Artigo Destaque dos editores

A delimitação de um conteúdo para o Direito.

Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana

Exibindo página 4 de 6
25/12/2003 às 00:00
Leia nesta página:

4. POR UMA NOVA PERSPECTIVA PARA O DIREITO E SUA TEORIA GERAL: A PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. [31]

O conteúdo e a delimitação de uma Teoria Geral do Direito dotada de cientificidade tem de se apoiar, como acima referido, na garantia e realização dos direitos humanos/fundamentais em toda a sua contextura, a fim de atingir as finalidades de segurança (conservação) e justiça (evolução) no seio social.

Entretanto, restou evidenciada a dificuldade de saber o teor do conteúdo dos direitos fundamentais, estando claro que ainda não se conseguiu realmente delimitar o âmbito material destes preceitos, não se podendo aferir com precisão conseqüentemente o conteúdo do direito enquanto fenômeno social subjacente.

Tal dificuldade se deve à enorme crise de valores que o homem vem passando, perdendo sua perspectiva de ser ético para dar força a uma postura humana automatizada e ausente de um mais elevado conteúdo "moral-ético-espiritual-humano" nas suas relações sociais. Tal fato é bem ressaltando por Tércio Sampaio Ferraz ao analisar a obra de Hannah Arendt: " O último estágio de uma sociedade de operários, que é uma sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse, por assim dizer, se deixar levar, abandonar a sua individualidade, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqüilizante. Para o mundo jurídico o advento da sociedade do animal laborans significam, assim, a contingência de todo e qualquer direito, que não apenas é posto por decisão, mas vale em virtude de decisões, não importa quais, isto é, na concepção do animal laborans, criou-se a possibilidade de manipulação das estruturas contraditórias, sem que a contradição afetasse a função normativa (...) A filosofia do animal laborans deste modo assegura ao direito, enquanto objeto de consumo, uma enorme disponibilidade de conteúdos. Tudo é possível de ser normado e para uma enorme disponibilidade de endereçados, pois o direito não depende mais do status, do saber, do sentir da cada um, das diferenças de cada um, da personalidade de cada um." [32]

O homem, na atualidade, tem sua "condição humana" ética pouco desenvolvida dentro de um mundo comum engessado e desvalorizado. Para evitar a tirania e um novo holocausto nesta crise ética, deve-se delinear direitos humanos a merecer proteção como patrimônio simbólico do ser humano na sua busca de superação do seu modo individualista e egoísta de ser. Esta perspectiva é vista por Jete Fiorati na análise da obra de Hannah Arendt: " Apesar do esgarçamento do mundo comum, é necessário que se tenha algum padrão mínimo a orientar a conduta individual, mesmo que seja na sociedade dos ‘homens que laboram’, uma vez que, se assim não for, partiremos para o isolamento. Modernamente com a perda desse mundo comum, somente as leis terminam por descrever uma conduta mínima, conduta essa que muitas vezes se antepõe aos desejos mais íntimos de cada um de nós. Ocorre que, como as leis não representam mais os desvalorizados valores da comunidade, mas sim prescrições derivadas do poder que podem mudar a qualquer hora, podemos opinar sobre sua validade a qualquer momento. Portanto, ainda temos que procurar algum critério para fundar as condutas em sociedade para evitar que elas se transformem em condutas próprias da vida na selva. Entre eles, critérios de respeito ao homem, mesmo sendo ele o animal laborans que deve ter seu direto à vida, à liberdade, à saúde, ao labor do qual provê a sua subsistência e alimento expressos em regras escritas ou costumeiras, regras essas que se inserem na categoria dos Direitos do Homem, que podem preencher a função de definir uma condição humana mínima ao homem como forma de um patrimônio simbólico fundante de um mundo esgarçado." [33]

Mesmo atestando-se estas dificuldades e crises de valor com lastro no pensamento de Hannah Arendt, defendo que os direitos fundamentais devem ter como conteúdo básico a preservação da dignidade da pessoa humana em sua integralidade e em todos os seus níveis, construindo-se uma Teoria Geral do Direito de base protecionista à dignidade do ser humano, como sua finalidade onto-axiológica específica.

Necessário se faz realmente a criação, interpretação, aplicação, elaboração dos conceitos e desenvolvimento dos institutos jurídicos, tudo isto formando uma Teoria Geral do Direito de cunho substancial real e finalidade específica delineada na referida proteção integral da pessoa humana.

Esta renovada Teoria Geral do Direito daria uma perspectiva não apenas reprodutiva de valores já postos, mas também construtiva, produtora, ampliadora das conquistas sociais e normativas para preservação da dignidade da pessoa humana.

Neste ponto, o comprometido com a plena realização fático-empírica e também normativo-legal do Direito seria realizado tanto pelo Estado, quanto pela Sociedade, restabelecendo-se um pacto renovado de compromissos de preservação da dignidade da pessoa humana, diminuindo as desigualdades, reduzindo conflitos, superando a miséria em todos os seus níveis e conduzindo a uma pacificação, harmonia e também revolução social sem igual, com base em normas de conteúdo material evidente de proteção e desenvolvimento humano integral. Neste sentido, concordamos com a lição de José Afonso da Silva que assevera a necessidade preemente da garantia da dignidade da pessoa humana: " Não basta, porém, a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, reclama condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica. É de lembrar que constitui um desrespeito à dignidade da pessoa humana um sistema de profundas desigualdades, uma ordem econômica em que inumeráveis homens e mulheres são torturados pela fome, inúmeras crianças vivem na inanição, a ponto de milhares delas morrerem em tenra idade." [34]

A preservação da dignidade da pessoa humana refoge ao tipo de sociedade, de ideologia, de organização político-social em que vive. É um valor humano dotado de universalidade que deve ser desenvolvido, protegido e aplicado por uma Teoria Geral do Direito comprometida com a proteção integral do ser humano. A lição de Paulo Bonavides conclui acertadamente neste sentido que: " (...) Dotados de altíssimo teor de humanismo e universaalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua firmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. (...) A nova universalidade (dos direitos humanos) procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo que antes de ser o homem deste ou daquele País, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano, objeto daquela universalidade." [35]

Deve-se asseverar, assim, que a preservação da dignidade humana, como conteúdo do Direito delineado em todos os seus termos por uma Teoria Geral renovada, denota a necessidade de participação de todos, demonstrando que além dos direitos há evidentemente deveres de todos para com todos que merecem ser respeitados, garantidos, cobrados e preservados. [36]

A sociedade, o Estado, todos vão determinar o conteúdo do direito que visará a preservar a dignidade da pessoa humana em toda a sua complexidade, tornando esta proteção real, harmônica e pacífica, permeando toda a convivência social com base em ideários de inclusão social e não de exclusão, permitindo a realização normativa das leis e normas em toda sua pujança em benefício de toda a humanidade.

Deve-se observar, entretanto, que a proteção da dignidade da pessoa humana não pode atingir um conteúdo e sofrer uma interpretação que venha a restringir o próprio progresso humano e a sua evolução necessária. A proteção da dignidade da pessoa humana deve ser feita sempre em contato com a realidade, visualizando os anseios do grupo e os interesses a serem protegidos, permitindo o delineamento científico do seu conteúdo. Este papel de vital importância deve ser desempenhado pela Teoria Geral do Direito de forma substancial, sofrendo a influência da contextura social e humana em que o fenômeno jurídico está inserido. [37]

Bem destaca João Maurício Adeodato que no direito há sempre conflitos que devem ser resolvidos e a forma de resolução pode variar, tornando insubsistente argumentos que procurem delimitar verdades de cunho imodificável: " É certo que o direito se vai constituindo à medida em que as opções conflitivas vão sendo decididas. Por isso mesmo, não é possível fixar critérios gerais que tornem determinadas alternativas preferíveis a outras porque o direito é assim ou assado. Daí não se poder afirmar que o direito legítimo pressupõe esta ou aquela forma de governo, este ou aquele regime econômico, embora se possam descrever os efeitos de determinada estratégia política ou econômica para obtenção de legitimação. Isso porque os argumentos jurídicos não se apresentam unicamente como silogismos mas incluem argumentos estratégicos, erísticos." [38]

Mesmo assim não se pode negar a busca de um conteúdo axiológico para o direito que sirva para manter dar substantividade ao fenômeno jurídico, garantindo e protegendo o ser humano em sua integralidade na manutenção da harmonia social. João Maurício Adeodato também não dispensa tal entendimento: " (...) A importância existencial do conteúdo axiológico do direito, fundamental para o jurista e para o cidadão, não encontra, contudo, guarida na descrição ontológica. As duas dimensões não devem ser confundidas: de um lado a descritiva – cujo vetor aponta para o passado, para o efetivo a posteriori -, de outro, a dimensão construtiva (prescritiva) do direito, realidade in fieri sobre a qual posições apriorísticas e ideológicas irão influenciar, na medida em que o conteúdo do direito, também inevitável, é feito pelo homem e pela comunidade a partir dele constituída." [39]

Destacando que o conteúdo do Direito e a base da sua Teoria Geral deve ser a proteção e garantia da dignidade da pessoa humana, vem o questionamento central: o que se deve entender por dignidade da pessoa humana??

Este é que vai ser, como acima referido, o papel da Teoria Geral do Direito, delineando e estabelecendo os contornos da dignidade da pessoa humana. Entendo como fundamental na preservação da dignidade da pessoa humana a realização plena da igualdade em sentido material, ou seja, a igualdade de oportunidades para que todos os seres humanos possam desenvolver suas potencialidades de forma harmônica e coerente, a partir das aptidões pessoais e afinidades.

A importância de preservação da dignidade da pessoa humana, com a garantia conseqüentemente dos valores associativos, conduzirá a uma grande estabilidade e harmonia social, acabando por realizar de forma efetiva as finalidades precípuas do direito, garantindo a felicidade humana em sua integralidade. Bem assevera José Afonso da Silva: " Em conclusão, a dignidade da pessoa humana constitui um valor que atraia a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e, como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o homem, é ela que se revela como o seu valor supremo, o valor que a dimensiona e humaniza." [40]

Ressalte-se, todavia, que o ser humano, em sua complexidade, em seus desejos sempre renovados e cada vez mais variados/multifacetados, vai adquirindo ao longo do tempo novas necessidades, novos desejos, procurando, como sói acontecer com um ser racional, aumentar seu nível de satisfatividade, ampliando a exigência de mais bens, serviços e outras exigências. Bem destaca Walter Claudius: " Do caráter inexaurível dos direitos fundamentais, cujo número pode sempre crescer, surge a preocupação com uma ‘inflação’ de direitos fundamentais. A rotulagem das mais diversas situações como direitos fundamentais e o fato de que a enunciação normativa de direitos fundamentais dificilmente consegue fazer-se acompanhar de garantias eficientes, acarretam uma ineficácia e, por conseguinte, uma desprestígio desses direitos, tendente à sua banalização. É preciso ter sempre em conta a ‘reserva do possível’, vale dizer, a capacidade real de implementação de condições de sucesso dos direitos fundamentais, sob pena de se beirar a utopia (...) Contudo, a realização efetiva dos direitos fundamentais será uma inesgotável tarefa a cumprir, uma constante processo da democracia, um estímulo ao envide de esforços; por mais que se avance no asseguramento dos direitos fundamentais, haverá um novo estádio a galgar, rumo à excelência. Por isso, a parcimônia e o realismo com que se devem traduzir normativamente os direitos fundamentais não deve elidir uma dimensão prospectiva nem esmorerer a contínua luta de reconhecimento de novos direitos." [41]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Nestes casos, cabe também à Teoria Geral do Direito e à ética construir um pensamento coletivo mais humanista, de bases espirituais (não moralistas) que permitam ver a humanidade como um conjunto que deve viver em paz e coerência, trabalhando todos juntos para o progresso constante, dentro de uma visão ética elevada, afastando o consumismo e arrogância tão presente no ser humano.

Como se atesta, pela análise acima desenvolvida, o conteúdo do direito estaria na preservação dos direitos fundamentais/humanos na perspectiva da garantia plena da dignidade da pessoa humana. A Teoria Geral do Direito, nestes termos, teria um caráter de cientificidade ao procurar em associação com outras ciências, como a sociologia, economia, botânica, entre outras, desenvolver normas jurídicas e um ordenamento jurídico baseados em políticas públicas que visassem sem dúvida garantir a plena realização do ser humano.

Tal perspectiva de uma Teoria Geral do Direito integral e material, para proteção dos direitos humanos/fundamentais através da garantia da dignidade da pessoa humana, não é uma utopia no sentido pejorativo. Mas sim, uma utopia enquanto forma nova e futura de pensar e realizar o direito numa órbita de maior humanidade (humanismo); sendo, pois, uma utopia concreta que se implantará na realidade. A observação de Daniela Samaniego é clara e correta neste sentido: " O pensamento utópico funciona como uma espécie de libertação das amarras que prendem o Direito aos aspectos legais. Através da utopia, busca-se não o que diz a letra da lei, mas sobretudo, o que é justo. E lei e justiça não são palavras sinônimas, muito menos Direito e Lei. Essa distinção é proveniente, justamente, do pensamento utópico, que desvinculou o Direito da lei, proclamando que antes de tudo o Direito é justiça! Através do Direito, conforme o pensamento utópico, busca-se uma sociedade mais justa, fraterna, igualitária, onde os direitos das chamadas minorias (como as mulheres, os negros e os homossexuais, por exemplo) serão respeitados, um direito escrito pelo povo e em respeito, essencialmente, à dignidade da pessoa humana! (...) Podemos dizer, dessa forma, que a função da utopia é a de provocar um movimento social, em busca de um novo Direito, um ‘Direito Justo’, livre de amarras pré estabelecidas; um direito que busca a igualdade entre os povos, a fraternidade e, acima de tudo a paz social; um direito que renasce a cada dia, de acordo com as novas aspirações humanas, porque o homem é um ser dinâmico, de forma que, se o direito é criado exclusivamente em prol do ser humano, não poder ser estático, pois isso acarretaria uma contradição." [42]

Aqui, a Teoria Geral do Direito ganharia em substantitividade, e o Direito se construiria não com base em teses formais ou materiais de cunho parcial, mas sim com o objetivo e finalidade precípua de proteção do homem em sua contextura global, que deve ser seu objetivo essencial.

Missão complexa de uma Teoria Geral do Direito renovada, sendo uma utopia concreta e realizável, que exige o comprometimento de toda a contextura social, mas que pode conduzir à elaboração de um conteúdo ao Direito a ser implantado em benefício de todos os seres humanos e não de apenas uma minoria.

Parte-se, agora, para a tentativa da aplicação desta renovada Teoria Geral do Direito proposta, fazendo certas digressões sobre sua aplicação prática e chegando ao final às conclusões da presente monografia.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcos André Couto Santos

procurador federal junto ao INSS em Recife (PE), mestre em Direito Público pela UFPE, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marcos André Couto. A delimitação de um conteúdo para o Direito.: Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 172, 25 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4605. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos