Princípio da intervenção mínima e o crime de deserção na Justiça Militar do Estado

01/02/2016 às 10:50
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Com a evolução do Direito Penal e após a Constituição de 1988, fica claro que certos crimes não precisam ser penalizados pelo Direito Penal Militar, bastando a sanção disciplinar, como é o caso do crime de deserção na justiça militar do estado.

O crime de deserção é elencado no artigo 187 do Código Penal Militar, tipificando como crime a conduta do militar que se ausenta mais de oito dias sem licença de sua unidade ou lugar que deveria permanecer. Ocorre que, como veremos no presente artigo o código penal militar foi pensado e elaborado para as forças armadas, sendo totalmente desnecessário a aplicação do crime de deserção aos policiais militares. Atualmente a Constituição traz como um dos princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, sendo portanto afrontoso a dignidade do ser humano passar por um processo criminal de forma desnecessária, além disso devemos lembrar do princípio da intervenção mínima que orienta de forma clara a aplicação do Direito Penal Militar tão somente quando os demais ramos do direito não forem suficientes.

O atual Código Penal Militar surgiu em outubro de 1969 através do Decreto-Lei n. 1.0001, entrando em vigência em Janeiro de 1970, o referido código foi elaborado em um período em que o país era governado por uma junta militar composta pelos integrantes das três forças armadas, portando notasse que o código penal militar traz resquícios autoritários da época da sua elaboração, diversos artigos perderam sua validade com a atual ordem constitucional vigente no pais.

 Em 1963 ainda com a vigência da Constituição de 1946 o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 297 que dizia:

“Oficiais e praças das milícias dos Estados, no exercício de função policial civil, não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a Justiça comum para julgar os crimes cometidos por ou contra êles.”

A súmula 297 do Supremo Tribunal Federal teve a aplicação até o ano de 1977, quando então o presidente General Ernertos Geisel elaborou um conjunto de Leis com alteração na Constituição vigente, que mudou a competência da Justiça Militar Estadual, que então passou a ter competência de julgar os policiais militares pelos crimes militares definidos em lei.

Na lição de Neves e Streifinger (2012, p. 44)

A Constituição Federal de 1967, mesmo com a Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969 ao tratar das Justiças Estaduais, continuou sendo muito abrangente para o foro castrense no âmbito dos Estados, visto que a alínea d do § 1ª do art. 144 dispunha apenas que a Justiça Militar estadual era constituída em primeira instância pelos Conselhos de Justiça e que tinham como órgãos de segunda instância o próprio Tribunal de Justiça, ainda arrimado a prevalência da Súmula 297 do STF. Ocorre que em 13 de abril de 1977, pela Emenda Constitucional n. 7 ( “Pacote de Abril de 1977”), esse dispositivo constitucional ganhou nova redação, agora mencionando que a Justiça Militar estadual, constituída em primeira instância pelos Conselho de Justiça, e, em segunda, pelo próprio Tribunal de Justiça, possuía competência para processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os integrantes das polícias militares, fazendo com que a Súmula em questão perdesse sua razão de existência.

Portanto fica claro que o atual código penal militar ao ser elaborado buscava proteger os bens jurídicos das Forças Armadas, alguns anos após sua elaboração a sua aplicação foi estendida a justiça militar do estado, porém os artigos continuaram os mesmos da época da sua elaboração, ou seja, com a mentalidade do legislador em proteger bens jurídicos das forças armadas.

 O legislador quando elaborou o crime de deserção do código penal militar pensava em punir o militar conscrito, aquele que encontra-se nas Forças Armadas de forma obrigatória, o que corrobora ainda mais o pensamento em questão é que o crime de deserção tem sua contagem de prescrição de forma diferenciada conforme o artigo 132 do CPM.

“Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo da prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta.”

A legislação que regula o serviço militar, Lei n. 4375/1964 determina que a obrigação para com o serviço militar se extingue aos 45 anos.

“Art 5º A obrigação para com o Serviço Militar, em tempo de paz, começa no 1º dia de janeiro do ano em que o cidadão completar 18 (dezoito) anos de idade e subsistirá até 31 de dezembro do ano em que completar 45 (quarenta e cinco) anos.”

Fica claro que o pensamento do legislador dos anos 60 ao elaborar o código penal militar era tão somente a proteção dos bens jurídicos das forças armadas.Com a elaboração da emenda constitucional 07 de 1977 é a entrada em vigor da Constituição de 1988 ambas mantiveram a aplicação do código penal militar na Justiça Militar do Estado.

Sendo a intervenção penal extremamente danosa na vida do ser humano, fez com que surgisse diversos princípios limitadores do direito punitivo estatal, dentre eles o princípio da intervenção mínima, já que o direito penal militar deve ser usado quando nada mais possa surtir efeito.

Segundo Rosseto (2012, p. 78) “Se as medidas extrapenais mantêm a ordem militar, devem esgotar-se todos os meios extrapenais de controle da hierarquia e da disciplina. A pena criminal implica graves restrições de direitos fundamentais.”

