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A ideologia das ações que tutelam direitos transindividuais

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31/12/2003 às 00:00
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7.A disciplina da coisa julgada nas ações em defesa de interesses transindividuais.

7.1. Antecedentes históricos.

O primeiro diploma a tutelar os direitos difusos foi a Ação Popular (Lei nº 4.717/65) e trouxe solução inteligente e pioneira, depois seguida por outros institutos, para tratar da coisa julgada: "A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

Só que a Ação Popular tinha o inconveniente de abranger apenas alguns interesses metaindividuais e ainda tinha como único legitimado o cidadão. Logo, foi preciso criar um novo instituto mais abrangente em seu objeto e na legitimação para outras pessoas. É neste contexto que foi elaborada a disciplina da Ação Civil Pública.

Inicialmente, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública prescrevia, para a disciplina da coisa julgada, os mesmos termos da Ação Popular.

No entanto, de início, os tribunais não utilizavam o verdadeiro alcance da coisa julgada erga omnes, limitando os efeitos da sentença e das liminares segundo critérios de competência. Talvez isso ocorreu por temer a grande responsabilidade que é prolatar uma sentença de tamanho efeito. O fato é que ou a demanda é coletiva, ou não é: ou a coisa julgada é erga omnes, ou não é.

Em brilhante voto o min. Relator Ilmar Galvão, no Conflito de competência nº 971-DF, julgado pela 1ª. Secção do STJ aos 13.02.90, reconhecendo a prevenção da competência da 30ª. Vara Federal do Rio de Janeiro para conhecer e julgar ação civil pública visando a proibir a mistura e distribuição de metanol adicionado ao álcool para venda ao consumidor, em todo o território nacional, em relação a causa com mesmo objeto intentada perante a justiça federal do DF, reconheceu a conexão e a prevenção da competência da justiça federal do Rio de Janeiro – que havia inclusive concedido medida liminar -, reconhecia: (...) "nada impede que uma determinada decisão proferida por juiz com jurisdição num Estado projete seus efeitos sobre pessoas domiciliadas em outro. Avulta-se, no presente caso, tratar-se de ações destinadas à tutela de interesses difusos.... não sendo razoável que, v. g., eventual proibição de emanações tóxicas seja forçosamente restrita a apenas uma região, quando todas as pessoas são livres para nela permanecer ou transitar, ainda que residam em outra parte." [57]

O voto do relator foi acompanhado pelos ministros José de Jesus e Geraldo Sobral, mas prevaleceu no Tribunal a posição do ministro Vicente Cernicchiaro, que entendeu deverem os processos desenvolver-se separadamente, com eficácia das respectivas decisões na jurisdição de cada juízo.

Em outros casos, e em diversos processos, a sentença condenatória de primeiro grau começou a não fazer restrições territoriais à amplitude da coisa julgada erga omnes. E aos poucos a jurisprudência foi se solidificando no sentido de a coisa julgada ultra partes e erga omnes transcender o âmbito da competência territorial, para realmente assumir dimensão regional ou nacional.

No entanto, esta atitude se demonstrou temerária e contrária aos interesses fazendários, e por este motivou, o Poder Executivo incluiu, na Medida Provisória nº 1.570 de março de 1997, a norma do art. 3º. que restringiu os efeitos da sentença erga omnes aos limites territoriais da competência. E assim, o art. 16 da LACP passou a ter a seguinte redação: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de novas provas" (grifamos).

Várias críticas podem ser aqui lançadas em face desta malfadada alteração. É o que nos diz Ada Pellegrini Grinover: "o Executivo foi duplamente infeliz. Limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e de outro lado, contribui para a multiplicação dos processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente". [58]

José Carlos Barbosa Moreira, ao comentar a restrição, em conferência proferida na EMERJ, em 1998, afirmou: "colocou-se uma verruga num rosto bonito. A modificação teve fundamento político, pois houve muitos casos em que a Administração Pública sentiu-se incomodada com o fato de que uma sentença de um juiz de uma comarca qualquer produzisse efeitos em todo o território nacional. E essa inquietação foi injustificável, pois é perfeitamente normal que uma sentença produza efeitos fora da comarca em que foi proferida". [59]

7.2. A coisa julgada nas ações que tutelam direitos difusos.

Talvez a única importância prática que conseguimos enxergar para se fazer uma distinção conceitual entre direitos coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos é em relação ao tratamento da coisa julgada nestes distintos interesses. Enfim, cada um desses direitos terá, de acordo com o art. 103 do Código de Defasa do Consumidor, uma disciplina específica para a coisa julgada e aí sim, a distinção entre eles se faz relevante.

Vale lembrar que a disciplina da coisa julgada contida no art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, rege as sentenças proferidas em qualquer ação coletiva, pelo menos até a edição de disposições específicas que venham disciplinar diversamente a matéria.

O inc. I do art. 103, c/c seu § 1º., do já citado CDC, disciplina a coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses difusos.

A regra geral, para a hipótese em que a lide envolva direitos difusos, é da coisa julgada erga omnes, o que faz muito sentido pela própria natureza dos interesses transindividuais e indivisíveis.

E continua a regra a incorporar a solução das Leis de Ação Popular e Ação Civil Pública para os casos de improcedência por insuficiência de provas, em que qualquer legitimado poderá renovar a ação, valendo-se de nova prova.

A doutrina tem discutido se o autor popular ou coletivo pode valer-se da faculdade de intentar nova ação, com idêntico fundamento, após rejeição da demanda por insuficiência de provas. Segundo Barbosa Moreira [59], não há dúvidas quanto à possibilidade afirmativa, afinal, se a lei quisesse impedir a renovação da demanda pelo mesmo autor popular teria dito "qualquer outro cidadão" em vez de "qualquer cidadão". O raciocínio aplica-se ao inc. I do art. 103 do CDC, que utiliza a expressão "qualquer legitimado" e não "qualquer outro legitimado".

Cabe salientar que, nos termos do § 1º. do art. 103 do CDC, os efeitos da coisa julgada não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, que poderão promover ações pessoais de natureza individual, após a rejeição da demanda coletiva.

Concluindo, podemos identificar três hipóteses distintas:

7.2.1.Se o pedido formulado na ação coletiva é acolhido, a sentença beneficiará todos os membros da coletividade, que poderão valer-se da coisa julgada em suas pretensões individuais;

7.2.2.Se o pedido for rejeitado pelo mérito, os efeitos também se produzem erga omnes, impedindo o ajuizamento de nova ação coletiva, pelos mesmos fundamentos. Mas não fica preclusa a via às ações individuais, com idêntico fundamento, por iniciativa dos titulares de interesses e direitos pertencentes pessoalmente aos integrantes da coletividade;

7.2.3.Se o pedido for rejeitado por insuficiência de provas, a sentença não se reveste da autoridade da coisa julgada material e qualquer legitimado (até mesmo aquele que havia intentado a primeira demanda) poderá renovar a ação, com idêntico fundamento.

7.3. A coisa julgada nas ações que tutelam interesses coletivos.

O inc. II do ar.t 103, c/c seu § 1º. do CDC, disciplina os limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses coletivos.

O regime dos limites subjetivos da coisa julgada nas ações em defesa de interesses coletivos é exatamente o mesmo traçado para as ações em defesa de interesses difusos. A única distinção que aqui se faz é quanto à extensão dos efeitos da sentença com relação a terceiros. No caso de interesses difusos, é a própria da sentença a extensão da coisa julgada a toda a coletividade, sem qualquer exceção. Já no que concerne aos interesses coletivos, a natureza mesma destes restringe os efeitos da sentença aos membros da categoria ou classe, ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. É por isso que a redação do inc. II do já citado artigo substitui a expressão erga omnes, pela mais limitada: ultra partes.

É importante lembrar que, por exemplo, quando uma entidade associativa ingressa em juízo com uma ação coletiva que vise à tutela dos interesses coletivos de seus filiados, será a todos estes – tenha ou não havido autorização expressa – que se estenderão os efeitos da sentença, para beneficia-los. Eis aí a eficácia ultra partes, mas sempre circunscrita ao grupo, classe ou categoria ligada pelo vínculo jurídico.

7.4. A coisa julgada nas ações que tutelam interesses individuais homogêneos.

O inc. III do art. 103, c/c o seu § 2º. do CDC disciplina a matéria, sendo que não há distinção entre o tratamento legislativo desta hipótese com as que anteriormente mencionamos. A única ressalva que se faz é quanto à inexistência da coisa julgada na hipótese de improcedência por insuficiência de provas, adotado somente para os interesses difusos e coletivos: ou seja, a coisa julgada atua erga omnes, com o temperamento de só poder beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, sem prejudicar os terceiros que não tenham intervindo no processo como litisconsortes.

Assim, julgada procedente a ação coletiva de responsabilidade pelos danos sofridos individualmente, a sentença beneficiará todas as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação da sentença e à posterior execução (coletiva ou individual). Mas na hipótese de improcedência da ação coletiva, as pessoas lesadas, que não tiverem participado da relação processual como litisconsorte do autor coletivo, ainda poderão propor ação indenizatória a título individual. A decisão desfavorável proferida na ação coletiva constituirá um simples precedente, mas não será o fenômeno da coisa julgada que impedirá o ajuizamento de ações individuais.

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8. Considerações Finais.

No ordenamento jurídico brasileiro, temos por definição legislativa, a definição de interesses coletivos e difusos (artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor), apresentando fronteiras definitivamente delimitadas, tendo em comum, a transindividualidade e a indivisibilidade do objeto.

Isto significa que a fruição de um bem por parte de um membro da coletividade, implica necessariamente sua fruição por parte de todos, assim como a negação de um bem para um, significa a negação para todos. A solução do conflito é a mesma para todos. O que distingue os interesses coletivos e difusos, na sistemática do Código de Defesa do Consumidor, seria o elemento subjetivo, sendo que nos interesses difusos não existiria qualquer vínculo jurídico que ligue os membros do grupo entre si ou com a parte contrária, sendo seus titulares indetermináveis e indeterminados, unidos apenas por uma situação fática.

Nos interesses coletivos, tem-se um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por uma relação jurídica-base instituída entre as mesmas ou com a parte contrária.

Os interesses individuais homogêneos, que são conduzidos coletivamente por força de origem comum, cada membro do grupo é titular de direitos subjetivos clássicos, divisíveis, sendo que cada um pode levar a juízo sua demanda individual, sendo que no processo coletivo a decisão seria a mesma para todos, sendo que cada qual poderia ver sua demanda acolhida ou rejeitada por circunstâncias pessoais.

A ideologia das ações que tutelam direitos transindividuais está inserida no movimento pelo acesso à justiça, no qual passou-se a pensar o direito processual mais perto do direito substancial e da realidade social. Toma-se a consciência de que o processo não serve apenas para dirimir querelas do tipo individualístico e egoístico, mas a tutela de interesses conflitantes de massas e grupos, decorrentes das transformações ocorridas na sociedade nos últimos tempos, como o avanço da tecnologia, novas formas de cultivo, desmatamentos, crescimento desordenado do meio urbano, entre outros.

Atualmente pode-se afirmar que os processos coletivos integram a práxis judiciária, e, de certa forma, transformaram no Brasil todo o processo civil, hoje aderente à realidade social e política subjacente e às controvérsias que constituem seu objeto, conduzindo-o pela via de eficácia e da efetividade [59]. E, finalizando com as palavras da Prof. Ada Pellegrini Grinover, cremos que "por intermédio dos processos coletivos, a sociedade brasileira vem podendo afirmar, de maneira mais articulada e eficaz, seus direitos de cidadania".


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Sobre o autor
Henrique Lopes Dornelas

Mestre em Direito - UERJ. Mestre em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF Especialista em Direito Tributário - UCAM. Especialista em Direito Público - UGF. Advogado e Professor Universitario

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORNELAS, Henrique Lopes. A ideologia das ações que tutelam direitos transindividuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 178, 31 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4612. Acesso em: 23 dez. 2024.

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