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A ideologia das ações que tutelam direitos transindividuais

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31/12/2003 às 00:00
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O trabalho busca delinear a ideologia das ações que tutelam os direitos transindividuais, através do estudo dos direitos difusos, dos direitos coletivos e dos direitos individuais homogêneos, da coisa julgada nas ações que tutelam estes interesses e do papel do Judiciário na tutela e garantia dos mesmos.

Resumo

Este texto resultou de um trabalho conjunto entre alunos do curso de Mestrado em Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, para obtenção de créditos na disciplina "Acesso à Justiça e Tutela de Direitos". O trabalho teve como objetivo o delineamento da ideologia das ações que tutelam os direitos transindividuais, tarefa feita através do estudo dos direitos difusos, dos direitos coletivos e dos direitos individuais homogêneos, da coisa julgada nas ações que tutelam estes interesses e do papel do judiciário na tutela e garantia dos mesmos. Constatou-se que a utilização dos processos coletivos tem possibilitado o exercício da cidadania e que a tutela dos interesses transindividuais deu uma nova roupagem ao Direito Processual Civil, retirando-o da chancela de tutela de interesses de cunho egoístico e individualista.


Índice: 1. Introdução, 2. Direitos Metaindividuais – Interesses Coletivos versus Interesses Difusos, 3. Características Básicas dos Interesses Difusos, 3.1. A indeterminação dos Sujeitos, A indivisibilidade do Objeto, 3.3. A Intensa Litigiosidade Interna, Transição ou mutação no tempo e no espaço, 4. Quadro Demonstrativo e Exemplificativo das Diferenças e Semelhanças Existentes entre Direitos Difusos, Direitos Coletivos e Direitos Individuais Homogêneos, 5. A Ideologia dos Direitos Difusos, 6. Papel dos juízes na proteção dos interesses transindividuais, 6.1. Dificuldade dos juízes decidirem sobre direitos transindividuais – uma resistência de ordem política, 6.2. Da democracia-representativa à democracia-participativa, 6.3. Do alcance da interferência do judiciário na discricionariedade legislativa e administrativa, 6.4. O relevante papel do judiciário para a tutela dos direitos transindividuais, 7. A disciplina da coisa julgada nas ações em defesa de interesses transindividuais, Antecedentes históricos, 7.1. A coisa julgada nas ações que tutelam direitos difusos, 7.2. A coisa julgada nas ações que tutelam interesses coletivos, 7.3. A coisa julgada nas ações que tutelam interesses individuais homogêneos, 8. Considerações Finais, 9. Referências Bibliográficas.


1. Introdução

Notoriamente, os interesses difusos vão se revelando cada vez mais numerosos e fazem aflorar temas que têm o homem como centro de referência. Percebe-se, ainda que, eles evocam, em qualquer modo, aquela antiga noção de direito natural [1], como deflui dos interesses à qualidade de vida, à proteção ecológica, ao respeito às etnias e minorias, porque tudo isso significa em última análise o respeito ao homem enquanto homem, na antiga lição de Kant, em que o homem nunca dever ser um meio, mas um fim em si mesmo.

Parece-nos que está ocorrendo uma verdadeira revalorização de todo esse mundo ético subjacente ao Direito (haja vista a riquíssima tese de Dworkin). Surge uma massa ética que reclama por tutela de seus interesses. E justamente por ser desprovida de sanção específica, essa massa ética é a mais merecedora de tutela. Há uma tomada de consciência geral, no sentido de que esse universo subjacente ao direito vastíssimo; os interesses difusos representam anseios profundos da comunidade: são aspirações legítimas, ainda que episódicas ou contingenciais. E não há porque esperar que estes interesses ascendam a liberdades públicas ou se definam como direitos subjetivos: até lá, o momento propício para a tutela poderá já ter passado e certamente o dano será de difícil reparação.

Infelizmente restam ainda grandes resistências aos interesses difusos. Há, pelos setores mais conservadores do Direito e pela ordem política, um certo temor em que haja uma pulverização da autoridade estatal. Alegam que o acesso direto desses interesses aos centros de decisão (incluindo o Poder Judiciário) seria conflitante com o sistema político representativo, no qual existem órgãos colegiados competentes para funcionar como canais de comunicação entre os interesses da coletividade e o Poder, e há também o receio de que essa coloração política, ínsita na tutela dos interesses difusos, desfiguraria ou comprometeria a estrutura técnica da trilogia ação-jurisdicção-processo, transformando o Poder Judiciário em um superpoder, podendo interferir nas escolhas políticas feitas por aqueles que foram legitimamente escolhidos para fazê-las; com isso por-se-ia em risco a tripartição e a harmonia dos poderes constituídos.

