Lei Maria da Penha e Feminicídio:um basta à violência doméstica e de gênero

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O presente texto trata da arraigada violência em nosso país, dando ênfase à agressão contra a mulher. Serão analisados, pois, os aspectos mais relevantes da legislação pertinente, com destaque para o feminicídio.

A violência é uma realidade no Brasil. Neste universo, há um triste destaque para a violência contra a mulher. Nem a sociedade nem o direito foram ou são indiferentes a tal fato. No âmbito jurídico há, como grande expressão dessa preocupação protetiva, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Entretanto, uma lei – por melhor ou mais bem intencionada que seja - por si só, não muda as ações dos seres humanos. Tanto que, após nove anos da promulgação da Lei Maria da Penha, eis que o Código Penal teve acrescido a si a Lei 13.104/2015. Esta lei trata especificamente da penalização do crime de feminicídio. Ora, social e moralmente, a violência, seja de qual tipo for, é condenável. Vemos também que uma lei firme, às vezes, precisa ser endurecida para ser eficaz. E é neste cenário que analisaremos a relação entre as duas leis mencionadas acima.

Em termos legais, a comprovação de uma violência de gênero exige prova inequívoca. De outro modo, in dubio pro reo. A motivação do delito constitui o eixo da violência de gênero. Uma vez comprovada essa circunstância, não se pode mais invocar o motivo torpe: uma mesma circunstância não pode ensejar duas valorações jurídicas (está proibido o bis in idem). Outro indicativo de que o assunto é sério refere-se ao tempo de reclusão: a pena será de 12 a 30 anos. O regime inicial de cumprimento da pena do feminicídio é o fechado. E mais, o feminicida não poderá ser beneficiado com anistia, graça ou indulto. Tampouco se admite fiança nos crimes hediondos. Mas, por que chegamos a ponto de ter uma lei com tamanha dureza? Temos algumas hipóteses.

Começamos destacando que não faremos uma arqueologia da violência contra as mulheres neste artigo. Outros autores já o fizeram. Interessa-nos, sobremaneira, a análise da sociedade brasileira em anos recentes e de como a violência multifacetada contra a mulher tem recebido firme repúdio cultural e legal. Ora, convém ter claro que o feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher, também conhecido como crime de gênero.

Ressaltamos que mulher se traduz num dado objetivo da natureza, sendo sua constatação empírica e sensorial. É uma nova qualificadora do crime de homicídio. Suas motivações mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre as mulheres, em uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero e machista como o é a brasileira. Esclarecemos que a qualificadora não se refere a uma questão de sexo (aspecto meramente biológico), mas a uma questão de gênero (engloba a sociologia no sentido de estudar os padrões sociais do papel que o masculino e o feminino desempenham).

Ser homem ou mulher pode até ter certa disparidade nas relações sociais, no entanto, o problema está em obrigar o outro a ser servil. Muitas vezes, justamente quando a mulher resolve romper esse liame de servidão é que a violência aparece. Identificamos nesta desproporção uma das principais causas deste tipo de violência. Nem as ‘Mulheres de Atenas’ de Chico Buarque eram tão submissas ou discriminadas ou menosprezadas.

Dois dados nos alicerçarão em nossas análises. Em primeiro lugar, com uma taxa de 4,4 assassinatos em 100 mil mulheres, o Brasil está entre os países com maior índice de homicídios femininos: ocupa a sétima posição em um ranking de 84 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2012 (Cebela/Flacso). Em segundo lugar, “Mais de 43 mil mulheres foram assassinadas no País na última década, uma realidade vergonhosa que torna a tipificação penal do feminicídio uma demanda explícita e urgente, cuja real aplicação tem no Judiciário elemento indispensável”[1], comenta Flávio Crocce Caetano, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. São números de guerra ou conflitos armados. Contudo, não é uma guerra marcada pelo ódio ao inimigo. O elemento íntimo é que se destaca. Não é a violência das ruas, mas a do pretenso ‘lar’.

Estamos diante de uma forma de violência contra alguém que é ou foi próxima e querida. Enfim, é a brutalidade na intimidade. Talvez o elemento comum às guerras seja o da tortura. Psicológica ou física, não importa, a mulher que sofre violência normalmente não a sofre uma única vez. Nada disto é um drama pixotesco com infelizes e variados capítulos. E, como num drama, o capítulo posterior tem mais ‘emoção’ que o anterior. Podemos dizer que o assassinato do último episódio teve, no primeiro, uma mera frase ríspida. Não nos interessa o desenvolver do drama, partimos da premissa de que nada justifica um feminicídio. Se o lar virou um ‘inferno’, separem-se. Ao que parece alguns preferem separar a alma do corpo e não os corpos.

Em termos sociais, constatamos que tais taxas brutais de feminicídio costumam ser acompanhadas de certa tolerância à violência contra as mulheres. Em alguns casos são a consequência inevitável dessa negligência. Tolerância + negligência = violência doméstica. E mais, o requinte de crueldade tem seu ápice quando há a culpabilização da vítima como modo de justificar essa forma extrema e banalizadora de violência. Trata-se de criar um silogismo fictício em que a mulher é a causa e a consequência ou as premissas e a conclusão da violência contra ela mesma.

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É impossível pensar num feminicídio, que é algo abominável, reprovável, repugnante à dignidade da mulher, que tenha sido praticado por motivo de relevante valor moral ou social ou logo após injusta provocação da vítima. A real consequência desse silogismo macabro é uma só: impunidade. Mas, como vemos e sabemos, tal paradigma está ruindo. Ruindo, não ruído. Justamente entre a realidade e o que deveria ser é que se posicionam as Leis 11.340/2006 e 13.104/2015. Tanto que o enfrentamento do problema requer ações integradas, posto que o feminicídio seja um crime de gênero extremamente complexo. “O problema do feminicídio tem muitas faces. Não é apenas uma questão de ordem penal, mas também social e cultural. É necessário criar formas de enfrentar a cultura machista e a visão dos papéis destinados à mulher na sociedade.”[2].

Elencamos como um dos grandes avanços da Lei Maria da Penha o reconhecimento de que a violência doméstica está aí; outrora, tal assunto não era sequer falado profundamente antes da entrada em vigor da lei. Como apontamos na introdução, não basta haver a lei. É necessária sua eficácia. Mas não só na seara criminal. A mudança deve ser ampla e alcançar o âmago cultural e estrutural da sociedade. Pode até parecer piegas, mas deve-se encarar o fato incontornável de que mulher é gente e não coisa. O que tem matado mulheres é, principalmente, a misoginia, é a coisificação dos seus corpos, a desumanização a que são submetidas regularmente. Por tudo isto, uma lei, por melhor que seja, não é capaz de mudar a mentalidade e a cultura de um povo.


Notas

[1] Disponível em < http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/artigo-da-campanha-compromisso-e-atitude-sobre-feminicidio >. Acesso em 16 de setembro de 2015.

[2] Disponível em < http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/artigo-da-campanha-compromisso-e-atitude-sobre-feminicidio >. Acesso em 16 de setembro de 2015.

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Sobre o autor
Adriano Eurípedes Medeiros Martins

graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (1998). Especialista em Administração Estratégica (2009) pela Uniminas. Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Conclui o doutorado em setembro de 2011, na área de Filosofia Política pela UFMG. Iniciei em 2015 e conclui em 2016 o meu pós-doutorado na UFU. Atualmente sou professor (filosofia, ética, política e educação) do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM) - Campus Uberaba. Tenho experiência na área de Filosofia, Sociologia e Direito estudando e pesquisando principalmente os seguintes autores e temas: Vico, Descartes, Hobbes, Locke, Rousseau, Maquiavel, Política, Ética, Direito e Educação.

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