Sumário: 1. Introdução. 2. Acesso à justiça como garantia e direito fundamental. 3. Acesso à justiça como um direito humano: a luta pela cidadania e o movimento mundial de acesso à justiça. 3.1. O desenvolvimento do acesso à justiça no direito internacional, direitos humanos e Defensoria Pública. 3.2 O Acesso à justiça como um direito humano. 4. Limites ao acesso à justiça. 5. As três ondas renovatórias de Mauro Cappelletti e Bryant Garth: a Defensoria Pública como uma resposta à crise de acesso à justiça. 6. Conclusões.
1. Introdução
Hodiernamente, é inegável a importância conferida ao acesso à justiça, concebido como um direito básico, “certamente um dos mais relevantes direitos fundamentais, na medida da sua importância para a tutela de todos os demais direitos”2.
Não há dúvidas sobre o papel desempenhado pelo movimento de acesso à justiça sobre o desenvolvimento do processo (civil e penal; individual e coletivo) em todo o mundo, sendo necessária uma prévia compreensão do fenômeno para um adequado estudo da teoria do processo.
Nesse sentido, o presente artigo pretende fazer uma breve exposição de um dos aspectos do direito processual na atual metodologia jurídica, de modo a explicar as razões, a natureza jurídica e os limites da universalidade do acesso à justiça.
2. Acesso à justiça como garantia e direito fundamental
Conforme ressalta Wilson Alves de Souza, o conceito de acesso à justiça não pode ser examinado sob o enfoque meramente literal. Em outras palavras, não se pode concebê-lo como se significasse apenas o direito de postulação perante o Estado-juiz, como se fosse a mera “porta de entrada dos tribunais”3.
Para o citado autor, o acesso à justiça significa também o direito ao devido processo, compreendendo o direito às garantias processuais, julgamento equitativo (justo), em tempo razoável e eficaz. Assim, “se é indispensável a porta de entrada, necessário igualmente é que exista a porta de saída”, ofertando-se às partes envolvidas garantias como o contraditório, ampla defesa, julgamento em tempo razoável, fundamentação das decisões, eficácia das decisões etc.4.
Numa concepção ampla, a expressão pode ser empregada inclusive em situações totalmente externas às relações jurídicas processuais no âmbito do Poder Judiciário, identificando-se com o “acesso ao direito”. Em outras palavras, é possível falar em acesso à justiça fora do Poder Judiciário, já que o Direito não se esgota neste órgão. Sequer a relação jurídica processual se limita ao Poder Judiciário. Na teoria geral do direito, a palavra “processo” tem abrangência ampla, incluindo os modos pelos quais o direito disciplina sua própria criação. Todo meio dirigido à produção de uma norma jurídica (geral ou individual) pode ser denominado “processo”. E onde há processo deve haver participação, por força do princípio do acesso à justiça.
Assim, ao lado do processo legislativo, voltado à elaboração de normas de caráter geral, há o processo negocial, voltado à criação da norma pelos próprios sujeitos interessados, bem como o processo o administrativo e o jurisdicional, que consistem em formas autoritativas de edição de normas jurídicas particulares, através de atividade substitutiva.
A título exemplificativo, no âmbito da Defensoria Pública da União, há o chamado Processo de Assistência Jurídica (PAJ), instaurado a partir do comparecimento de qualquer pessoa ao órgão, requerendo a assistência jurídica. Cuida-se, portanto, de um processo de natureza administrativa, por meio do qual é realizada uma pesquisa socioeconômica do pretenso assistido, sendo, ao final, deferida ou indeferida a assistência. Caso deferida, passará o órgão a acompanhar o seu novo assistido; sendo indeferida, o PAJ será arquivado. Observe-se, portanto, a importância da participação do requerente ao formular o pedido de assistência jurídica no âmbito da Defensoria Pública da União, sendo-lhe ofertados todos os meios possíveis para justificar eventuais somas em seu patrimônio e gastos extraordinários, para que seja reconhecida a sua hipossuficiência. Nos casos de indeferimento da assistência jurídica, é cabível ainda recurso de ofício à Câmara de Coordenação da Defensoria Pública da União, independentemente de formalidades, bastando qualquer manifestação de insatisfação do pretenso assistido. Todas essas medidas foram construídas em atenção ao princípio do acesso à justiça.
Da mesma forma, as audiências públicas realizadas no âmbito dos órgãos do Poder Legislativo relevam, ao menos em teoria, a importância da participação direta da coletividade no processo de elaboração das normas jurídicas gerais e abstratas.
Em síntese, são três os principais sentidos da expressão “acesso à justiça”. No primeiro sentido, mais comum, significa o direito de acesso ao Poder Judiciário (ou seja, a mera “porta de entrada”). Num segundo sentido, consiste não apenas no direito de pedir a tutela jurisdicional, mas também ao uso da técnica processual adequada às necessidades do direito material. Finalmente, numa terceira acepção, representa um movimento dedicado à solução dos obstáculos relacionados com as dificuldades enfrentadas pelas pessoas hipossuficientes na concretização de seus direitos.
O problema do acesso à justiça originou-se da necessidade de integração das liberdades clássicas com os direitos sociais. O direito de acesso à jurisdição, pertencente ao autor e ao réu, consiste num direito à utilização de uma atividade estatal imprescindível para a efetiva participação do cidadão na vida social, o que afasta o seu caráter meramente formal e abstrato, como se fosse o simples direito de propor ação e de apresentar defesa. O direito de acesso à jurisdição não é indiferente aos obstáculos sociais que inviabilizam o seu exercício efetivo5.
Para Luiz Guilherme Marinoni, a questão do acesso à justiça propõe a “problematização do direito de ir a juízo – seja para pedir a tutela do direito, seja para se defender – a partir da idéia de que obstáculos econômicos e sociais não podem impedir o acesso à jurisdição”6.
Mas é possível ir adiante. Para além da eliminação dos óbices econômicos e sociais impeditivos, o direito de acesso à justiça não somente garante a todos o acesso ao Poder Judiciário, como também a técnica processual idônea à tutela do direito material7. Trata-se, portanto, de um direito essencial ao regime democrático, incidindo sobre o legislador – que fica obrigado a traçar estruturas e procedimentos adequados – e sobre o juiz – que deve compreender as regras processuais com base no direito de acesso à justiça.
Nesse sentido, entende Mauro Cappelletti que o acesso à Justiça surge de uma “dimensão social” do direito e da justiça, que representa uma tentativa de resposta aos problemas e crises derivados das profundas transformações das sociedades industriais e pós-industriais modernas, “nas quais o pedido de Justiça adquire um sentido cada vez mais decisivo para multidões cada vez mais vastas; de petição de igualdade não somente formal, senão real e efetiva igualdade de possibilidades ...]”8.
Para o autor, o problema do acesso apresenta-se sob dois aspectos principais: o acesso à justiça como programa de reforma e o acesso à justiça como novo método de pensamento, este último voltado para a “perspectiva dos consumidores”.
Como “programa de reforma”, o acesso à justiça se apresenta como um projeto de efetividade dos direitos sociais, que não têm de ficar no plano das declarações meramente teóricas, cabendo-lhes, efetivamente, influir na situação econômico-social dos membros da sociedade, que exige um vasto aparato governamental de realização. Além disso, exige a busca de formas e métodos, a miúde, novos e alternativos, para a racionalização e controle de tal aparato e, por conseguinte, para a proteção contra os abusos aos quais o mesmo aparato pode ocasionar, direta ou indiretamente.
Por sua vez, enquanto “método de pensamento”, o acesso à justiça reclama por um novo método de análise das normas jurídicas, de natureza realista e funcional, concentrando-se sobre os “consumidores”, antes de concentrar-se sobre os “produtores” do sistema jurídico.9
Com efeito, questão relevante consiste em saber qual seria o status do acesso à justiça. Pergunta-se: qual é a sua dimensão constitucional?
Cuida-se de princípio que assume, ao mesmo tempo, o caráter de garantia e de direito fundamental.
Nesse ponto, faz-se importante diferenciar os direitos das garantias dos direitos. Muito embora a Constituição não adote qualquer regra que distinga as duas categorias, coube à doutrina apartá-las. Assim, entende-se que os direitos fundamentais são extraídos de disposições declaratórias, que imprimem a existência legal aos direitos reconhecidos. Já as garantias, embora também sejam, em certa medida, declaradas, constituem disposições assecuratórias, em defesa dos direitos10.
A expressão “garantias constitucionais” é comumente empregada em três sentidos, como explica José Afonso da Silva. Em um primeiro sentido, consiste no reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais, ou seja, um compromisso de respeitar a existência e o exercício desses direitos. Em uma segunda acepção, refere-se às prescrições que vedam determinadas ações do poder público, ou formalidades prescritas pelas Constituições, para abrigarem dos abusos do poder e das violações possíveis de seus concidadãos os direitos constitutivos da personalidade individual. Por fim, numa terceira e última perspectiva, as garantias constitucionais estão associadas aos recursos jurídicos destinados a fazer efetivos os direitos que assegura11.
São fortes as razões da caracterização do acesso à justiça como direito fundamental.
Inicialmente, conforme explica Wilson Alves de Souza, é preciso rememorar que somente em situações excepcionais o Estado autoriza a realização unilateral do direito por mão própria (autotutela). Assim, se o direito não realizado voluntariamente deve ser, em regra, concretizado pelo próprio Estado, é possível extrair como imperativo lógico à garantia do direito de ação12.
Ressalte-se que, no contexto de uma sociedade marcada pela desigualdade econômica, o exercício desregrado da autotutela fatalmente conduziria à imposição da vontade dos economicamente mais fortes sobre os direitos das pessoas mais necessitadas.
Neste sentido, o acesso à justiça se identifica com o direito fundamental de ação, impedindo que os direitos das pessoas sejam violados sem qualquer possibilidade de realização desses mesmos direitos contra seus violadores.
Em conclusão, ao mesmo tempo em que se revela como um direito fundamental de exercício da ação (enquanto direito de instaurar uma demanda) e a uma tutela adequada, o acesso à justiça ostenta caráter instrumental, como uma garantia máxima, na medida em que possibilita a tutela de todos os demais direitos fundamentais e os direitos em geral. Todos eles dependem do acesso à justiça.
Sendo um direito fundamental, o acesso à justiça atrai para si o status de norma jurídica e, de maneira mais específica, de princípio do direito (dado o caráter principiológico das normas de direitos fundamentais). Cuida-se de verdadeiro mandamento de otimização, ou seja, norma que ordena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes13.
3. Acesso à justiça como um direito humano: a luta pela cidadania e o movimento mundial de acesso à justiça
Indubitavelmente, existe uma relação bastante estreita entre o Estado, a sociedade, o processo e os direitos humanos. A crise do Estado Social (Welfare State), sobretudo a partir da década de 70, aliada à positivação crescente de direitos difusos, conduziu ao seguinte questionamento: como proteger os interesses de grupos de pessoas vulneráveis (mulheres, negros, homoafetivos, crianças, idosos, trabalhador escravo, sem-terra, indígenas, quilombolas etc.)?14.
Numa época marcada por sociedades de massa flagrantemente desiguais, são inúmeras as notícias de severas violações de direitos humanos, sobretudo numa perspectiva mais ampla (macrolesões). Tais “lesões de massa”, referidas por Carlos Henrique Bezerra Leite15, reclamam o reconhecimento e efetivação do acesso à justiça como um direito humano essencial ao Estado Democrático de Direito.
3.1 O Desenvolvimento do acesso à justiça no direito Internacional, direitos humanos e Defensoria Pública
A expressão “direitos humanos” é comumente empregada nos documentos internacionais, como referência aos direitos fundamentais, ou seja, situações relacionadas à tutela dos valores mais básicos dos seres humanos16.
No âmbito do direito internacional, como ocorre em qualquer sistema legal doméstico, o respeito e a proteção dos direitos depende diretamente da efetividade dos remédios judiciais17. Assim, quando um direito é violado, o acesso à justiça é de fundamental importância à pessoa individualmente lesada, consistindo num componente essencial do sistema de proteção dos direitos humanos.
Não por acaso, a Lei Complementar n. 132/2009, alterando o art. 1º da Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80/1994), atribuiu ao órgão expressamente a função de “promover os direitos humanos”. Igualmente, inseriu, no referido diploma, o art. 3º-A, que prevê “a prevalência e efetividade dos direitos humanos” dentre os objetivos da Defensoria Pública (inciso III), o que foi reforçado com a Emenda Constitucional n. 80/2014, ao conferir nova redação ao art. 134 da CRFB/88.
A referência aos direitos humanos na Lei Complementar n. 80/1994 não para por aí. O seu art. 4º, inciso III, prevê como função institucional da Defensoria Pública, dentre outras, “promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”, cabendo-lhe, ainda, “representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos” (inciso V).
No direito internacional, o acesso à justiça pode ser extraído de diversos documentos de direitos humanos, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948. Seu art. 8º prevê expressamente que toda pessoa “tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.
Igualmente, o art. 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, adotada pelo Conselho da Europa, em 4 de novembro de 1950, prevê expressamente:
ARTIGO 6°
Direito a um processo equitativo
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
...18
O art. 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, incorporada ao ordenamento brasileiro por força do Decreto n. 678/1992, também disciplina a proteção judicial:
Artigo 25 - Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados-partes comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.19
A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana (OUA) em Banjul, Gâmbia, em janeiro de 1981, em seu art. 7º, também traz regramento preciso a respeito do acesso à justiça, prevendo uma série de desdobramentos:
Artigo 7º
1.Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja apreciada. Esse direito compreende:
a) o direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes contra qualquer ato que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, leis, regulamentos e costumes em vigor;
b) o direito de presunção de inocência até que a sua culpabilidade seja reconhecida por um tribunal competente;
c) o direito de defesa, incluindo o de ser assistido por um defensor de sua livre escolha;
d) o direito de ser julgado em um prazo razoável por um tribunal imparcial.
2.Ninguém pode ser condenado por uma ação ou omissão que não constituía, no momento em que foi cometida, uma infração legalmente punível. Nenhuma pena pode ser prescrita se não estiver prevista no momento em que a infração foi cometida. A pena é pessoal e pode atingir apenas o delinqüente.20
Finalmente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia em 7 de Dezembro de 2000, em seu art. 47, revela a acentuada preocupação do bloco com os problemas concernentes ao acesso à justiça. Inicialmente, o aludido dispositivo dispõe que “toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo”. Em seguida, dispõe que “toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei”. Por fim, reconhece expressamente o direito à assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, “na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça”.
Todos os documentos citados possibilitam aos Estados soberanos o livre desenvolvimento de seus sistemas e remédios processuais domésticos. Todavia, para fins de concretização do acesso à justiça, exige-se que tais remédios sejam efetivos e permitam um julgamento justo e imparcial aos jurisdicionados.
Questão complexa e ainda não muito explorada diz respeito à permeabilidade do princípio do acesso à justiça nos equivalentes jurisdicionais, que consistem em meios alternativos de solução de controvérsias. Tais mecanismos, comumente denominados alternative dispute resolution (ADR), são cada vez mais comuns, tanto nos ordenamentos internos quanto no âmbito internacional, como alternativas ao excesso de formalismo e morosidade dos sistemas judiciários. A questão que se põe é saber se a palavra “justiça” também se refere a estes mecanismos. Com efeito, a resposta a esta pergunta depende diretamente da adoção ou não da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, já que os equivalentes jurisdicionais, em regra, são mecanismos privados e facultativos. No Brasil, a doutrina majoritária e o Supremo Tribunal Federal caminham no sentido da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, o que atrai o princípio do acesso à justiça ao seu âmbito.
3.2 O Acesso à justiça como um direito humano
Como ressalta Francesco Francioni, o emprego da expressão “direitos humanos” em diplomas legais é algo relativamente recente, que remonta à Carta das Nações Unidas e sua referência à dignidade dos seres humanos. Antes das Nações Unidas, as Constituições e diplomas legais preferiam termos como “os direitos do homem” ou “direitos dos cidadãos”, ou mesmo “direitos inalienáveis”21. Em todos os termos citados, há uma ideia comum: a de que certos direitos pertencem a todos os seres humanos individualmente considerados, pelo fato de nascerem livres e iguais, independentemente das normas positivadas.
Essa ideia comum, extraída de um suposto estado natural das coisas, serviu como uma ferramenta essencial para a desconstrução dos poderes divinos dos monarcas, conduzindo o processo de secularização das sociedades, em especial ao suplantar a ideia de “destino humano” para o moderno conceito de “progresso” como um produto do trabalho humano e da razão22. Destacam-se, nesse ponto, as contribuições de Cesare Beccaria no século XVIII, com sua obra “Dos delitos e das penas”, voltada à abolição da tortura e outras práticas de política criminal repressivas, a exemplo da pena de morte. Posteriormente, ao final da I Guerra Mundial, surgiram as primeiras organizações internacionais preocupadas com a proteção dos direitos humanos: a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Após a II Guerra Mundial, os direitos humanos atraíram ainda mais a atenção da sociedade internacional, culminando no surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 1945, e na posterior proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Algumas décadas depois, diversos sistemas regionais de proteção surgiram em todas as partes do mundo, a exemplo do sistema regional europeu, sistema regional interamericano e sistema regional africano de proteção dos direitos humanos.
Nesse contexto, emerge a importância do acesso à justiça, que exige das instituições internacionais de proteção dos direitos humanos a adoção de providências de modo a maximizar a participação das pessoas e a efetiva tutela de seus direitos sob a égide do devido processo legal.
No âmbito do sistema global, conforme supracitado, a Declaração Universal de Direitos Humanos, prevê, em seu art. 8º, expressamente que toda pessoa tem “direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei”. Lamentavelmente, sob o aspecto literal, o referido dispositivo peca ao limitar os direitos fundamentais àqueles reconhecidos pelos sistemas domésticos (“pela Constituição ou pela lei”), em detrimento das normas internacionais, onde está situada a referida Declaração. Cuida-se de equívoco absolutamente incompreensível e ilógico, já que a referida Declaração Universal é, ela mesma, um documento internacional. Este deslize não se repete na Convenção Europeia de Direitos Humanos, cujo art. 13 faz referência aos “direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção”.
Merece destaque a expressão “remédio efetivo”, que revela que, nos diplomas internacionais de proteção aos direitos humanos, o acesso à justiça figura como uma garantia procedimental, que depende de outro conjunto de garantias e liberdades (duplo grau de jurisdição, contraditório, ampla defesa etc.).