Proteção do meio ambiente.

A expansão dos bens sujeitos à tutela penal em contraposição à aplicação dos princípios minimalistas

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O presente trabalho busca distinguir o que se entende por expansão dos bens dignos de tutela do Estado – tratando-se, em especial, dos bens de natureza ambiental – e o alastramento das teorias que defendem o recrudescimento da reprimenda penal.

                                                                                                                                    

Resumo: Há divergências doutrinárias no que diz respeito ao papel do Direito Penal como mecanismo de coerção da atividade predatória ao meio ambiente. Nesta senda, o que é questionável é se a proteção a novos bens jurídicos se coaduna com as teorias maximalistas de atuação do Direito Penal, através da violação dos seus pressupostos basilares, em especial os princípios que propugnam a mínima intervenção estatal na esfera da vida particular do cidadão. O presente Trabalho busca distinguir o que se entende por expansão dos bens dignos de tutela do Estado – tratando-se, em especial, dos bens de natureza ambiental – e o alastramento das teorias que defendem o recrudescimento da reprimenda penal.

Palavras Chaves: Direito Penal; Bens Jurídicos; Teorias Penalistas; Meio Ambiente; Proteção à Fauna. 

 

Introdução

 A complexidade dos fatores sociais trouxe consigo a expansão dos bens dignos de tutela estatal. Assim, o advento de novas demandas por parte de diferentes setores da sociedade acarretou em uma paulatina expansão da atuação legislativa.

            A mudança desse paradigma social se legitima diante da ineficácia do sistema jurídico que tinha, como base, a proteção exclusiva dos direitos individuais, também denominados direitos de primeira geração, tais como, a liberdade, a propriedade, a vida etc. A proteção normativa a tais direitos foi de grande importância no que tange à delimitação do poder de atuação do monarca absolutista do século XVIII, especificando uma esfera de direitos insuscetíveis de intervenção estatal. A delimitação no âmbito de atuação do monarca é o alicerce fundamental para a ascensão do Estado burguês, que, por sua vez, pauta-se nos critérios de segurança jurídica e de proteção aos direitos individuais.

            Ocorre que as diferenças sociais trouxeram à baila a dicotomia burguesia-proletariado, bem como a organização política de diferentes setores da sociedade. Tais setores tinham o objetivo de garantir a viabilidade de uma existência condigna, através de melhores salários, melhores condições de trabalho etc. Dessa forma e, diante da importância desses novos setores no que concerne à manutenção do modo de produção capitalista, novos direitos surgiram, sedimentando assim, um Estado social, que visa à proteção dos direitos de todas as camadas da sociedade.

            Contudo, a proteção dos direitos sociais não abarcou todas as demandas existentes em âmbito estatal, haja vista o fato de que, a complexidade dos fatores sociais acarreta também o alastramento de novos grupos cujas perspectivas transpõem a dicotomia burguês-proletário. Nesse contexto, surgiram novos pleitos visando à expansão dos bens jurídicos tuteláveis pelo ordenamento jurídico. Como exemplo de tais segmentos, cita-se o movimento feminista, o Movimento dos Sem Terra (MST), os movimentos que lutam pelos direitos dos homossexuais (no Brasil, o LGBT), os movimentos ambientalistas, dentre outros.

            Destarte, a proteção do meio ambiente pelos ordenamentos jurídicos possui o fulcro de conter a degradação advinda com o desenvolvimento dos meios de produção do Estado. Não é demasiado ressaltar, contudo, que o homem sempre interferiu no meio ambiente, contudo, o desenvolvimento tecnológico e a expansão dos meios de produção capitalista, ao passo de terem melhorado o padrão de vida de alguns setores sociais, também trouxeram, em contrapartida, um aumento progressivo nos índices de degradação ambiental, a exemplo do aquecimento global.

            Nessa esteira, o ordenamento jurídico brasileiro garantiu a proteção constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado bem como a tutela penal em caso de lesão a tal bem, disciplinando, inclusive, a responsabilização da pessoa jurídica que infringir tais preceitos normativos.

            O presente trabalho tem o objetivo de tecer uma breve análise acerca da tutela penal do meio ambiente. Nessa senda, objetiva-se trazer uma breve definição acerca de bem jurídico, estabelecendo uma premissa delimitadora do âmbito de atuação penal, através de uma análise histórica dos bens de natureza individual, social bem como dos novos direitos, fruto da estruturação de novos segmentos sociais, como é o caso do direito ao meio ambiente equilibrado.

            A sedimentação do Direito Ambiental como bem jurídico digno da tutela estatal trouxe consigo a necessidade de proteção desse instituto por todos os ramos do Direito. Nesse diapasão, o presente trabalho propõe-se a discutir a viabilidade de intervenção penal sem que haja a violação de seus princípios basilares, tais como a intervenção mínima, a aplicação do princípio da insignificância dentre outros.

            Ressalte-se, sem embargo, que o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o tema, propõe-se, tão somente, trazer a balia, de forma sucinta, o instituto de proteção ao meio ambiente, com base nos princípios consagradores de um Direito Penal fragmentário e minimalista. 

 

 

1. Teoria do Bem Jurídico

 

1. 1. Conceito

 

Partindo-se do pressuposto de que a função do Direito Penal, bem como os seus mecanismos de atuação social, é definida de acordo com os valores ético-morais tuteláveis em determinado contexto histórico, faz-se necessário, de antemão, uma breve análise acerca do conceito de bem jurídico, traçando-se um paralelo entre a infração a tais valores juridicamente protegidos e a sanção penal a eles aplicável.

Com base em tal perspectiva, para que haja a atuação justa do direito penal é de salutar importância uma delimitação no que concerne a seu âmbito de aplicabilidade, tal pressuposto é fundamental para que não se incorra, tal como acontecia no período do Antigo Regime, em uma atuação injusta e desarrazoada, baseada em conceitos subjetivos do aplicador da sanção. Com base em tal análise, Luiz Regis Prado (2003, p. 21) entende que “A idéia de bem jurídico é de extrema relevância, já que a moderna ciência penal não pode prescindir de uma base empírica nem de um vínculo com a realidade que lhe propicie a referida noção”.

            Sob outro prima, uma análise objetiva em relação à definição de bem jurídico dará ensejo a uma maior compreensão no que concerne aos valores individuais e coletivos protegidos em dado momento histórico. Em assim sendo, a conceituação epistemológica do que se entende como bem juridicamente tutelável sofreu mutações desde a sua origem, passando por uma fase de proteção aos direitos tidos como individuais evoluindo-se, posteriormente, para o que se denomina “direitos difusos”, em que a lesão atinge a coletividade como um todo, como é o caso, por exemplo, da proteção jurídica ao meio ambiente.

 Com base na mutabilidade dos bens e valores protegidos pelo Estado, a definição objetiva de bem jurídico deve estar em compasso com uma análise de seu contexto histórico. Sob tal orientação, cite-se o conceito de bem jurídico proposto por Luiz Regis Prado (2003, p.52):

[...] o bem jurídico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade e, por isso, penalmente protegido

 

Entende-se por bens jurídicos metaindividuais aqueles de titularidade geral, ou seja, as pessoas lesadas não podem ser individualizadas. No que concerne à tutela penal aos bens de natureza transindividual, necessário fazer menção a entendimento plasmado por Claus Roxin (2006, p.19):

Um conceito de bem jurídico não pode ser limitado, de nenhum modo, a bens jurídicos individuais; ele abrange também os bens jurídicos da generalidade. Entretanto, estes somente são legítimos quando servem definitivamente ao cidadão do Estado em particular.

 

É imprescindível, ainda, fazer menção a Franz Von Liszt no que diz respeito à conceituação de bem jurídico. De acordo com ele, tal definição está diretamente atrelada aos direitos do indivíduo e da sociedade. Sob tal orientação, o autor faz uma ressalva ao afirmar que bens jurídicos não são sinônimos de bem do direito e sim, de bens dos homens, reconhecidos e protegidos pelo ordenamento jurídico. Conforme citado abaixo:

Nós chamamos Bens Jurídicos os interesses protegidos pelo Direito. Bem jurídico é o interesse juridicamente protegido. Todos os bens jurídicos são interesses vitais do indivíduo e da comunidade. A ordem jurídica não cria os o interesse, quem os cria é a vida; porém a proteção do Direito eleva o interesse vital a bens jurídicos (LISZT, 2007, p. 235. Tradução Livre).

 

Não é demasiado salientar, contudo, o fato de que apenas os bens jurídicos tidos como “fundamentais” devem estar sob o crivo da atuação punitiva do Estado; no mais, acrescente-se que, partindo-se do pressuposto de que o Direito Penal é a forma mais violenta de intervenção estatal na esfera de direitos do cidadão, este, só deverá ser aplicado quando todos os outros meios de tutela jurídica se mostrarem insuficientes, tal premissa encontra fundamentação no princípio da ultima ratio. Alinhando-se a tal posicionamento, cumpre mencionar entendimento de Claus Roxin (2006, p. 16) acerca da função social do Direito Penal:

Eu parto de que as fronteiras da autorização de intervenção jurídico-penal devem resultar de uma função social do Direito Penal. O que está além dessa função não deve ser objeto do Direito Penal. A função do Direito Penal consiste em garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando essas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos.

 

No que diz respeito à sanção penal, esta é graduada, pelo legislador e pelo aplicador da pena com base na importância do bem jurídico lesionado. Tal critério é fundamentado pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, princípios estes que, por sua vez, tiveram Cesare Beccaria como seu maior expoente, conforme se observa nas linhas que se seguem:

Se pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade, os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior, se disso resultar maior vantagem. (BECCARIA, 1999, p. 39)

 

Ainda com base no critério de proporção entre a natureza do bem jurídico e a necessidade da ingerência do poder estatal para a sua proteção, cite-se entendimento de Luiz Regis Prado (2003, p.23):

A relação entre o bem jurídico e pena opera uma simbiose entre o valor de bem jurídico e a função da pena: de um lado tendo-se presente que se deve tutelar o que em si mesmo possui um valor, o marco da pena não é senão uma conseqüência imposta pena condição valiosa do bem; de outro lado, e ao mesmo tempo, a significação social do bem se vê confirmada precisamente porque para a sua proteção vem estabelecida a pena.

 

Nesta senda, pode-se afirmar que a definição de bem jurídico é de extrema importância para que se tenha uma precisa delimitação da atividade persecutória do Estado bem como os fins almejados por este. É o que afirma Juarez Tavares (2009, p. 12):

Entendido no contexto dos Direitos fundamentais, o bem jurídico não pode ser eliminado da noção de delito, como pretendeu realizar a Escola de Kiel, senão ressaltado como o único parâmetro aceitável de delimitação da intervenção estatal.

 

Frise-se, contudo, que o papel da sanção no Direito Penal ultrapassa uma perspectiva meramente retributiva, ou seja, não se trata de uma vingança estatal; a pena, de acordo com o autor, possui uma função utilitarista qual seja, a de evitar o reiterado cometimento de novos delitos por parte do réu, bem como por parte de outros cidadãos. É o que se depreende das linhas que seguem:

O fim da pena, pois, é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo.

É, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicá-las, de modo tal que, conservadas as proporções, causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens, e menos tormentosa no corpo do réu. (TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 2009. p. 46)

 

 

1.2. Histórico: da proteção dos bens individuais à proteção dos bens transindividuais

 

A função precípua do Direito penal consiste na proteção dos bens jurídicos ditos como socialmente relevantes. A definição do que seria “socialmente relevante”, contudo, constitui fator variável em função da época e do contexto histórico em que este ramo do direito está alicerçado.

Nesta senda, houve época em que o cometimento de um ilícito era caracterizado como um atentado contra a “vontade dos deuses”, ou contra a vontade do monarca absolutista que, por sua vez, determinavam, com base em critérios subjetivos, qual seria a penalidade aplicada ao caso concreto. Nessa fase – em que não havia um Direito positivo estabelecido e, portanto, inexistiam as premissas basilares de conceituação de bem jurídico – a atuação do direito penal tinha como enfoque, o caráter punitivo, constituindo verdadeira vingança social àquele que cometeu ato atentatório à vontade do soberano.

Com o advento do Estado Liberal, e, com ele, dos ideais racionais-iluministas, o Direito passou a ter seu âmbito de atuação limitado pelo Estado, que, por sua vez, pré-estabelecia o que seria qualificado como ilícito (ou seja, quais seriam os bens juridicamente tuteláveis pela sociedade) e as conseqüências normativas para o cometimento de determinado ato. Tal delimitação possuiu como escopo a garantia da liberdade individual do cidadão, e teve como instrumento de atuação a separação dos poderes e a positivação do Direito, gerando uma maior segurança jurídica à sociedade.  Sob tal perspectiva, saliente-se o entendimento explanado por Gabriel Ignacio Anitua (2008, p.143):

O conceito liberal de segurança proporia um Estado limitado, e que passaria a se denominar “Estado de Direito”, pois tais limites surgiriam da Lei. A lei regulará os poderes públicos e permitirá ao ser humano recorrer a um juiz imparcial quando ocorrer o descumprimento dela.

 

À luz dos ideais iluministas, as penalidades deviam obedecer a critérios objetivos e previamente estipulados em leis, que, por sua vez, seriam formuladas por um poder independente, qual seja: o poder legislativo. No mais, há de se fazer menção ao movimento humanista que, pautados em critérios racionalistas, defendiam a culminação da pena de acordo com a proporção do delito e do dano causado. Esse movimento político-cultural foi encampado por autores como Cesare Bonessana (marquês de Beccaria), Marat, Montesquieu, Rousseau, Howard, dentre outros.

Dentre os princípios jurídico-penais encampados pelo movimento Liberal, deve-se mencionar o da legalidade, cujo alicerce fundamenta-se em outro princípio: o da anterioridade da lei penal. A partir do princípio da legalidade é possível se estabelecer quais são os valores juridicamente tuteláveis na sociedade e quais as penas aplicadas em caso de lesão a tais bens. Com base em tais premissas, cumpre fazer menção ao entendimento de Gabriel Ignácio Anitua (2008, p.144):

O princípio da legalidade passaria então a definir os delitos e as penas. Isso é algo complexo, pois certamente ao fazê-lo permite-se que um poder estatal limite a atividade individual, sempre sobre a justificativa de proteger outros indivíduos. A proteção de direitos de terceiros foi o limite racionalizador, a dupla ferramenta justificadora e limitadora, que o iluminismo traçou. Daí a importância da contínua discussão sobre a natureza e a função do “bem jurídico.  

 

Entretanto, em que pese ter havido um grande avanço no que diz respeito à segurança jurídica dos cidadãos – que não estavam mais submetidos às arbitrariedades do monarca absolutista – não se pode deixar de mencionar a característica marcadamente patrimonialista no que concerne aos bens jurídicos protegidos pelo Estado Liberal, ou seja, nessa época, os valores juridicamente tutelados estavam, em sua maioria, restritos à individualidade dos cidadãos, tais como proteção a vida, a liberdade, a propriedade etc.

Com a decadência do modelo liberal e o conseqüente surgimento do Estado social, novos direitos passaram a ter proteção jurídica, direitos estes que ultrapassam a esfera estritamente individualista; Em assim sendo, nos dias atuais, há outros bens sujeitos à tutela estatal, quais sejam, os bens de natureza metaindividual que, por sua vez, afetam um grupo de pessoas ou toda a coletividade, possuindo, portanto, âmbito de atuação mais extenso do que os bens jurídicos do Estado Liberal.

Hodiernamente, o paulatino aumento das discrepâncias sociais aliada à falta de atuação estatal no âmbito de políticas sociais, trouxe consigo o crescimento dos índices de criminalidade, principalmente no que diz respeito aos crimes contra o patrimônio. Como resposta, desenvolveu-se uma corrente social fortemente caracterizada pelo animus persecutório, objetivando o recrudescimento da reprimenda penal.

Nessa esteira, objetivando uma severa retaliação jurídica como forma de evitar o aumento dos índices de criminalidades, o direito penal passou a ser concebido como “tábua de salvação” para os problemas sociais, o que constitui uma afronta ao princípio da ultima ratio ao qual o Direito Penal está alicerçado. Alguns autores, a exemplo de Claus Roxin, qualificam tal movimento como “Direito Penal de Emergência”.

Contudo, há de se fazer uma breve diferenciação entre o alargamento dos bens juridicamente protegidos e a corrente que propõe o recrudescimento do papel punitivo do Estado. Tais posicionamentos não se confundem. Entende-se como “emergência penal” o recrudescimento desmedido das penalidades cominadas a bens já protegidos juridicamente, tal recrudescimento possui embasamento no apelo social, e no aumento dos índices de criminalidades.

O alargamento dos bens juridicamente protegidos, por sua vez, é entendido como um aumento da tutela estatal, abarcando outros bens jurídicos socialmente relevantes, é o caso, por exemplo, da proteção ao meio ambiente, ao direito do consumidor, etc. Com base em tal distinção, e, tratando da proteção aos bens ambientais, cite-se Maria Auxiliadora Minahim, prefaciando a obra de Alessandra Raspassi Prado (2010, p. 10):

Não se trata, dessa forma, de uma visão expansionista do Direito Penal, mas de uma opção de reforço pela ia criminal, até por uma questão de coerência: a criminalidade grave – como é aquela que atenta contra o meio ambiente ecologicamente equilibrado – exige respostas proporcionais, ou seja, a pena criminal.

 

Ainda sobre o tema, cumpre fazer menção ao entendimento explanado por Alessandra Prado (2010, p. 22), nos termos em que seguem:

Nesse sentido, a reflexão sobre o crime de poluição estará centrada nas dificuldades que se apresentam para sua punição, tendo em vista a tentativa de conciliar a proteção do meio ambiente com os princípios de e um direito penal garantista.

 

Ressalte-se, sem embargo, que a expansão dos bens dignos de tutela pelo Direito Penal – ultrapassando a esfera de proteção essencialmente individualista – não configura afronta ao princípio da ultima ratio, haja vista que a atuação Estatal na esfera privada do cidadão continua sendo o último meio de coerção Estatal para a efetiva proteção aos bens jurídicos. O que há, nesse caso, é um movimento que visa proteger valores sociais juridicamente relevantes para a sociedade pós-moderna, sobrepondo-se, assim, a uma concepção meramente patrimonialista no que concerne à atuação do Direito Penal.

 

1.2 1. Bens Jurídicos Individuais

 

Os Direitos Individuais, também denominados de Direitos fundamentais de primeira dimensão, tiveram sua origem epistemológica na antiguidade clássica, em que se defendia a existência de direitos naturais, inerentes à natureza humana, tendo, pois, caráter imprescritível e inalienável. Os jusnaturalistas defendem, então, a existência de direitos de caráter absoluto, anterior e superior ao positivismo. Cumpre destacar que a concepção de direitos absolutos não encontra guarida nos dias atuais, haja vista que, em casos concretos, é possível a relativização de direitos e o contrabalanceamento de uns, face a outros; na esfera do direito penal, podemos citar, como exemplo, as excludentes de ilicitude, tal como a legítima defesa.

Com base nos preceitos naturalistas, surge o movimento iluminista no século XVIII cujas teorias buscavam a limitação de poder, a racionalização das instituições, e uma visão filosófica humanista. Tais teorias promoveram a paulatina valorização do homem como ser racional e detentor de direitos fundamentais inerentes à sua natureza, conseqüentemente, a concepção de que o detentor do poder era escolhido por Deus passou a ser questionada.

Defendendo a relação dos preceitos iluministas aos da Antiguidade Clássica, cite-se Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p. 44):

Ainda que consagrada a concepção de que não foi na Antiguidade que surgiram os primeiros direitos fundamentais, não menos verdadeira é a constatação de que o mundo antigo, por meio da religião e da filosofia, nos legou algumas das idéias-chave que, posteriormente, vieram a influenciar diretamente o pensamento jusnaturalista e sua concepção de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e inalienáveis, de tal sorte que essa fase costuma ser também denominada de pré-história dos direitos fundamentais.

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Os direitos individuais amparados pelos pensadores iluministas tinham o objetivo de limitar a ingerência do Estado na vida privada dos cidadãos, estes, de acordo com entendimento amparado pelos naturalistas, eram detentores de direitos universais e absolutos, insuscetíveis de violação, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a participação política, religiosa etc.

Com base em tal perspectiva, pode-se afirmar que os direitos individuais têm o escopo de limitar a atuação do poder público, definindo as esferas de direitos tidas como invioláveis, e, é exatamente por isso, que muitos autores denominam os direitos de primeira geração como “negativos” cujo principal objetivo consistia na abstenção do Poder Público face às garantias individuais dos cidadãos.

 Tais conceitos surgiram na fase de transição do Antigo Regime (marcado pelo poder ilimitado do monarca absolutista e pela insegurança acerca dos critérios de ingerência na vida privada dos cidadãos) para o Estado liberal (alicerçado pelo modo de produção capitalista, pela separação e delimitação dos poderes e pela ascensão da classe econômica burguesa).  Em relação ao tema, cite-se, uma vez mais, Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p. 54):

Os direitos fundamentais, a menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras constituições escritas, são o produto peculiar (...) do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do individuo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual face ao seu poder.

 

Em assim sendo, com os direitos individuais houve a definição dos bens jurídicos socialmente relevantes e as sanções aplicadas em caso de lesão a tais bens. Sedimentou-se, a partir de então, a difundida concepção de que, “tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido”, tal análise, define bem o princípio da legalidade que, por sua vez, defende a não existência de crimes sem lei anterior que o defina.

Pode-se afirmar, então, que o surgimento dos bens juridicamente relevantes para a sociedade – bem como a limitação do âmbito de atuação estatal na vida privada dos indivíduos – foram importantes teses encampadas pelo movimento iluminista do século XVIII. Em relação ao princípio da legalidade, convém mencionar entendimento trazido por Nilo Batista (2005, p. 67):

O princípio da legalidade, também conhecido por “princípio da reserva penal” e divulgado pela fórmula “nullum crimen nulla poena sine lege”, surge historicamente com a revolução burguesa e exprime, em nosso campo, o mais importante estágio de movimento então ocorrido na direção positivamente jurídica e da publicização da reação penal. Por um lado resposta pendular aos abusos do absolutismo e, por outro lado, afirmação da nova ordem, o princípio da legalidade a um só tempo garantia o indivíduo perante o poder estatal e demarcava este mesmo poder como espaço exclusivo da coerção penal.

 

            Sob esse prisma, pode-se afirmar que o movimento iluminista é um dos responsáveis pela delimitação da ingerência do poder público na vida privada dos cidadãos bem como pela estipulação dos bens jurídicos suscetíveis de tutela pelo Estado (no caso, bens de natureza eminentemente individualistas, tais como a liberdade, a propriedade etc). Com base em tal perspectiva, o Direito penal surge como mecanismo de atuação garantidor da efetiva tutela de tais direitos. Tal atuação, por sua vez, passou a ser previamente positivada em lei, a fim de se garantir uma sanção justa e proporcional ao “valor social” do bem lesado.

Como exemplo de direitos de natureza individual tutelados pelo ordenamento pátrio, podemos citar o direito a vida, ao patrimônio, à liberdade de expressão, de crença religiosa, etc.

 

1. 2.2.  Novos Direitos

 

 Paralelo ao desenvolvimento do modo capitalista de produção, novas camadas sociais passaram a surgir e, com elas, a reivindicação por melhores condições de trabalho e de sobrevivência. Surge, então, a dicotomia burguesia-proletariado bem como a conquista de novos valores jurídicos a serem tutelados pelo ordenamento jurídico quais sejam, os direitos sociais de caráter marcadamente social.

Pode-se afirmar, então, que a proteção a bens jurídicos eminentemente individuais tiveram a importante função de delimitar o âmbito de atuação do monarca no Antigo Regime. Ocorre que, com o passar do tempo, tal função quedou-se insuficiente diante dos novos fatores político-sociais resultantes do surgimento de uma sociedade de classes.

As tensões sociais do século XIX deram origem a uma série de movimentos políticos, tais como o marxismo, anarquismo etc. Juridicamente, tais tensões tiveram a importante função de assegurar direitos e garantias fundamentais no bojo das constituições (que antes só tratavam dos direitos individuais, ou seja, o direito à vida, liberdade, patrimônio etc.).

A valoração de novos bens jurídicos dignos da tutela penal encontra guarida diante da crise do liberalismo econômico e com o advento do Estado Social. Nesse contexto histórico, o abstencionismo defendido pelo modelo liberal quedou-se insuficiente no controle de todas as demandas sociais acarretando, assim, na necessidade de uma efetiva intervenção estatal com o fulcro de coibir abusos do poder econômico e amenizar os contrastes sociais decorrentes da concentração de riquezas. Sob esse panorama originado no século XIX e sedimentado no século XX, bens jurídicos de natureza coletiva foram conquistados, tais como os direitos trabalhistas, de educação, saúde, etc.

Ainda no século XX – caracterizado por um período pós-industrial e pelos crescentes avanços científicos e tecnológicos – houve o surgimento de novos paradigmas de atuação social e novos objetos de proteção jurídica. Nessa esteira, formam-se novos grupos com diferentes objetos de pleito; ou seja, a dicotomia burguesia-proletariado deixou de ser o único panorama político de então, surgindo, assim, novos valores jurídicos dignos de proteção e de sanção estatal. Como exemplo de tais valores, há proteção a grupos minoritários, tais como os étnicos, de gênero etc; aos hipossuficientes, tais como o consumidor bem como grupos que visam proteção ao meio ambiente. Com base em tal entendimento, cite-se trecho de dissertação de Fábio Roque Araújo (2009, p. 91):

Em suma, a emergência destes novos grupos sociais traz novas demandas a serem solucionadas pela sociedade. Sob a perspectiva do Direito Penal, pode-se afirmar que esta nova conjuntura social assinala o aparecimento de novos bens jurídicos. Sem embargo, se parte do pressuposto de que bem jurídico, em matéria penal, são interesses ou valores tutelados pelo Direito, pode-se afirmar que este novo contexto social faz emergir novos interesses e valores, razão pela qual surgem novos bens jurídico-penais.

 

Frise-se, contudo, que tais grupos não defendem o recrudescimento da reprimenda penal, tão pouco propõem o fim do garantismo e dos princípios humanizadores no que concerne à intervenção estatal na esfera de vida dos cidadãos, o que se defende é uma abrangência do que se entende por bem jurídico, deixando este de ter enfoque meramente individualista, passando a proteger bens de natureza coletiva e transindividual. Nesse sentido, faz-se, uma vez mais, menção, ao que afirma Fábio Roque Araújo (2009, p.90), nos termos em que seguem:

Sob esta perspectiva, referidos grupos sociais defendem a subsistência da intervenção penal. Concordam, todavia, com as críticas lançadas pelos abolicionistas e demais adeptos das teorias deslegitimadoras no que concerne à seletividade e ao caráter excludente da tutela penal. Para estes grupos, porém, a alternativa não se encontra na supressão da tutela penal, e sim em sua democratização, isto é, sua re-legitimação, mediante um processo de superação do paradigma seletivo que orienta a intervenção penal.

 

            De acordo com esses novos segmentos, o direito penal tem a precípua função de proteger os bens jurídicos de interesse social, e não a de garantir privilégios econômico-patrimoniais das classes tidas como “privilegiadas”, em prejuízo às mais abastardas. Com base em tais premissas, pode-se afirmar que tais grupos defendem a existência do direito penal como último mecanismo de atuação do Estado a fim de se reprimir práticas contrárias à proteção dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento, tal posicionamento, portanto, não se coaduna com o defendido pelos abolicionistas, defensores da supressão do sistema penalista do ordenamento jurídico.

Para os abolicionistas, o direito penal pauta-se em critérios “seletistas” onde se vigora a proteção dos interesses econômicos de uma minoria. Para os adeptos dessa teoria, a persecução criminal possui natureza degradante e pouco efetiva no que se refere à redução dos índices de criminalidade, a proposta dessa corrente de pensamento consiste, pois, na supressão do direito penal enquanto mecanismo mantenedor de um sistema exclusivista.

            Em âmbito diametralmente oposto, os defensores do recrudescimento da reprimenda penal, (por alguns, denominados de “maximalistas” ou “punitivistas”), defendem uma maior ingerência estatal a fim de coibir práticas delitivas. Tais posicionamentos foram denominados, por alguns doutrinadores – a exemplo de Aury Lopes Junior – como “Movimento de Lei e Ordem”, cujo objetivo assenta-se na proliferação de tipos penais bem como no recrudescimento das sanções aplicadas. Contrário a tal discurso, cumpre fazer menção a entendimento plasmado por Aury Lopes Junior (2007. p. 17)

“O discurso da lei e da ordem conduz a aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menos custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitência, pois é mais barato excluir e encarcerar do que restabelecer o status de consumidor, através de políticas públicas de inserção social. ”

 

 Outro fator que merece destaque ao se analisar os movimentos “punitivistas” do direito penal, refere-se ao fato de seus defensores rechaçarem qualquer posicionamento que associe as práticas delitivas como conseqüência de problemas de ordem social, tais como a concentração de renda ou aumento dos índices de desemprego. Sob tal ponto de vista, cite-se Ranieri Mazzilli Neto (2007, p.21):

Outro aspecto marcantes dos movimento da Lei e Ordem é afastar qualquer relevância à questão social como concausa da criminalidade. Para o Law and Order a opção pelo crime e estritamente pessoal, trata-se de um desvio individual, o que justifica as concepções retributivo-aflitivas em lugar de medidas preventivas. A idéia de que a miséria e a pobreza nada têm a ver com a criminalidade faz-se recorrente no movimento de Lei e Ordem. Isso se deve, a nosso sentir, àquela concepção que mistura o direito com a moral e leva ao estereótipo do criminoso como a encarnação do mal, como aquele que se desviou do bom caminho. Nesse passo, os direitos fundamentais não se aplicariam aos criminosos suspeitos.

 

Ainda com base em tal percepção, cumpre fazer menção à teoria do “direito penal do inimigo”, propagada na década de 80, tendo, Günther Jakobs, como seu maior expoente. Em defesa de sua tese, Jakobs cita a existência de um “Contrato Social” – tal como defendia Thomas Hobbes – todo aquele que infringe as regras estabelecidas por esse contrato, afrontando de forma contundente os bens tutelados pela sociedade, deverá ser tratado como um “inimigo”, sujeito a severas punições por parte do sistema jurídico. De acordo com o autor, aquele que descumpre as regras estabelecidas pelo “pacto social” abdica de suas prerrogativas de cidadão, tornando-se um mal à sociedade.

            Nesta senda, é notória a distinção entre os que apregoam o recrudescimento da reprimenda penal com os que defendem a expansão de novos valores pelo sistema normativo. Nesse diapasão, os novos paradigmas de atuação estatal não desprezam, de forma alguma, a existência de princípios garantistas ou os de ultima ratio.  Não se trata, pois, de defesa a sanções mais rígidas ou a uma ingerência mais constante do sistema penal, trata-se, tão somente, da existência de novos bens jurídicos sujeitos à tutela estatal, seja na esfera administrativa, cível penal, etc.

Não há duvida, contudo, na dificuldade encontrada pelo legislador ao estabelecer, com limites objetivos, quais seriam esses “novos” bens jurídicos dignos de proteção e quais os atos ilícitos sujeitos à sanção por parte do Estado. Tal dificuldade repousa no fato de que, em uma sociedade pós-industrial, a lesão a determinados bens jurídicos muitas vezes vem mascarada por um propenso ideal de “desenvolvimento” tecnológico e pela falsa percepção de que, a aplicação sanções a determinados atos configuraria como uma ameaça à expansão cientifica e tecnológica. Sob tal perspectiva, convém mencionar entendimento plasmado pela professora Maria Auxiliadora Minahim: (2005, p. 50)

O direito penal tradicional cuidava de bens eminentemente individuais, egoísticos, no dizer de Pablo José da Costa Júnior, como a vida, a saúde, o patrimônio, a honra, cujas lesões eram facilmente identificadas em sua casualidade e extensão. Nas ultimas décadas, a revolução tecnológica provocou uma profunda transformação na sociedade e, conseqüentemente, alterou a formatação da criminalidade que aparece cada vez mais imbricada com atividades lícitas e cuja lesividade é fragmentada e de pouca visibilidade.

 

            A autora enfatiza a posição jurídica da doutrina no que concerne à atuação do direito penal em casos de lesão a bens de caráter difuso. Para ela, alguns doutrinadores defendem a expansão dos bens tuteláveis pelo Estado (é o que se denomina “realinhamento da dogmática”), sem, contudo, abdicar dos princípios garantistas; outros propugnam pela conservação das garantias individuais, não considerando os bens difusos dignos da tutela penal; uma terceira corrente defende a “flexibilização e renúncia” dos direitos iluministas, cedendo lugar para os direitos da pós-modernidade, ou seja, direitos de toda a coletividade, de caráter transindividual, como exemplo de tais interesses, cite-se o direito ao meio ambiente equilibrado, o direito à paz, entre outros.   

 

2. Meio Ambiente e a proteção Penal

 

Como exemplo contundente dos novos bens sujeitos à defesa pelo ordenamento jurídico, destaca-se o meio ambiente. E o Direito Penal Ambiental surge, portanto, com o objetivo de proporcionar a proteção deste.

A sociedade industrial sempre utilizou os recursos ambientais a fim de garantir uma maior produtividade econômica, o que ocorre, porém, é que tal utilização acarretou, com o passar dos anos, em uma degradação desenfreada de tais recursos gerando um desequilíbrio ecológico e, por conseqüência, em riscos de vida à população.

Ocorre que, em que pese a sociedade industrial ter por égide um sistema exclusivista – em que uma minoria é detentora dos meios de produção e do bem estar sócio-econômico – o mesmo não há de se falar no que concerne às conseqüências da destruição dos recursos naturais; ou seja, as conseqüências da degradação ambiental são de caráter geral, atingindo à coletividade como um todo e, é por esse motivo, que é imprescindível a atuação do Estado na tutela do meio ambiente. É o que se depreende do entendimento plasmado por Alessandra Prado (2010, p.25):

A intervenção humana no meio ambiente e os respectivos problemas por ela gerados não são recentes, mas alcançaram níveis alarmantes, em função de fatores econômicos e políticos. A alteração do modo de produção tem implicação direta sob a transformação do meio ambiente. O acúmulo da riqueza e, em função disso, a maior produtividade foram fatores que impulsionaram a Revolução Industrial. A partir de então, acelera-se a produção de resíduos, consome-se cada vez mais energia e matéria-prima, aumenta-se a presença de elementos estranhos na composição da água, da atmosfera e do solo e multiplicam-se as fontes de ruído.

 

Ainda em relação à classificação do bem jurídico ambiental sujeito à proteção do Estado, cumpre mencionar a sua natureza indivisível – não pode ser atribuído a pessoas específicas – e seu caráter difuso, o que significa dizer que, tais interesses são utilizados de forma coletiva, não havendo como se identificar seus interessados (é o que a doutrina denomina como interessados “indetermináveis”).

Em assim sendo, poder-se-ia afirmar que a lesão ao bem jurídico ambiental acarreta em prejuízo a toda a coletividade logo, não há a necessidade de haver uma relação jurídica entre os interessados. Em relação ao tema, cite-se José Marcelo Vigliar (2005, p. 30):

Realmente, há interesses que prejudicam todas as pessoas de forma indivisível. A existência da pessoa é condição suficiente para que se coloque entre os interessados, saiba ou não, concorde ou não com essa condição. Há interesses que pairam acima das condições agregadoras do individuo. Há interesses que existem e prescindem da consideração acerca de acordos políticos, preferências religiosas, sistema jurídicos, etc. Basta que pensemos no meio ambiente e na enorme agitação que o tema vem provocando no planeta. Todos os seres humanos – desejem ou não – são titulares desse interesse indivisível.

 

            Nessa esteira, é imprescindível se fazer uma breve distinção entre os interesses indivisíveis difusos (em que o Direito Ambiental encontra guarida) e os direitos indivisíveis de natureza coletiva, isso porque, em que pese não haver como se identificar individualmente os detentores de interesses coletivos, estes são ao menos “determináveis”: trata-se de interesses de uma determinada categoria, grupo ou classe.

Logo, nos direitos coletivos há uma relação jurídica entre os interessados, ou seja, faz-se necessário a existência de um vínculo jurídico precípuo à ocorrência da lesão para que ocorra a legitimidade na defesa de tais interesses.

 

2. 1. O Fenômeno da constitucionalização do Direito Ambiental e suas diretrizes normativas

 

A partir da década de 60 do século XX, e, diante da ingerência desregulada da sociedade industrial no meio ambiente, causando seu potencial desequilíbrio, iniciou-se um movimento de âmbito internacional com o fulcro de tentar conciliar o avanço econômico, com a existência de um meio ambiente sadio. Passou-se então, a haver legislações e acordos internacionais específicos acerca do tema, bem como um processo de “constitucionalização” do direito ambiental ratificando a sua proteção pelo ordenamento jurídico.

Partindo-se de uma análise histórica acerca da proteção jurídica ao meio ambiente, pode-se perceber que não havia, antes do advento da Constituição de 1988, um sistema normativo direcionado à proteção de tais interesses. Desta feita, o meio ambiente era tutelado de forma meramente incidental já que, até então, o sistema normativo pátrio não tutelava bens jurídicos de natureza difusa. Com base em tal premissa, a proteção penal do meio ambiente alicerçava-se em um sistema normativo marcadamente individualista através de imputação de sanções àqueles cujos atos causassem danos à propriedade privada, à liberdade etc.

Apenas com a Constituição Federal de 1988 o ordenamento jurídico brasileiro passou a tratar a matéria ambiental de forma direta e especifica, antes do advento da carta política vigente, não havia uma preocupação direta com a tutela de tais interesses, tratando-a, apenas, de maneira incidental, tal como proteção a terras e minas de propriedade da União (constituição de 1891), a monumentos históricos, artísticos e urbanísticos (constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967). É o que sustenta Alessandra Prado (2000, p. 49):

Até aqui, nenhuma das Constituições havia previsto a tutela do meio ambiente, enquanto bem jurídico fundamental, numa concepção global, que visasse a sua conservação, pois, ou se adotou uma feição apenas liberal para o Estado, protegendo valores individuais, ou se adotou uma feição também social, que se referia ao meio ambiente indiretamente, por meio dos recursos naturais ou do patrimônio histórico e artístico, considerando-os enquanto bem de domínio público, como fez, por exemplo, a Constituição de 1934 com relação aos lagos, ilhas fluviais e lacustres.

 

A Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre o “meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado” como direito de todos, prevê a conciliação do desenvolvimento econômico diretamente alinhado com a preservação do ecossistema, garantindo, assim, a melhoria do modo de vida da população. Sob tal panorama, pode-se afirmar que a concepção de que a preservação ambiental não se coaduna com o desenvolvimento sócio-econômico vem sendo paulatinamente superada e, é com base em tal linha de pensamento que a atual Constituição brasileira preceitua, em seu art. 170, a “defesa do meio ambiente” como um dos princípios basilares da ordem econômica.

Nesta senda, construíram-se, em âmbito internacional, teorias e princípios com o intuito de traçar as diretrizes básicas do processo de proteção ambiental no atual contexto social, político, econômico, jurídico etc. Dentre tais princípios, destaca-se o do desenvolvimento sustentável, consagrado, inclusive na Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano de 1972, em seu art. 11, conforme se depreende a seguir:

Art. 11 - As políticas ambientais de todos os países deveriam melhorar e não afetar adversamente o potencial desenvolvimentista atual e futuro dos países em desenvolvimento, nem obstar o atendimento de melhores condições de vida para todos; os Estados e as organizações internacionais deveriam adotar providências apropriadas, visando chegar a um acordo, para fazer frente às possíveis conseqüências econômicas nacionais e internacionais resultantes da aplicação de medidas ambientais.

 

A teoria do “desenvolvimento sustentável” vem angariada, ainda, na declaração sobre meio ambiente e desenvolvimento, do Rio de Janeiro, em conferência ocorrida em 1992, como se analisa em seu princípio 12, in verbis:

Princípio 12 - Os Estados devem cooperar para o estabelecimento de um sistema econômico internacional aberto e favorável, propício ao crescimento econômico e ao desenvolvimento sustentável em todos os países, de modo a possibilitar o tratamento mais adequado dos problemas da degradação ambiental. Medidas de política comercial para propósitos ambientais não devem constituir-se em meios para a imposição de discriminações arbitrárias ou injustificáveis ou em barreiras disfarçadas ao comércio internacional. Devem ser evitadas ações unilaterais para o tratamento de questões ambientais fora da jurisdição do país importador. Medidas destinadas a tratar de problemas ambientais transfronteiriços ou globais devem, na medida do possível, basear-se em um consenso internacional.

         A partir da concepção de desenvolvimento sustentável, novos princípios passaram a surgir com o escopo de definir as bases normativas em que deve estar alicerçada a proteção ao meio ambiente bem como as esferas de atuação em que o Estado deve se pautar a fim de garantir a efetividade de tais interesses.

Cite-se, como exemplo de princípios do direito ambiental, o da “prevenção” que defende a proteção jurídica antes da incidência do dano, através de mecanismos que prevejam a iminência do risco, prevenindo-o. Outro princípio amparado pelo direito ambiental é o da precaução, este, por sua vez, encontra fundamento na Declaração do Rio (ECO/1992), como se pode notar abaixo:

Para proteger o meio ambiente, medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados, segundo suas capacidades. Em caso de riscos de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a prevenir a degradação do meio ambiente.

 

            A precaução se distingue da prevenção, já esta última ampara-se na ocorrência de risco certo, ou seja, há a certeza científica da existência dos riscos advindos de determinadas práticas. O princípio da precaução, por sua vez, preocupa-se com o risco tido como “incerto”, também chamado de “perigo potencial”, em que não há a certeza da existência do dano ao ambiente, é o que a doutrina denomina de in dúbio pro natura.

Ainda com fulcro no princípio da precaução, alguns autores sustentam a tese de que, em caso de incerteza científica sobre a possibilidade de ocorrência de lesão, há a possibilidade de inversão do ônus da prova, cabendo ao réu o dever de provar que suas atividades não geram lesão ao bem jurídico ambiental.

Pode-se afirmar, então, que o século XX teve um importante marco no que se refere à atuação pública em matéria ambiental, a antiga concepção de que a tutela ao meio ambiente era elemento configurador de retrocesso econômico foi, paulatinamente, superada pela teoria do desenvolvimento sustentável. No mais, diante das alterações climáticas e da escassez dos recursos ecológicos, os Estados passaram a perceber que, em que pese o acesso aos frutos do sistema econômico sejam destinados a uma minoria, os resultados obtidos com a degradação ambiental são de caráter democrático e transfronteiriço. A partir de tal percepção, os organismos internacionais passaram a cobrar atitudes enfáticas dos poderes públicos – em especial dos países tidos como “desenvolvidos” – a fim de que houvesse uma diminuição da degradação do meio ambiente.

            Nesse contexto, o Brasil surge, de forma expoente, no que se refere à tutela jurídico-normativa ao direito ambiental – estabelecendo um capítulo específico sobre o tema na Constituição de 1988 – caracterizando-o como “bem de uso comum do povo”, salientando-se ainda, a possibilidade de proteção penal a tais direitos, como se observa em seu art. 225, § 3º.