No entanto, devemos lembrar que o Estado foi criado para atender as necessidades e interesses do homem e não o contrário. Devemos ter a consciência de que o Estado é apenas um meio para se atingir os anseios do homem, sendo que este é um fim em si mesmo, e subverter a ordem das coisas seria chegar ao absurdo de colocar o homem como escravo dos poderes estatais.

Assim, considerando os interesses difusos como interesses pertinentes aos mais altos valores humanos (como a qualidade de vida, o bem comum, etc.), não se pode deixar de tutelá-los pelo fato de que possa haver uma certa transformação na estrutura política.

Ora, a sociedade é dinâmica, e qualquer modificação deve ser feita para atender as necessidades, e o Direito deve estar evoluindo atendendo estes anseios, dando repostas aos conflitos apresentados, em uma perspectiva de segurança jurídica, possibilitando através de seu arsenal de leis e de sua dogmática, a resolução da melhor forma possível dos conflitos sociais apresentados, fomentando uma democracia participativa (2).


2. Direitos Metaindividuais – Interesses Coletivos versus Interesses Difusos.

Os interesses metaindividuais, assim chamados para diferenciar dos interesses individuais de cunho "egoístico", ultrapassam a órbita da atuação individual, para se projetarem na ordem coletiva com finalidade notadamente altruística.

Grande erro comete parte da doutrina, exatamente por influência do denominador comum – "interesses metaindividuais" –, em classificar como sinônimos os termos coletivo e difuso [3].

Podemos conceituar brevemente os direitos coletivos como sendo aqueles que concernem a uma realidade coletiva (v.g., profissão, a categoria, a família), ou seja, aqueles que se relacionam com o exercício coletivo de interesses coletivos, e não simplesmente, aqueles interesses que apenas são coletivos na forma, permanecendo individuais quanto à finalidade perseguida, o que configuraria um exercício coletivo de interesses individuais.

A ambigüidade entre direitos difusos e direitos coletivos começa já na acepção vernacular dos termos, já que ambos sugerem a idéia do que é extenso, aplicável a muitas pessoas ou coisas. Tal sinonímia é reforçada pelo uso dessas expressões, indistintamente, como a significar uma e mesma coisa. Autores de grande prestígio (Nelson Nery Junior, Edis Milaré entre outros) declaram abertamente utilizar indiferentemente, como sinônimos, as expressões interesse difuso, coletivo, de grupo, meta ou supra-individual, embora reconheçam haver na doutrina, tentativas respeitáveis de distinguir esses conceitos. No entanto, o próprio direito positivo consagrou a distinção: tanto a Constituição Federal (art. 129, III) como a Lei da Ação Civil Pública (7.347/85, art. 1º, IV – com a redação dada pela Lei 8.078/90, art. 110) referem-se a interesses difusos e coletivos. Ora, assim não procederia o legislador se considerasse sinônimas tais expressões.

Para clarear esta questão terminológica, mister se faz comparar os dois termos, mas mostrar que os interesses são distintos e não se confundem.

Celso Ribeiro Bastos põe em relevo o fato de que os interesses coletivos "dizem respeito ao homem socialmente vinculado", havendo, portanto, um vínculo jurídico básico, uma geral affectio societatis ao passo que os interesses difusos se baseiam numa identidade de situações de fato, sujeitando-se a lesões de natureza extensiva, disseminada ou difusa.

José Carlos Barbosa Moreira também prefere distinguir ambas as expressões, em que pese à relativa imprecisão do conceito. De acordo com o autor,

a expressão "interesses difusos" não adquiriu até agora sentido preciso na linguagem jurídica, sugerindo duas notas essenciais ao conceito de interesse difuso, uma pertinente ao sujeito e outra ao objeto. No que tange ao sujeito, o interesse não pertence à pessoa determinada ou a grupo nitidamente delimitado. Eis aqui o ponto. Ao ver do processualista, a titularidade do interesse encontrar-se-ia em um grupo cujos membros seriam de difícil ou impossível determinação. Ademais, isto é de se sublinhar, inexistiria necessariamente um vínculo jurídico entre estes componentes do grupo, ao contrario do que ocorre, v.g., com uma sociedade anônima. Do ângulo do objeto, o interesse refere-se a um bem individual, de tal sorte que a satisfação de um elemento do grupo implicaria a satisfação dos demais (4)".

Mancuso [5] aponta duas razões para esta distinção: a) conquanto os interesses coletivos e os difusos sejam espécies do gênero "interesses meta (ou super) individuais", tudo indica que entre eles existem pelo menos duas diferenças básicas, uma de ordem quantitativa, outra de ordem qualitativa: sob o primeiro enfoque, verifica-se que o interesse difuso concerne a um universo maior do que verifica-se que o interesse coletivo, visto que, enquanto aquele pode mesmo concernir até a toda humanidade, este apresenta menor amplitude, já pelo fato de estar adstrito a uma "relação-base", a um "vínculo jurídico", o que o leva a se aglutinar junto a grupos sociais definidos; sob o segundo critério, vê-se que o interesse coletivo resulta do homem em sua projeção corporativa, ao passo que, no interesse difuso, o homem é considerado simplesmente enquanto ser humano; b) utilizar indistintamente essas duas expressões conduz a resultados negativos, seja porque não contribui para aclarar o conteúdo e os contornos dos interesses em questão, seja porque estão em estágios diferentes de elaboração jurídica: os interesses coletivos já estão bastante burilados pela doutrina e jurisprudência; se eles ainda suscitam problema, como o da legitimação para agir, a técnica jurídica tem meios de resolve-lo, ao passo que os interesses difusos não contam, propriamente, com mais de uma década de elaboração jurídica específica, continuando em certo modo uma figura misteriosa. Daí ser útil e conveniente a tentativa de distinção entre esses dois interesses.

Mancuso [6] chega a afirmar que se colocássemos os interesses em uma escala, os interesses difusos estariam acima dos interesses públicos ou gerais, porque, enquanto são inerentes a estes certos valores pacificamente aceitos (por exemplo: segurança pública), os interesses difusos, ao contrário, permitem toda sorte de posicionamento, de conteúdo fluido (por exemplo, qualidade de vida). E continua "enquanto o interesse geral ou público concerne primordialmente ao cidadão, ao Estado ao Direito, os interesses difusos se reportam ao homem, à nação, ao justo".

Pelo alto índice de desagregação ou de atomização estes interesses se referem a um contingente indefinido de indivíduos e a cada qual deles ao mesmo tempo.

Não podemos negar que esta classe de direitos sempre existiu. No entanto somente recentemente [7] este tema vem sendo elaborado de forma autônoma e sistemática. Este paradoxo pode ser talvez explicado pelo fato de que os sistemas jurídicos se fundam basicamente na tutela dos interesses do indivíduo, isto é, nas querelas de tipo "Tício versus Caio", mesmo que os implicados sejam pessoas jurídicas. Esse posicionamento acarretou a conseqüência de que somente os interesses considerados relevantes pelo Estado e suscetíveis de afetação a um titular mereceriam tutela jurisdicional.

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Dentro de uma tal concepção individualista, é bem compreensível que passassem despercebidos certos interesses que, justamente, se caracterizam pela inviabilidade de apropriação individual, como o interesse à pureza do ar atmosférico. Afirmou-se, mesmo, que se um interesse concerne a todos, não pertence a ninguém, e, assim, e assim não é tutelável.

Nesse sentido, de acordo com Mauro Cappelletti e Bryant Garth [8]

"a concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares (...), sendo que a visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se difundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos direitos públicos relativos a interesses difusos".

Anota-se que o primeiro passo para a revelação desses interesses difusos deu-se com o advento da Revolução Industrial e a conseqüente constatação de que os valores tradicionais, individuais, do século XIX, não sobreviveriam muito tempo, sufocados ao peso de uma sociedade "de massa".

Ora, nessa sociedade de massa, não há lugar para o homem enquanto indivíduo isolado; ele é tragado pela roda-viva dos grandes grupos de que se compõe a sociedade; não há mais a preocupação somente com situações jurídicas individuais, o respeito ao indivíduo enquanto tal, mas ao contrário, indivíduos são agrupados em grandes classes ou categorias, e como tais normatizados, ou seja,

"com a sociedade de massa, é necessária outra perspectiva, que encara situações jurídicas, em que a preocupação não é propriamente estabelecer regras que protejam os direitos subjetivos das pessoas envolvidas, mas sim fixar normas que preservem determinados bens ou valores que interessam a um grupo (determinado ou indeterminado) de pessoas, estatuindo o dever jurídico de respeito a esses bens ou valores, e conferindo a determinados entes da sociedade o poder de acionar a Jurisdição para fazer cumprir tais deveres [9]".