De acordo com Marreiros, Rocha e Freitas (2015, p.49)

De acordo com este princípio político-criminal, a definição de uma conduta como crime militar só poderia ser considerada penalmente justificada se inexistirem meios menos lesivos de tutelas dos bens jurídicos. Tais meios, inclusive, podem ser jurídicos ou não. Se porventura forem jurídicos, podem ser penais ou não penais. Enfim, o direito penal militar é ultima ratio. Assim, por exemplo, caso o direito disciplinar militar se mostrar suficiente para a proteção dos interesses vitais das Forças Armadas, o direito penal militar não pode ser usado legitimamente para tutelá-los.

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 Na lição de Neves e Streifinger (2012, p. 78)

O simples merecimento de pena, entretanto, limitado à exclusiva proteção de bens jurídicos, não basta para que se oriente a atividade legislativa na difícil tarefa de criminalizar condutas. Mais ainda, é preciso que haja necessidade da intervenção penal, ou seja, é preciso que a sanção penal seja o único meio eficaz à tutela do bem jurídico com dignidade penal.

De acordo com Bitencourt (2015, p. 54)

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controlo social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Assim, se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficiente medidas cíveis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio do sistema normativo, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito  revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

Na lição de Greco (2010, p. 77)

Concluindo, a vertente correspondente à natureza subsidiária do Direito Penal faz com que, primeiramente, sejam verificadas as demais hipóteses de intervenção (administrativa, civil etc.), para somente depois, aferida a sua influência, permitir a proteção dos bens jurídicos por meio do Direito Penal.

 Ao contrário do militar conscrito, que está militar contra sua vontade por se encontrar cumprindo o serviço militar obrigatório o militar estadual está nessa posição após árdua luta para aprovação em concurso público, como por exemplo no concurso para soldado da PMBA do ano de 2012, que teve 74.702 inscrito disputando apenas 2.000 vagas, sendo portanto a aplicação da penalidade imposta pelo direito administrativo disciplinar militar suficiente para reparar o mal causado.

Na Lei n. 7990/2001 - estatuto do policial militar do Estado da Bahia prevê sanção administrativa para o militar ausente.

Art. 28 - É considerado ausente o policial militar que, por mais de vinte e quatro horas consecutivas:

I - deixar de comparecer à sua organização policial militar sem comunicar motivo de impedimento;

II - ausentar-se, sem licença, da organização policial militar onde serve ou do local onde deva permanecer;

III - deixar de se apresentar no lugar designado, findo o prazo de trânsito ou férias;

IV - deixar de se apresentar à autoridade competente após a cassação ou término de licença ou agregação ou ainda no momento em que é efetivada mobilização, declarado o estado de defesa, de sítio ou de guerra;

V - deixar de se apresentar a autoridade competente, após o término de cumprimento de pena.

§ 1º - É também considerado ausente o policial militar que deixar de se apresentar no momento da partida de comboio que deva integrar, por ocasião de deslocamento da unidade em que serve.

§ 2º - Decorrido o prazo mencionado neste artigo, serão adotadas as providências cabíveis para a averiguação da ausência, observando-se os procedimentos disciplinares previstos neste Estatuto e/ou criminais. (GRIFOS NOSSO)

O policial militar da Bahia já pode ser punido pelo Direito Administrativo Disciplinar com uma ausência de apenas 24h então por quê instaurar um procedimento de deserção e punir alguém criminalmente quando outro ramo do Direito é suficiente.

Sendo assim é necessário uma análise do momento histórico que foi elaborado o Código Penal Militar e quem o legislador a época buscava atingir e qual bem jurídico visava tutelar. Sendo necessária uma análise dos Direitos Humanos e a evolução alcançada com a Constituição de 1988, sendo que essa mentalidade de punir em todas as esferas do direito não devem encontrar mais guarida devendo ser utilizada a sanção administrativa disciplinar já que a mesma é suficiente.

BIBLIOGRAFIA

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm

http://www.stf.jus.br/portal/cms/vertexto.asp?servico=jurisprudenciasumula

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4375.htm

Manual de direito penal militar/ Cícero Robson Coimbra Neves, Marcello Streifinger.-2. Ed.- São Paulo: Saraiva, 2012

Código penal militar comentado/ Enio Luiz Rossetto.-1.ed.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

Direito penal militar/ Adriano Alves Marreiros, Guilherme Rocha, Ricardo Freitas.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo; MÉTODO,2015.

Tradado de direito penal: parte geral 1/ Cezar Roberto Bitencourt.- 21. Ed. Ver., ampl. E atual.- São Paulo: Saraiva, 2015.

Direito Penal do Equilibrio: uma visão minimalista do Direito Penal/ Rogério Greco. 5ª.- Niterói, RJ: Impetus, 2010.

http://www.concursosfcc.com.br/concursos/govba112/estatistica_cidade_classificacao.pdf

http://www.pm.ba.gov.br/7990.htm

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Sobre o autor
José Osmar Coelho

Advogado, Especialista em Direito Militar na Universidade Cruzeiro do Sul e Especialista em Ciências Criminais na Universidade Cândido Mendes, Pós Graduado em Politica e Estrategia pela Universidade do Estado da Bahia em convenio com ADESG/BA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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