Artigo Destaque dos editores

A delimitação de um conteúdo para o Direito.

Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana

Exibindo página 5 de 6
25/12/2003 às 00:00
Leia nesta página:

5. A APLICAÇÃO DA PERSPECTIVA DE UMA TEORIA GERAL DO DIREITO PARA PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA VISÃO CONCRETA. CONCLUSÕES

Note-se que o ser humano desenvolveu ao longo de sua História um alto grau de domínio no campo das ciências ditas naturais. Ou seja, enorme foi o desenvolvimento da física, química, matemática, construiram-se submarinos, aviões, foguetes, tornou-se possível clonar seres vivos, foram descobertos remédios poderosos para combater doenças antes ditas como incuráveis.

Inobstante todo este progresso técnico-científico, o homem não evolui tanto no aspecto humanístico, em especial na esfera da ética e no plano espiritual. Mesmo que se considere que não tem fundamento tal opinião, deve-se asseverar que o homem ainda tem em seu ser muito do egoísmo primitivo, não sendo muitas vezes guiado por um padrão mental de harmonia social mais elevado. [43]

Neste ponto, é que reside a dificuldade de aplicação de uma Teoria Geral do Direito renovada com base em conteúdos de valor que buscam preservar a dignidade da pessoa humana. Isto porque esta preservação da dignidade humana, exige sacrifícios de todos, participação do grupo que tem de possuir um espírito de solidariedade e estar imbuído de um interesse comum de implantação da igualdade material entre todos.

Tal perspectiva vai contra toda uma postura humana retratada ao longo da História, que é marcada muito mais por valores desassociativos do que de associação numa perspectiva sociológica.

O desafio acaba por residir em realizar esta exata superação, conseguindo tornar o homem tão evoluído espiritual e eticamente, quanto conseguiu progredir no plano técnico-científico em sentido estrito.

É necessária a formalização de um "novo pacto social" continuamente renovado, que aceite as diferenças dentro de uma sociedade pluralista e proteja com efetividade a dignidade da pessoa humana. Esta é a lição de Celso Lafer: " Um Estado que se sobrepõe a uma sociedade pluralista pode sobreviver somente sob a condição de que o pacto social seja continuamente renovado e legitimado. É por isto que, por exemplo, a renovação dos contratos coletivos de trabalho é um momento dramático na vida de um Estado industrial moderno. É também por essa razão que o acordo dos partidos, em regimes pluripartidários, tanto no parlamentarismo quanto no presidencialismo, é igualmente algo decisivo para a sobrevivência do Estado e para a sua governabilidade." [44]

O Direito e sua Teoria Geral têm então este papel de auxiliar na transformação e no estabelecimento deste "novo pacto social", ao incluir nas leis, normas, regras, preceitos e princípios normativos a idéia de implantação e garantia permanente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

Ressalte-se que o comprometimento para com a proteção da dignidade da pessoa humana tem de partir de toda a coletividade, não se aguardando a mera iniciativa estatal. A criação e o desenvolvimento de uma Teoria Geral do Direito substancial é algo que deve engrandecer a própria essência humana, em especial no seu plano espiritual. A efetivação desta garantia da própria realização humana é feita com base na atuação comum de todo o grupo.

Neste aspecto, o Legislador deve estar comprometido com a elaboração de leis que protejam e garantam em máximo grau a efetividade da dignidade da pessoa humana com base nos anseios coletivos e nas possibilidades concretas de cada grupo, difundindo através das normas jurídicas o valor e a necessidade da preservação desta dignidade humana.

Já, os Governantes devem guiar suas políticas públicas para o campo social, preservando os direitos fundamentais em seu grau máximo e delineando a proteção aos mais débeis como o projeto político fundamental a ser realizado. Este tipo de política pública de cunho social é emancipadora, diminuindo problemas ligados à saúde pública, à falta de emprego, à violência (segurança pública), porque conduz à redução da miséria, imprimindo uma visão nova da atuação governamental.

Os Juízes, por seu turno, no seu labor diário de solução dos conflitos concretos que se lhe apresentados para solução, devem considerar aspectos de hermenêutica jurídica que garantam plenamente a dignidade da pessoa humana, superando interpretações reducionistas e acomodadas de um direito oficial muitas vezes desatualizado no tempo e protetor na realidade somente de minorias privilegiadas.

Luigi Ferrajoli bem ressalta que o Estado e os Juizes têm responsabilidade com a garantia dos direitos fundamentais. Assevera neste sentido o autor: " En esta sujeción del juez a la Constitución, y, en consecuencia, en su papel de garante de los derechos fundamentales constitucionalmente establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimación de la jursidicción y de la independencia del poder judicial de los demás poderes, legislativo y ejecutivo, aunque sean – o pricisamente porque son – poderes de mayória. Precisamente porque los derechos fundamentales sobre los que se asienta la democracia sustancial están garantizados a todos y a cada uno de manera incondicionada, incluso contra la mayoría (...)" [45]

Já, os Juristas, em sentido amplo: grandes jurisconsultos, operadores do direito de diversos níveis, estudiosos e estudantes do direito, tem o compromisso de desenvolver uma teoria jurídica (Teoria Geral do Direito) subsistente que construa institutos, conceitos, definições, sistemas que preservem e garantam com base em uma efetividade real os direitos fundamentais, protegendo plenamente a dignidade da pessoa humana.

A criação de uma Teoria Geral do Direito comprometida com a preservação da dignidade da pessoa humana de forma efetiva, demanda também a formação de um novo tipo de jurista e operador do direito, muito mais voltado para o delineamento de um direito comprometido com o homem, baseado em valores éticos, espirituais e humanísticos (humanitários) elevados que se preocupem com a solução das crises postas, objetivando a criação de contexto humano de estabilidade e justiça social. Claras as palavras de Fábio Konder Comparto neste sentido: " Na direta linha dessa revolução prospectiva, o papel que incumbe aos juristas não é, apenas, a melhor compreensão do direito vigente, no preciso sentido etimológico do adjetivo, isto é, do direito que existe como componente vivo da realidade social, mas também a produção das instituições jurídicas do futuro, aptas a harmonizar o comportamento humano em meio à radical mudança de valores, a que acima me referi. A maior parte dos institutos jurídicos que herdamos, desde o patrimônio original romano, forma, com efeito, criados no âmbito de uma civilização agrária e não democrática, anteriores portanto às revoluções industrial e política do século XVIII. (...) Ora, essa suprema razão justificativa do comportamento humano é e continua sendo a dignidade transcendental do homem, acima das variações históricas de valores. Os avanços técnico-científicos no tratamento da vida e na manipulação da genética humana, a que fiz referência no início, não nos devem fazer olvidar que a definição da pessoa humana não é meramente biológica, mas sim cultural. Como bem assinalou Kant, nos Fundamentos de uma Metafísica dos Costumes, o homem é o único ser que vive como um fim em si mesmo e não como meio para uso de uma outra vontade. Aí está o primeiro princípio de toda ética e de todo direito." [46]

Conclui o autor referido falando sobre a ética e a necessidade de valorização do ser humano como compromissos dos juristas, operadores do direito e governantes. Veja-se: " Na verdade, a grande crise de valores deste final de século só encontrará solução quando os governantes passarem a guiar a sua competência técnica pelo valor da justiça social, que representa a objetivação do amor comunitário. Não é ocioso, de resto, lembrar que a solidariedade – o vlaor que inspirou a última geração dos direitos humanos, no decorrer deste século – foi corretamente denominada fraternidade pelos revolucionários de 1789. (...) Mas, obviamente, essa sintonia com os grandes valores sociais supõe, de parte dos que nos governam uma dupla sensibilidade ética. De um lado, a compreensão dos limites essenciais da condição humana, na firme rejeição daquela hubris, ou ausência de medida, que a sabedoria grega sempre considerou como a matriz da tragédia. De outro lado, um sentimento de compaixão universal, a simpatia na exata acepção etimológica da palavra, ou seja, a capacidade de sofrer com os fracos, os pobres e os humilhados do mundo inteiro. (...) É somente assim que os juristas contemporâneos, resgatando afinal todas as fraquezas e prevaricações passadas, poderão ser tidos e louvados como servidores da humanidade." [47]

Além deste comprometimento dos juristas com uma nova Teoria Geral do Direito, o povo em geral deve ser educado para desempenhar efetivamente sua cidadania, cobrando do Estado, mas também realizando e colaborando de forma cabal para que os direitos fundamentais sejam respeitados e realizados em toda sua contextura para a garantia da dignidade de todos os seres humanos.

Esta tese de participação popular no direito deve ir além do mero direito de votar e ser votado. A cidadania tem de ser construída para preservação da dignidade da pessoa humana, participando o povo da interpretação das normas jurídicas e de sua aplicação/proteção dentro de uma sociedade aberta e democrática.

Peter Häberle, constitucionalista alemão, é defensor desta participação da comunidade na interpretação da Constituição, já que o povo, segundo o autor, é o verdadeiro intérprete da vontade da nação, sendo tal ampliação dos intérpretes da Constituição a base da democracia. Veja-se a lição de Häberle: " A estrita correspondência entre vinculação (à Constituição) e legitimação para a interpretação perde, todavia, o seu poder de expressão quando se consideram os novos conhecimentos da teoria da interpretação: interpretação é um processo aberto. Não é, pois, um processo de passiva submissão, nem se confunde com a recepção de uma ordem. A interpretação conhece possibilidades e alternativas diversas. A vinculação se converte em liberdade na medida que se reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue contrariar a ideologia da subsunção. A ampliação do círculo dos intérpretes aqui sustentada é a apenas a conseqüência da necessidade, por todos defendida, de integração da realidade no processo de interpretação. É que os intérpretes no sentido amplo compõem essa realidade pluralista. Se se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, há de se indagar sobre os participantes do seu desenvolvimento funcional, sobre as forças ativas da law in public action (personalização, pluralização da interpretação constitucional!)." [48]

Note-se que o comprometimento do povo para preservação do direito, e o seu respeito às normas postas deve ser imbuído nesta novel perspectiva como um valor próprio da coletividade, utilizando-se, muito além da aplicação de supostas sanções formais por descumprimento de normas, a tese da persuação para que toda coletividade acredite na necessidade evidente e substancial da proteção da pessoa humana em sua integralidade. Celso Lafer bem destaca: " (...) A sanção, no entanto, não é o único argumento para a observância da norma, pois o destinatário a cumprirá com mais efetividade se acreditar que ela é boa, justa e oportuna. É isto que explica, em matéria de Direito, a relevância de não limitar a análise da linguagem à semântica de validade ou invalidade das prescrições em função das normas formais de reconhecimento do quid sit juris, mas nela incluir, através da pragmática, a dimensão da persuasão, que abrange a justificação da observância da norma." [49]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Realmente, a efetividade do direito só existirá quando os seus valores estiverem incrustados na base ético-axiológica do ser humano e na consciência cabal da importância e necessidade de sua proteção.

Destaca-se ainda que além da interpretação e vivência do direito, o povo tem o compromisso de defender o direito e a dignidade humana, seja através de movimentos populares, da atuação da sociedade civil organizada, fazendo pressão e desenvolvendo materialmente a cidadania, podendo até mesmo - dentro de um contexto renovado - insurgir-se contra a ordem vigente através do uso do direito à resistência e à revolução contra opressões. [50]

O Direito e sua Teoria Geral devem, assim, aproximar-se do povo, sendo conhecido do povo e servindo para proteção efetiva deste povo. O povo deve ser o intérprete maior das normas, devendo os juízes e governantes externarem os anseios populares com base numa filtragem ética do conteúdo dos anseios externados com base nesta Teoria Geral do Direito renovada e delineada em um novo compromisso estabelecido entre todos os atores sociais (pacto social), rumo a uma plena proteção da dignidade da pessoa humana.


6. CONCLUSÃO

A construção desta Teoria Geral do Direito mais humana e menos formal, mais ligada à realidade de um conteúdo pragmático/concreto que é a proteção e realização integral da dignidade humana é o futuro do Direito, devendo ser criado com base em laços fortes de ética social, com a redefinição do pacto social almejado dentro de cada Estado Democrático de Direito e também dentro da nova órbita internacional que ora se vislumbra com muita força, tornando os problemas dos seres humanos, problemas universais, que merecem solução.

Reprise-se que efetivar um conteúdo para o direito baseado na preservação da dignidade da pessoa humana, fugindo às teses formalistas e materialistas de cunho reducionistas, não é algo utópico no sentido pejorativo, precisando apenas os doutrinadores do direito recriarem seus pensamentos/teorias, refletindo sobre o direito, sua finalidade, seus objetivos e sua razão de ser, destacando o que é, o que deve ser e para que serve o direito.

Os problemas ontológicos, axiológicos e epistemológicos, em especial na esfera hermenêutica e de aplicação do direito, devem permitir o resgate de uma perspectiva de solução ética, dando conteúdo ao direito. Isto porque é reconhecido, principalmente em relação à hermenêutica, em função de que hoje, mais do que nunca, compreender deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se com os seres e com o ser e, ainda, em decorrência da categoria crítica da dialética da participação. As questões éticas são demandados por parte do intérprete e aplicador do direito, que deve assumir uma postura axiológica determinada para a construção, proteção e preservação da dignidade da pessoa humana, como conteúdo precípuo. [51]

A formação do profissional do direito para atender e compreender esta Teoria Geral do Direito renovada deve ser multidisciplinar, buscando observar o ser humano em toda sua complexidade e crises dentro de uma perspectiva integral de proteção à dignidade humana nos âmbitos psicológicos, sociológicos, afetivos, etc...Bem clara é a visão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho neste sentido: " Este (a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais), com efeito, se estende desde as considerações sobre a natureza humana até as minudências da técnica jurídica. Envolve, por isso, a necessidade de um tratamento interdisciplinar. Justifica até que o tema seja objeto nos cursos jurídicos de uma disciplina à parte. E nesse sentido até um argumento ‘político’ se pode invocar: trata-se do valor cívico-educativo da matéria que está no cerne da tradição da democracia de derivação liberal." [52]

A luta por este direito renovado, que se apoie na dignidade da pessoa humana, é uma luta do homem, da sociedade, do Estado, de todos os seres humanos. E só com a luta no plano das idéias e fático – sem almejar violência – mas com o objetivo de quebrar preconceitos e arcaísmos é que se conseguirá criar uma sociedade mais fraterna e um direito "justo" para a plena proteção da dignidade da pessoa humana. A perspectiva de Rudolf Von Ihering é esta: " Sem luta não há direito, como sem trabalho não há propriedade.(...) À máxima: ganharás o pão com o suor do teu rosto, corresponde com tanta mais verdade estoutra: só na luta encontrarás o teu direito. (...) Desde o momento em que o direito renuncie a apoiar-se na luta, abandona-se a si próprio, porque bem se lhe podem aplicar estas palavras do poeta: ‘ Tal é a conclusão aceite atualmente: Só deve merecer a liberdade e a vida... Quem para as conservar luta constantemente’." [53]

Nesta esteia, espera-se ao final desta monografia ter externado a necessidade de uma reflexão crítica quanto ao direito, rumo à preservação da dignidade da pessoa humana, extraindo-se que a preservação desta dignidade do ser humano é o valor maior que merece garantia, sendo o próprio conteúdo, a própria razão de ser e de existir do direito neste novo milênio, enquanto ordem ética de cunho conservativo e transformador no sentido de diminuição contínua das desigualdades materiais e formais existentes.

Que venham então os novos doutrinadores para construir uma Teoria Geral do Direito substancial, utilizando-se de critérios científicos multidisciplinares, entendendo e respeitando o homem em toda sua complexidade, sem reducionismos, asseverando a necessidade concreta de preservação e realização da finalidade última do direito que é preservar a dignidade de todos de uma forma integral e materialmente plena.

Que os conceitos jurídicos tradicionais sejam remodelados; que se estabeleça um novo pacto social; que o direito seja garante e motivador de mais inclusões sociais, rumo ao fim da miséria; que a Teoria Geral do Direito torne as normas jurídicas populares e de conhecimento de todos que devem lutar pela sua garantia e preservação; que o Estado, a Comunidade e todos os Homens, Mulheres e Crianças (SERES HUMANOS) consigam ver no direito uma fonte de proteção, garantia e paz para suas expectativas e de realização de suas necessidades e da sua própria felicidade de uma forma efetiva e real com sustentáculo numa ética social da tolerância, da aceitação, da harmonia e da solidariedade. Oxalá, o espírito e a vontade humana permitam a criação deste Direito renovado e desta Teoria Geral do Direito de cunho substancial tão almejada...

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcos André Couto Santos

procurador federal junto ao INSS em Recife (PE), mestre em Direito Público pela UFPE, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marcos André Couto. A delimitação de um conteúdo para o Direito.: Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 172, 25 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4605. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos