6. Papel dos juízes na proteção dos interesses transindividuais.
6.1. Dificuldade dos juízes decidirem sobre direitos transindividuais – uma resistência de ordem política.
Não há dúvidas de que os direitos transindividuais causam imensa curiosidade e interesse geral (talvez por ser recente sua disciplina ou por abranger toda uma coletividade), no entanto, podemos verificar que, infelizmente, existem grandes reservas para sua efetiva tutela.
Na verdade, os direitos transindividuais envolvem sempre "questões dramáticas". Ora, a quem caberia escolher e qual seria a melhor escolha entre construir uma hidrelétrica e preservar o meio ambiente; entre fazer um programa de saúde preventiva ou curativa? Enfim, o maior óbice que a tutela desses interesses sofre é, sem dúvida, referente a uma resistência de ordem política.
No entanto, a tutela destes direitos não pode ser tida como um monopólio do Estado, até porque estes interesses são insuscetíveis de captação e apropriação isolada.E ainda, é praticamente impossível determinar uma hipótese normativa para estes direitos, de forma que sua incidência esteja pronta e acabada.
As controvérsias que envolvem estes interesses não são situações definitivas, mas tratam-se de litígios que envolvem na maior parte das vezes escolhas políticas que derivam de situações de fato, contingentes e ocasionais.
Além do mais, estes direitos estão em constante transição e mutação no tempo e espaço. Por isso, o legislador não poderia prever todas as situações que os envolvem. Então, a quem cabe a escolha e tutela destes direitos?
6.2. Da democracia-representativa à democracia-participativa.
É justamente frente aos interesses metaindividuais que verificamos que estamos hoje a caminho de superar a concepção de uma democracia representativa, para ascendermos à chamada "democracia participativa", onde a existência de representantes eleitos não exclui a participação dos cidadãos em geral, isolados ou em grupos. [38]
Ora, nada melhor do que as próprias pessoas que estão no local a ser devastado ou poluído, que estão na zona de consumo, para opinar e, até quem sabe, fazer a escolha que melhor atenda ao interesse comum. Acredita-se que a ação que envolva direitos meta-individuais é uma forma de participação comunitária na gestão da coisa pública.
Neste mister, grande importância tem a sociedade civil, ou seja, aquele conjunto de indivíduos, grupos e forças sociais que atuam e se desenvolvem fora das relações de poder que caracterizam as instituições estatais, por exemplo, organismos como a OAB, entidades científicas como a SBPC, e religiosas como a CNBB. [39] É notável a importância da mobilização da sociedade civil em torno da reivindicação de seus interesses, fazendo nascer um país que tem vida própria fora do oficialismo, da estabilidade tantas vezes opressiva. "Tem-se assim, uma primeira faceta do controle da efetividade do Direito, por via informal, não institucionalizada, de natureza essencialmente política e social. Por intermédio da atuação dos diferentes organismos da sociedade civil, articulam-se, muitas vezes, poderosos instrumentos para a exigência do cumprimento da Constituição e das leis, bem como para a conformação da atuação do Poder Público ao sentimento coletivo. Esta forma de fiscalização participativa se estende desde a pequena ação comunitária local até as grandes arregimentações que despertam e influenciam a opinião pública. (...) Não há efetividade possível da Constituição, sobretudo quanto à sua parte dogmática, sem uma cidadania participativa". [40]
Como bem diz o Prof. Mancuso, "precisamos, na verdade, é de eliminar a visão preconceituosa de que só os administradores públicos sabem e decidem bem e que a população leiga não tem capacidade para cogerir seus próprios interesses". [41] E continua: "não é a tutela dos interesses difusos por meio de órgãos intermediários o que viria afrontar o sistema representativo, institucionalmente estabelecido; ao contrário, é este sistema que teme perder o prestígio e as vantagens que vêm do monopólio de representação da vontade popular. O caso, porém, como dito, é de adaptação as novas realidades, mesmo porque, a formação de grupos sociais é inevitável, natural". [42]
Para corroborar o que acima foi dito, percebemos que até mesmo a ciência do direito vêm admitindo que as escolhas legislativas, executivas e até judiciais não devem ser monológicas (ditadas individualmente, em que cada sujeito faz escolhas de acordo apenas com o seu foro íntimo), mas devem ser dialógicas (participando todos os envolvidos, buscando-se um consenso). Assim, a racionalidade jurídica vem se desenvolvendo através da justificação de argumentos para atingir o maior consenso entre os povos. A nova hermenêutica introduz um giro determinante de perspectiva: busca-se a reabilitação da razão prática, um raciocínio que conduz à decisão jurídica com caráter discursivo e intersubjetivo. [43] A prática jurídica já não está na consciência cognoscente do sujeito individual que pondera argumentos objetivos, mas na discussão entre sujeitos que pugnam para fazer valer seus interesses. Assim, a consciência do juiz deve converter-se em consciência pública. Deste modo, o raciocínio jurídico se "publiciza", se faz intersubjetivo, dialógico.
