, inciso XVIII, da CF/88, pois este, ainda que assegure o direito de licença somente “à gestante”, jamais veda que a lei ordinária estenda-o para o caso de crianças nascidas em âmbito familiar homo - afetivo.
Tomando por base o posicionamento esposado, entendeu o Juiz julgador do Núcleo Permanente de soluções Consensuais de Conflitos, do Tribunal Regional da 6ª Região (Pernambuco); em caso único até o momento, que à mãe não gestante de criança nascida em núcleo familiar homo – afetivo, faz jus à concessão do benefício da licença maternidade.
No caso em comento, entendeu o magistrado que a mãe não gestante se enquadraria, de forma análoga à condição de gestante tendo em vista a impossibilidade da mesma de, sozinha, solicitar o benefício previdenciário em seu favor (sendo tal ato obrigação da empresa para qual trabalha à empregada); não obstante pelo fato da criança já ter nascido em âmbito familiar homo – afetivo, com registro de nascimento constante de duas mães e quatro avós maternos.
In verbis:
“A situação da reclamante não se enquadraria como empregada adotante para fins de solicitação de licença maternidade, mas como empregada gestante. Extrai-se dos autos que a ora reclamante vivia em união estável e, em agosto/2014 juntamente com sua companheira, passaram por um processo de inseminação artificial heterogênea tendo como gestante a Sra. Xxxx. O processo foi acompanhado por ambas, tendo a reclamante passado por tratamento para lactar, diante da dificuldade imposta à gestante por ter passado por cirurgia mamária. Em março/2015 casaram-se e em abril/2015, nasceu a infante, sendo registrada em nome das mães, constando na certidão de nascimento os 4 avós maternos. A previsão normativa é de que os filhos concebidos durante o casamento presumem-se do casal, inclusive aqueles decorrentes de fertilização heterogênea, que tem expressa previsão legal. No caso concreto a infante é filha legítima de ambas, com perfeita classificação na Certidão de Nascimento (constam as mães), estando patente a impossibilidade daquela que gestou, em amamentar a criança, cabendo à reclamante tal ato maternal. Consta ainda nos autos que não foi concedida licença maternidade à gestante.”
Percebe-se, portanto, que o Magistrado se utilizou de normas constitucionais e cíveis para fundamentar sua decisão, baseando-se na hermenêutica jurídica e no estatuto da criança e do adolescente priorizando o bem estar da criança, para decidir o caso.
Em miúdos, não encontrou dificuldades para enquadrar o direito em caso atípico, se utilizando da analogia para proteger mães e nascituro; enquadrando as normas supracitadas ao caso em concreto; mostrando ser totalmente possível a concessão de licença maternidade à mãe não gestante ou adotiva; mas sim àquela que construiu uma família de uma relação homo – afetiva e baseada na felicidade.
3. CONCLUSÃO
Novos modelos de constituição de famílias surgiram com o avançar da sociedade e dão origem a situações não previstas pelo legislador, deixando em descoberto os direitos civis, trabalhistas e previdenciários de diversos cidadãos.
Essas modificações e pluralidades não podem deixar na orfandade jurídica os novos núcleos que surgiram. Famílias monoparentais, pluriparentais, recompostas ou mosaicos, todas as formações familiares devem ser respeitadas e são dignas de tutela, pois são norteadas pelo ideal da felicidade. (...)
No caso em análise, defende-se a possibilidade de concessão de licença maternidade a casais que constituíram uma entidade familiar baseada na afetividade, na comunhão de vida e na assistência mútua, emocional e prática, sendo dessa união, formalmente reconhecida, que nascerá uma criança, registrada em nome do casal (ainda que nasça em uma família com estrutura diferenciada, onde se encontra presente a figura de duas mães / pais); pois é com esta nova realidade, que os filhos irão crescer devendo o novo modelo familiar, ser dignos de proteção do Estado.
Referências:
[1] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 6: direito de família. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
[3] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: 5º Volume: direito de família 22. ed. rev. e atual. de acordo com a reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2007.