Paralelamente à Revolução Industrial e à massificação da sociedade, também o sindicalismo contribuiu para fazer aflorar essa "ordem coletiva". Reflexo dessa situação foram às ações coletivas na justiça do trabalho, onde a "pretensão resistida", é integrada pela reivindicação de uma categoria e a contestação de outra. Outros exemplos são os contratos de adesão e os contratos coletivos de trabalho.

Dentre esses direitos "novos", além dos ditos coletivos, mais recentemente, verificou-se a necessidade de tutelar os outros interesses revelados por esse processo social: os interesses "difusos", isto é, aqueles que sobrepõe a órbita dos grupos institucionalizados, pelo fato de que sua indeterminação não permite sua captação em termo de exclusividade. Aliás, como bem afirma Mancuso, são justamente esses "interesses em busca do autor" os que mais necessitam de tutela, porque são os mais desprovidos dela. E cabe ao Direito melhor identifica-los, a fim de atribuir-lhes um "espaço" próprio no universo dos interesses tuteláveis.

O interesse difuso, por não contar com uma base normativa própria, exsurgindo de circunstâncias de fato, conjunturais enseja o confronto entre interesses de massa, sustentados por grupos contrários, ocasionando uma conflituosidade máxima, ou alto grau de conflituosidade, referida pela doutrina italiana.

Frente a todas estas considerações, transcrevemos o conceito que Mancuso [10] dá aos interesses difusos: "são interesses metaindividuais, que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessários à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo, podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g. os consumidores).


3. Características Básicas dos Interesses Difusos.

Segundo Mancuso [11], as características básicas dos interesses difusos são: indeterminação dos sujeitos; indivisibilidade do objeto; intensa conflituosidade; duração efêmera, contingencial.

3.1. A indeterminação dos Sujeitos

Sabemos que somente os interesses relevantes para a ordem jurídica e referíveis a um titular são suscetíveis de tutela estatal, visto que só esses são qualificados por um sanção para a hipótese de não serem respeitados, o que acrescenta o aspecto coercitivo à sua exigibilidade. Ora, pelo fato de os direitos difusos possuírem um conjunto indeterminado ou dificilmente determinável de sujeitos, a tutela não pode mais ter por base a titularidade, as a relevância, em si, do interesse, isto é, o fato de sua relevância social. Por fim, altera-se fundamentalmente o esquema tradicional: a relevância jurídica do interesse não mais advém de sua afetação a um titular determinado, mas ao contrário, do fato de que esse interesse concerne a uma pluralidade de sujeitos.

É claro que pode ocorrer, num caso concreto, que um direito difuso venha a ser veiculado, exteriorizado por um sujeito ou uma entidade (o ente esponenziale a que se refere a doutrina italiana), mas isso não descaracteriza a essência do interesse, que permanece difuso, pelo fato de se referir a toda uma coletividade, indistintamente.

A titularidade ora tratada dos interesses difusos ficou bem evidenciada em certa class action cujo objeto era a interdição do uso do DDT. Seus autores declararam que integravam a class em questão "all the people of United States, not only of this generation, but of those generations yet unborn [12]".

3.2. A indivisibilidade do Objeto.

Consideramos que os interesses difusos são indivisíveis pelo fato de que são insuscetíveis de partição em quotas atribuíveis a pessoa ou grupos preestabelecidos. Trata-se, como preleciona José Carlos Barbosa Moreira, de uma espécie de comunhão, tipificada pelo fato de que a satisfação de um só constitui, ipso facto, satisfação de todos, assim como a lesão de um só, a lesão de toda a coletividade [13].

É a uniformidade de conteúdo que determina a indivisibilidade dos interesses difusos, assim referíveis a todos os sujeitos concernente, indistintamente.

3.3. A Intensa Litigiosidade Interna.

A maioria doutrinária, sobretudo na Itália, aponta a conflitulità massima como outra das características dos interesses difusos.

Ora, os interesses difusos são soltos, desagregados, disseminas entre segmentos sociais mais ou menos extensos; não têm um vínculo jurídico básico (do tipo "Tício versus Caio"), mas exsurgem de aglutinações contingenciais, normalmente contrapostas entre si. Como diz Ada Pellegrini Grinover trata-se de interesses de massa que sofrem constantes investidas, freqüentemente também de massa, contrapondo grupo versus grupo, em conflitos que se coletivizam em ambos os pólos.

Conclui-se que as controvérsias que envolvem esses interesses não são situações jurídicas definidas, mas trata-se de litígios que têm por causa remota verdadeiras escolhas políticas.

A marcante conflituosidade deriva basicamente da circunstância de que todas as pretensões metaindividuais não têm por base um vínculo jurídico definido, mas derivam de situações de fato, contingentes, por vezes até ocasionais. Na verdade, não há um parâmetro jurídico que permita um julgamento axiológico preliminar sobre a posição "certa" ou "errada". Podemos citar, para ilustrar o que fora dito, o interessante caso que ocorreu aqui no Rio de Janeiro com a construção do chamado "sambódromo", o qual gerou conflitos metaindividuais entre os interesses ligados à indústria do turismo versus os interesses dos cidadãos e associações, contrários à construção de um local definitivo para as "evoluções" das escolas de samba.

Percebe-se que a indeterminação dos sujeitos e a mobilidade e fluidez do objeto ampliam ao infinito a área conflituosa dos direitos difusos.

3.4. Transição ou mutação no tempo e no espaço.

No mais das vezes os interesses difusos surgem a partir de situações contingenciais, repentinas, imprevisíveis, e assim, é efêmera a duração do interesse decorrente: deve ele ser tutelado prontamente, antes que se altere a situação de fato que o originou. Por outras palavras, não exercitados a tempo e hora, os interesses difusos modificam-se, acompanhando a transformação da situação fática que os ensejou.

A essa especial característica segue-se a conseqüência da irreparabilidade da lesão, em termos substanciais. Com efeito, os interesses difusos se relacionam aos valores mais elevados para a sociedade: preservação do ambiente, direitos dos consumidores, e, uma vez lesionados tais interesses, o Direito não poderá oferecer uma reparação integral, "em espécie", porque não se trata de valores fungíveis, suscetíveis de reparação através de ressarcimento pecuniário, como exemplo, qual dinheiro "indenizará" a dor moral e o sofrimento físico das vítimas da talidomida?

É necessário, portanto, que haja meios ordinários para que a tutela desses interesses seja satisfeita rapidamente, em caráter de urgência; afinal, já existe a consciência da deteriorabilidade e irreversibilidade da situação e do dano que caracterizam o interesse difuso, e ainda, da impossibilidade de um ressarcimento a contento do dano causado a um interesse deste tipo. Grande importância teve, para a tutela destes interesses efêmeros, a Lei 8.952/94 que instituiu a antecipação dos efeitos da tutela, e de outra parte, previu meios coativos e medidas de apoio em ordem à prestação específica das obrigações de fazer e não-fazer.

Outra conseqüência deste caráter fugaz dos interesses difusos é que não os demonstram aptidão para serem completamente tutelados em sede legislativa que, a princípio, seria a indicada, visto que esses interesses implicam verdadeiras escolhas políticas. É que, de ordinário, não haveria tempo material pra que a tutela nesse nível se concretizasse de modo útil e eficaz.

Diante de tais interesses, percebe-se, quão importante se mostra o papel do judiciário. Afinal, mais do que nunca, deverá o juiz ser criativo, ter conhecimentos parajurídicos, procurar antes a justiça e a eqüidade na solução do caso concreto do que a fria aplicação dos textos. Até porque, em muitos casos, não terá ele à sua disposição uma norma pronta e acabada aplicável à espécie, ou então, o próprio texto deixará uma margem para ele próprio definir os contornos que deve ser dado ao caso concreto. É claro que haverá limites a essa atuação jurisdicional, até mesmo pelo já conhecido sistema de "freios e contrapesos" que preserva a independência entre os Poderes e ao mesmo tempo exerce o controle entre eles de forma harmônica.

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Sobre o autor
Henrique Lopes Dornelas

Mestre em Direito - UERJ. Mestre em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF Especialista em Direito Tributário - UCAM. Especialista em Direito Público - UGF. Advogado e Professor Universitario

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORNELAS, Henrique Lopes. A ideologia das ações que tutelam direitos transindividuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4612. Acesso em: 18 abr. 2024.

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