6.3. Do alcance da interferência do judiciário na discricionariedade legislativa e administrativa.
Não são poucos os que alegam que a interferência do Poder Judiciário para a tutela dos interesses difusos provocaria um desequilíbrio na tripartição dos poderes, com o superdimensionamento do Judiciário. Sustentam a tese de que o Judiciário existe para exercer uma atividade substitutiva –dirimir controvérsias – e não para conhecer de interesses primários, que poderiam e deveriam ser objeto de tutela em nível da lei lato sensu ou do poder de polícia da administração.
É verdade que a própria natureza da matéria discutida nas ações difusas normalmente está impregnada de sentido político e isto nos leva à inevitável interrogação acerca dos limites do controle judicial.
Segundo a tradição da doutrina brasileira, em regra, o controle judicial se cinge à legalidade dos atos discricionários, abstendo-se de ingressar no exame do mérito, isto é, da conveniência do ato, da sua conformidade aos fins a que deve ordenar-se.
Atualmente podemos diferenciar duas correntes na doutrina quando se trata deste assunto. Há uma corrente com tendência mais restritiva, que busca justificar sua posição no receio de que o alargamento do âmbito de investigação do judiciário poderia conduzir ao esvaziamento da discricionariedade administrativa. Correr-se-ia, alegam, o risco de ver inteiramente substituídos pelo do juiz, sem vantagem segura, os critérios do administrador. Argumentam ainda, que há impossibilidade da ingerência do judiciário em atividades típicas do Executivo ante o princípio da separação dos poderes, daí o âmbito do Judiciário ser a legalidade em sentido estrito. Afirmam também, os seguidores desta corrente restritiva, que os integrantes do Judiciário são desprovidos de mandato eletivo, não tendo, portanto, legitimidade para apreciar aspectos relativos ao interesse público. De acordo com esta linha, no controle do ato administrativo, o Judiciário apreciaria somente matéria relativa à competência, forma e licitude do objeto.
Outro entendimento inclina-se por um controle mais amplo, apoiando-se nos seguintes argumentos: pelo princípio da separação dos poderes, o poder detém o poder, cabendo ao Judiciário a jurisdição e, portanto o controle jurisdicional da Administração, sem que se possa cogitar de ingerência indevida; por outro lado, onde existe controle de constitucionalidade da lei, a invocação da separação dos poderes para limitar a apreciação jurisdicional perde parte de sua força.
Seabra Fagundes e Caio Tácito [44] assinalam em passo importante na ampliação do controle jurisdicional além da competência e forma do ato administrativo, para adentrar nos motivos e fins, como integrantes da legalidade e não da discricionariedade e mérito. Caio Tácito divide a legalidade em dois aspectos: legalidade externa (competência, forma prevista ou não proibida em lei e objeto lícito); e legalidade interna (existência e adequação dos motivos e finalidade). Assim, afirma que o controle judicial não se circunscreve apenas nos aspectos externos da legalidade. "O juiz pode considerar a motivação dos atos administrativos, mergulhando na apreciação da matéria de fato, para analisar os elementos da legalidade interna da conduta do administrador" [45].
É relevante para esta discussão que se distinga discricionariedade de conceitos jurídicos indeterminados [46] (como por exemplo: valor histórico, valor artístico). A rigor, o problema não é aqui de discricionariedade, mas de pura e indispensável verificação da ocorrência ou não ocorrência da hipótese fática que a norma liga o efeito jurídico. Assim, a questão de "mérito" (tem ou não tem a obra valor artístico?) resolve-se em questão de "legalidade": (está ou não está a Administração faltando ao seu dever de proteger as obras que o tenham?).
Ora, de forma alguma está o judiciário desenvolvendo atividade de "suplência"; afinal é sua própria atividade de outorgar tutela a quem pede e merece. Ainda mais quando haja omissão e descaso por parte do poder legislativo ou administrativo. Além do mais, qualquer ato de poder (até mesmo os atos políticos e discricionários) deve pautar-se pela razoabilidade, sob pena de caracterizar-se desproporcionais e se tornarem atos com abuso ou desvio de poder.
Assim, não é que o judiciário esteja a invadir a seara dos outros poderes; será antes um sinal de que aqueles não estão a tutelar os interesses aqui tratados, obrigando aos cidadãos a recorrerem diretamente à via jurisdicional.
Além do mais, a tendência da ampliação do controle jurisdicional da Administração se acentuou a partir da Constituição de 1988, em que o texto está impregnado de um espírito geral de priorização dos direitos e garantias fundamentais ante o poder público, haja vista os princípios que são verdadeiras normas que solidificam o Estado de Direito, como os princípios da moralidade, da impessoalidade e publicidade (só para citar apenas alguns entres os vários princípios consagrados).
A mais recente doutrina constitucional [47] tenta resolver o problema ora suscitado através dos estudos que concernem o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Vejamos como esta doutrina desenvolve seu raciocínio:
Comecemos pelas características dos direitos difusos e coletivos. Muitos desses direitos vêm abarcados constitucionalmente em forma de normas-princípios [48] e constituem os chamados direitos fundamentais da pessoa humana de 2ª geração (ou dimensão como preferem outros), são, enfim, os direitos sociais e econômicos.
Até o século XX, com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, os direitos fundamentais se limitavam, grosso modo, (de acordo com o modelo do estado liberal) às garantias individuais, ou seja, protegiam as liberdades civis e políticas do cidadão contra a prepotência dos órgãos estatais. A sociedade liberal oferecia aos indivíduos a segurança da legalidade e como conseqüência, uma "aparente igualdade" de todos perante a lei. Mas, como visto, o movimento dialético da história [49] demonstrou que não só estes direitos devem ser alçados como fundamentais e passamos a alargar o rol dos direitos fundamentais incluindo neles também os direitos econômicos e sociais.
Segundo a doutrina tradicional, estes direitos não teriam efetividade, porque não poderiam ser exigíveis. Argumentavam que estes direitos eram normas programáticas, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos individuais. E além do mais, estes direitos eram endereçados à política pública a qual ficaria restrita à competência e discricionariedade do legislador ou da administração, não podendo o judiciário interferir nesta seara. Com efeito, até então, em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade possuíam aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador.
E assim, durante muito tempo, estes direitos passaram por um ciclo de "baixa normatividade", tinham uma eficácia um tanto quanto duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado uma prestação material, a chamada eficácia positiva, ou simétrica. Contudo, esta questão esbarra-se numa ponderação de ordem fática: a limitação de recursos disponíveis no âmbito estatal ("reserva do possível") [50]. E com isso alguns autores advertem que os direitos sociais e econômicos não seriam direitos fundamentais porque não são dirigidos ao poder judiciário, não seriam exigíveis judicialmente; e assim, não poderia um indivíduo ou um grupo de indivíduos pleitear a concretização destes direitos judicialmente porque eles estão no âmbito de políticas públicas, área reservada para a discricionariedade legislativa ou executiva. Ou seja, não se poderia pleitear um direito social ou econômico judicialmente porque não é competência do judiciário resolver sobre uma determinada política pública.
Mas não é pelo fato de um direito não poder ser pleiteado judicialmente que ele irá deixar de ser um direito fundamental, afinal esses direitos têm outras relevâncias além de poder ser exigíveis em juízo. Ora, a ausência ou o não exercício da pretensão não significa, de modo algum, que não haja direito subjetivo. [51] Além do mais, relevante para esta questão é o estudo acerca do núcleo mínimo, ou mínimo existencial [52] dos direitos fundamentais. Este núcleo mínimo constitui verdadeiras regras exigíveis, ou seja, que devem ser efetivadas sempre que reclamadas em juízo, independente de dotação orçamentária [53], quando não haja uma determinada política pública para o caso concreto ou quando há, ela é insatisfatória (omissão ou ineficiência da administração para efetivar programas políticos). [54]
Assim, quanto aos direitos sociais e econômicos podemos imaginar dois componentes: um núcleo, referente ao mínimo existencial, que pode ser pleiteado judicialmente; e um espaço mais abrangente que está além desse núcleo, o qual se reveste de outras modalidades de eficácia, que corresponde ao espaço próprio da política pública.
6.4. O relevante papel do judiciário para a tutela dos direitos transindividuais.
Um estudo mais atencioso acerca do progresso da sociedade e do Estado demonstra que devemos fazer uma releitura do princípio da separação dos poderes. Ora, o juiz não pode ser mais apenas a boca da lei, afinal, algumas normas (de uma sistema democrático e plural) contêm conceitos indeterminados, abertos, vagos e fluidos que necessitam inevitavelmente do ativismo e da criatividade por parte do aplicador do direito. E principalmente, em se tratando de direitos transindividuais, por serem de difícil apreensão por estarem em constante transformação e mutação no tempo e espaço, estes direitos ainda não foram legislados; e neste caso, mais relevante ainda se torna a atividade criativa racional do judiciário.
O judiciário não pode ficar alheio as modificações da sociedade. E frente ao fenômeno da massificação, seria muito cômodo para o juiz adotar uma posição de simples rejeição, e recusar-se a entrar na arena dos conflitos coletivos e de classes. Ora, os juízes devem ser capazes de "crescer", erguendo-se à altura dessas novas e prementes aspirações, tornando-se eles mesmos protetores dos novos direitos metaindividuais, tão característicos e importantes na nossa civilização de massa, além dos tradicionais direitos individuais. Trata-se da expansão dos poderes criativos e da evolução jurisprudencial do direito.
E assim conclui Cappelletti, que:
"quase desnecessário repisar a observação de que se a concepção da jurisdição como função meramente declarativa, passiva e mecânica é fictícia e sempre frágil, ainda mais evidentemente frágil e fictícia resultará quando um ‘grande judiciário’ estiver empenhado na tarefa de composição de controvérsias de tal amplitude. O caráter criativo, dinâmico e ativo de um processo jurisdicional, cujos efeitos devem, por definição, ultrapassar em muito às partes fisicamente presentes em juízo, não pode deixar de aparecer com grande proeminência". [55]
No entanto, concordamos que se deve estabelecer limites para a atuação do Judiciário, para que não haja um superdimensionamento de seus poderes. Assim, somos da opinião que o Judiciário não tem competência para fixar as políticas públicas de maneira ampla, irrestrita, nem cabe ao juiz impor sua própria convicção política, quando há várias possíveis e a maioria escolheu uma determinada.
E como já exposto no item anterior o judiciário deverá, portanto, ficar restrito ao mínimo existencial, reconhecendo-se sua legitimidade para determinar prestações necessárias à sua satisfação. [56]