            Saliente-se que, em âmbito normativo, há a competência legislativa concorrente no que concerne à tutela do meio ambiente. Em assim sendo, a Carta Política de 1988 consagra a possibilidade de todas as entidades da federação poder legislar em matéria ambiental, competindo à União editar normas de caráter geral a serem suplementadas pelos demais entes da administração, quais sejam, os estados e o distrito federal, é o que se depreende do art. 24 da Constituição.

 Frise-se, ainda no que tange a competência legislativa concorrente em matéria ambiental, o papel do município, cuja atuação restringe-se a assuntos de interesse local, de forma suplementar à legislação federal e estadual, de acordo com o que rege o art. 30 do texto constitucional. Com base em tal premissa, cite-se entendimento jurisprudencial respaldado pelo STJ no RESP 29.299/RS, in verbis:

Constitucional. Meio Ambiente. Legislação Municipal Supletiva. Possibilidade.

Atribuindo, a Constituição Federal, a competência comum à União, aos Estados e aos Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, cabe, aos Municípios, legislar supletivamente sobre a proteção ambiental, na esfera do interesse estritamente local

A legislação Municipal, contudo, deve se constringir a atender as características próprias do território em que as questões ambientais, por suas particularidades, não contêm o disciplinamento consignado na lei federal ou estadual. A legislação supletiva, como é cediço, não pode ineficacizar os efeitos da lei que pretende suplementar.

 

Ressalte-se, ademais, que a competência legislativa concorrente em matéria ambiental – fenômeno que recebeu em sede doutrinária a alcunha de “federalismo de cooperação” – não atinge o âmbito penal, haja vista a exclusividade da União no que concerne à competência legislativa desse ramo do direito, conforme especifica o art. 22, I, da Carta Magna.

 

2.2. Necessidade da tutela penal ao meio ambiente

            Conforme analisado até então, diante do aumento dos níveis de degradação ambiental e do potencial risco à vida e à saúde da população, o meio Ambiente passou a ser alvo de proteção jurídica, seja por intermédio das declarações internacionais, seja através das proteções advindas do próprio ordenamento, por meio a atuação legislativa. Frise-se, contudo, que a ingerência penal na tutela de tais interesses deve estar amparada pelo princípio da ultima ratio, ou seja, deverá ser o último mecanismo de controle estatal na defesa do meio ambiente, tendo sempre como base os preceitos do garantistas.

            Parte da doutrina refratária à atuação penal para proteção do meio ambiente propugna que, tal ingerência estatal carece de efetividade prática, fazendo com que os instrumentos de cunho administrativos sejam desconsiderados. De acordo com esse entendimento, a criminalização de lesões ao meio ambiente carece de efetividade prática, possuindo cunho eminentemente político, qual seja, o de demonstrar à sociedade (interna ou internacional) a atuação legislativa em matéria ambiental. Com base em tal posicionamento, cite-se Winfried Hassemer: (2007, pag. 226)

A tarefa da proteção penal ecológica por parte do nosso Direito Penal Ambiental está mais para o fracasso do que para a realização. Esse Direito Penal carrega a característica da legislação “simbólica”: O ganho que dela se pode esperar é menor do que a proteção penal dos bens jurídicos (os déficits da execução não são patentes apenas, a partir de hoje, para os peritos e responsáveis), mas, sim, de muito mais a demonstração das prestezas executiva e legislativa e da capacidade de ação. Isso é bom para a “aceitação” política, mas ruim para a proteção do meio ambiente. Alterações penais simbólicas são impressionantes e possuem custos oportunos. Elas desoneram a política ambiental da pressão de buscar e aplicar medidas efetivas, mas caras e decisivas para a universalidade destinadas à garantia e manutenção dos bens jurídicos ameaçados. Quem toma o Direito Penal não como “ultima ratio”, mas como “prima ratio” ou, até mesmo como “sola ratio” da política interna, torna as coisas muito fáceis e desiste, antecipadamente, da busca por medidas de ajuda de natureza mais próxima dos problemas.

 

            É inegável a importância da atuação administrativa como mecanismo de controle e prevenção dos riscos causados ao meio ambiente, seja através de estudos de impacto ambiental, de licenciamentos ou sanções etc. pode-se afirmar, assim, que a tutela administrativa é o meio de proteção que deve imperar quando se trata de Direito Ambiental.  

 Entretanto, em que pese a efetividade do direito administrativo no que concerne à proteção e prevenção dos interesses de natureza ambiental, este não pode ser o único meio de controle estatal na tutela à bens jurídicos. Nessa esteira que o direito penal surge como o meio de atuação mais incisivo no combate à práticas lesivas ao meio ambiente. Tal instituto deverá ser usado com o fulcro de combater lesões graves, ou de reprimi-las (haja vista que a pena não possui caráter meramente retributivo) quando a utilização de todos os outros meios jurídicos quedarem-se insuficiente na coibição da pratica delitiva. Com base nessa premissa é ilegítima a utilização do direito penal quando há outros mecanismos de solução do conflito. Com base em tal posicionamento, vide orientação seguida por Alessandra Prado: (2000, p. 90)

É preciso procurar um equilíbrio entre a função utilitarista ou instrumental do direito penal – que visa influir efetiva, direta e imediatamente sobre os comportamentos, ou seja, realizar uma tutela real prevenindo e reprimindo delitos mediante o cumprimento das normas jurídico-penais – e a simbólica – que cria uma expectativa normativa de proteção do bem jurídico, expressando juízos de desaprovação e reprovação de terminados comportamentos (Sanguiné: 1992), pois, sem haver uma regulamentação eficaz da matéria no âmbito jurídico-administrativo, o direito penal surge para esconder a inoperância administrativa, e só atuará de forma simbólica.

             

No que tange ao papel do legislador penal, não há duvidas da sua dificuldade em delimitar quais práticas estão sujeitas à tutela penal bem como quem se insere como sujeito ativo destinado à sanção. Isso por que, com os avanços tecnológicos e com as constantes alterações na forma de intervenção no meio ambiente, a delimitação e conceituação do que o Estado entende como ato lesivo ao bem jurídico ambiental acarretaria em uma norma de pouca aplicabilidade no ordenamento, tendo em vista as constantes mutações no que concerne à intervenção humana no meio em que vive.  

Sob tal premissa, e tendo como justificativa a dificuldade em se delimitar as atividades sujeitas a danos sócio-ambientais, optou, o legislador, pela utilização da norma penal em branco no que concerne à proteção a esses bens jurídicos (não só os de natureza ambiental, como saúde, relações de consumo, sistema tributário, etc.). Entende-se por norma penal em branco, aquela em que não há uma descrição detalhada da conduta punitiva, há, então, a necessidade de sua complementação por meio de outras normas, de natureza legal ou meramente administrativa, como é o caso, por exemplo, das resoluções do CONAMA.

É inegável, contudo, que a utilização da norma penal em branco como mecanismo que busque a efetividade do sistema de proteção ambiental deve ser analisada com certo grau de razoabilidade no que tange à sua “complementação”, para que não haja uma afronta ao princípio da legalidade (nulla poena, nullum crimen sine lege) o que acarretaria, por consequência, um sistema normativo carente de segurança jurídica.

Outro ponto a ser destacado no que diz respeito à proteção penal ao meio ambiente é o caráter transfronteiriço de tal bem jurídico, o que significa afirmar que, não raro, a prática predatória do bem jurídico de natureza ambiental não se limita a um único Estado, extrapolando as fronteiras da nacionalidade do agente causador do dano. Como exemplo do caráter multiestatal do desequilíbrio causado ao meio ambiente, cite-se o aquecimento global, as chuvas ácidas, a poluição atmosférica, a extinção de espécies etc.

Sob tal panorama, torna-se imprescindível a cooperação internacional visando à sedimentação de um Direito Ambiental Internacional bem como a estruturação de seus mecanismos de atuação, tanto preventiva quanto coercitiva, no que tange à prática de lesões de caráter transfronteiriço.

Frise-se, demais disso, a importante função das declarações e resoluções enunciadas pelas Nações Unidas e assinadas por países signatários no que se relaciona à definição das premissas básicas em que o Estado deve se pautar para a tutela do bem jurídico ambiental, a exemplo da Declaração sobre o Meio Ambiente Humano de Estocolmo, de 1972 e a Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. No que tange a esta última, convém citar seu princípio 2, como exemplo da menção internacional dos danos transfronteiriços ao meio ambiente, nos termos em que segue:

Princípio 2: Os Estados, de conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.

 

            Contudo, embora os tratados internacionais funcionem como vetores no que se relaciona à atuação legislativa no âmbito de proteção estatal ao meio ambiente, tais declarações carecem de força coercitiva em âmbito internacional, ou seja, não há uma legislação internacional que coíba as práticas predatórias ao meio ambiente por parte dos Estados. Com base em tal posicionamento, cumpre fazer menção a entendimento sedimentado por Alessandra Prado: (2010, p. 54)

Sob o enfoque penal, o Estado que desejar sancionar o responsável por um crime de poluição transfroteiriça terá que realizar investigações, processar, julgar, condenar e exigir o cumprimento da pena do poluidor, desde que sua legislação preveja o crime de poluição, cominando a respectiva pena. Se o Estado onde se localiza a fonte poluidora não tipifica o crime, não poderá puni-lo em respeito ao princípio da legalidade. No que diz respeito ao Estado estrangeiro atingido, este encontrará dificuldades para punir o crime, uma vez que grande parte das provas encontra-se em território estrangeiro, bem como possivelmente, a pessoa que perpetrou o delito. Dessa forma, a harmonização das legislações e a cooperação entre os Estados são instrumentos importantes no combate à poluição transfronteiriça.

 

Vislumbra-se, destarte, que, a despeito de ser este um problema mundial, há carência de regulamentação da matéria em âmbito internacional, de modo a conferir razoável uniformidade às legislações nacionais que visem a coibir lesões ambientais.

 

Considerações Finais     

            O Direito Penal tem a importante função de garantir a limitação da atuação estatal na esfera da vida particular dos cidadãos. Sob essa perspectiva, não há mais de se falar em violação à vontade divina ou sujeição às penas culminadas de acordo com o livre critério do monarca. Em assim sendo, com o advento do Estado de Direito, as punições estatais passaram a ter por base critérios pré-estabelecidos em âmbito legislativo, pressuposto basilar de um direito penal garantista.

            Sob tais perspectivas, a expansão de novos valores tuteláveis pelo direito penal não deve se alinhar com a violação de suas garantias fundamentais. Nessa esteira, a proteção penal ao direito ambiental pauta-se nos critérios da intervenção mínima, trata-se, pois, do último meio de intervenção do Estado com o fim de coibir práticas lesivas a tais bens jurídicos.    

           Nesse diapasão, o sistema jurídico criou um arcabouço principiológico com o intuito de delimitar o âmbito de atuação do aplicador do direito no que tange à esfera de vida privada dos cidadãos, a exemplo dos princípios do in dubio pro reu, da proporcionalidade, insignificância etc.

            No que tange ao princípio da legalidade, cumpre mencionar a sua natureza mitigada no que concerne à proteção ambiental, haja vista que, em virtude da complexidade dos fatores que causam a degradação a tal bem jurídico (aliado ao paulatino desenvolvimento cientifico e tecnológico) há uma certa dificuldade em estipular com precisão todos os atos lesivos ao meio ambiente. Por esse motivo, optou o legislador pela aplicabilidade de normas penais em branco, sujeitas à complementação por outros meios, de caráter legal, administrativos etc.

 Contudo, frise-se, a mitigação do princípio da legalidade não corresponde à sua extinção no que tange à proteção penal ambiental – haja vista haver prévia estipulação normativa (em especial a Lei 9.605/98) tratando da lesão a tais bens jurídicos – o que não ocorre é a especificação detalhada da extensão de tais lesões, para que não se incorra em uma ineficácia dos preceitos legislativos ora em análise.

Importante fazer menção, ainda, a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância em caso de lesões irrelevantes a bens de natureza ambiental. Tal instituto, contudo, ainda não está sedimentado nos tribunais (e nem é tratado de forma expressa pela Lei de crimes ambientais), haja vista a dificuldade em se mensurar as proporções que a lesão ao meio ambiente pode vir a acarretar. 

            Partindo-se do pressuposto que o Direito Penal ambiental pode se coadunar com os preceitos de um direito penal mínimo, o presente trabalho buscou traçar uma diferenciação entre as teorias que buscam o recrudescimento do jus puniendi estatal - tais como o a teoria do “direito penal do inimigo” – e a proteção de novos valores sociais que, por sua vez, ultrapassam a perspectiva individualista do Estado Liberal bem como os direitos de natureza social advindos com pleitos conquistados pela classe trabalhadora.

            Em assim sendo, o presente estudo buscou estabelecer uma análise superficial da aplicabilidade do direito penal ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, levando-se em consideração a proteção constitucional do respectivo instituto, elevado ao grau de direito fundamental logo, com aplicabilidade direta e imediata.

            Nesse desiderato, a proteção ao meio ambiente de todos os ramos do direito com o fim de obter uma maior eficácia no que concerne à limitação da prática predatória a tal bem jurídico. Por esse motivo, não é possível se desconsiderar a função do Direito Penal como mecanismo mais violento de intervenção Estatal, utilizado, portanto, quando todos os outros meios coercitivos mostrarem-se ineficazes à limitação das práticas de degradação. Sob esse prisma, não há de se falar em desconsideração das atividades de cunho administrativo, haja vista serem elas as de maior aplicabilidade no combate a lesões ambientais.

            Levando-se em consideração a necessidade de se obter uma maior eficácia em matéria de proteção ambiental, o presente artigo buscou trazer a mote a necessidade de uma integração legislativa em âmbito internacional, haja vista não ser incomum o fato de que as lesões a esses bens jurídicos ultrapassarem as fronteiras estatais. Sob esse panorama, os tratados celebrados pelos Estados têm a importante função de garantir o comprometimento destes no que tange ao combate às infrações ambientais, contudo, ainda não há a sedimentação de um Direito Internacional com o fim de garantir a aplicabilidade desses tratados.

            Ressalte-se, uma vez mais, que o Direito Penal não deve ser encarado como prima ratio para a coibição e punição de lesões ao meio ambiente, e sim, como a forma mais drástica de intervenção do Estado, utilizada quando todos os outros ramos do direito se tornarem insuficientes na limitação de tais práticas delitivas.

É, portanto, justamente em virtude do caráter mais incisivo de tutela jurídica, que o Direito Penal deve pautar-se em mecanismos agíeis e eficazes no combate às lesões ao meio ambiente, sem, contudo, desprezar os princípios garantidores de uma atuação humanista e fragmentária.  

  

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Sobre a autora
Flávia Grazielle da Silva Araújo

Advogada. Pós graduada em Direito Civil. Professora de Direito Civil<br>

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